segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Boas festas!

Que diante da mesa gorda, nenhum chato venha falar de colesterol.
Que em janeiro não seja necessário pedir socorro aos padroeiros dos endividados.
Que ninguém pense que é Airton Senna numa estrada ou avenida.
Que os ladrões se deem uma semana de folga.
Que nenhuma pessoa seja obrigada a ouvir o som dos tunados.
Que os médicos e enfermeiros não faltem aos plantões a que se comprometeram.
Que as crianças gostem dos presentes que receberem.
Que a comida não queime na panela e que o tempero esteja correto.
Que não haja temporal no Natal e no Ano Novo.
Que os fundamentalistas de todas as religiões tenham um ataque de bom senso.
Que os maridos não reclamem dos gastos da mulher, nem as mulheres dos gastos dos maridos.
Que os adolescentes estejam surtados de prudência.
Que não haja um apaixonado chorando a perda do primeiro amor.
Que os idosos tenham paciência com a alegria desbragada dos outros.
Que os impertinentes fiquem de boca fechada.
Que os solitários encontrem companhia.
Que o coral não desafine.
Que os pés não doam justo na hora da festa.
Que quem quiser possa dormir sossegadamente.
Que os bebês não tenham resfriado ou dor de barriga.
Que não haja curto circuito por causa do excesso de lâmpadas.
Que a saudade dos mortos não pese na alma.
Que o brega e o erudito possam conviver sem atritos.
Que os ressentimentos sejam amainados ou extintos.
Que a cerveja não congele e a champanha não esquente.
Que os traficantes façam greve.
Que as mulheres acertem a mão na maquiagem.
Que os homens sejam gentis.
Que as flores de Iemanjá não murchem antes da hora.
Que os mal falantes tenham um pouco de compaixão.
Que todos os telemarketings fiquem silenciosos nesta semana.
Que as praias não fiquem impraticáveis por causa do lixo.
Que a mega da virada vá para pessoas de bem.
Que haja a alegria verdadeira que se encontra na paz.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A divisão do Pará (III)


Volto aos tópicos, para comentar alguns aspectos da discussão travada.

De saída, uma frustração

Eu não acho que a publicidade seja a alma do negócio, mas que ela apresente um produto. Qualquer produto – seja bem de consumo, seja ideia, seja causa. A publicidade política transmite muito mais do que a mensagem que se dispõe a viabilizar. Ela é uma carta de apresentação: forma, mídia e conteúdo compõem um todo que informa o eleitor sobre as ideias, a competência, a inserção social, a modernidade, a viabilidade do que está sendo proposto, seja um candidato, seja um assunto. A publicidade política pode gastar pouco e ser extremamente eficiente, e vice-versa: diferentemente de um bem de consumo, ela tem um conteúdo nobre, a ideia.
A campanha divisionista poderia ser tudo, menos vazia, como está sendo. O conjunto que está sendo apresentado revela a falta absoluta de um projeto político, que reúna as ambições administrativas e sociais. Frustrante.

O prato de lentilhas

Conta a Bíblia que Esaú, o filho mais velho do patriarca Isaac, deveria receber do pai toda a herança: terras e bens. E, num certo dia, como queria comer e era impaciente para esperar a comida, trocou tudo com o irmão mais novo, Jacó, por um prato feito, um prato de lentilhas.
A falta de projeto e o desconhecimento manifesto que as regiões separatistas têm das outras regiões do Pará me conduzem a esta analogia. Até agora, as diferentes regiões paraenses sustentaram-se umas às outras. Dos tempos coloniais até hoje, sucessivamente, o Marajó, o Nordeste Paraense, o Sudoeste, o Sudeste forneceram os meios para que o Pará, inteiro, enfrentasse e superasse as muitas crises brasileiras, enquanto que outros Estados mergulhavam na insolvência, porque, exceto São Paulo, nenhuma outra capital brasileira é como Belém: um eixo irradiador que, ao mesmo tempo, é o pilar de sustentação do seu Estado. O que a divisão oferece é um prato de lentilhas: mais estrutura administrativa sacrificando a riqueza real.

Os limites da pobreza

Uma reportagem de domingo na televisão tentava responder a uma angustiante pergunta de milhares de pais: “Como vou ajudar meu filho se ele sabe mais do que eu?”. Aponto esta frase sem entrar no mérito dela, mas tão somente para mostrar um dos limites que a pobreza impõe, para além do simples acesso aos bens de consumo.
No caso dos governos, cujo financiamento é feito com impostos arrecadados, a pobreza impõe um limite claro: não tem produção, não tem imposto, não tem financiamento.
Desde 1988 que o Brasil vem tentando reduzir o desequilíbrio entre suas regiões, governo após governo. Neste quase meio século já se tentou de tudo: políticas de crédito subsidiado, transferência direta de dinheiro para a população, incentivos fiscais, abertura de fronteiras econômicas, agricultura familiar, megaempreendimentos, três Presidentes nordestinos (Sarney, Collor e Lula). No entanto, a pobreza impõe seus limites: cadê capital, cadê conhecimento, cadê iniciativa para transformar a tentativa em acerto? O desequilíbrio regional foi, de fato, reduzido, mas muito abaixo do esperado.
Alagoas continua com a menor expectativa de vida do país – hoje, 16 anos a menos que aquela registrada no Distrito Federal - e as maiores taxas de pobreza e de mortalidade infantil, segundo o IBGE (síntese dos indicadores sociais, 2010). Fala-se, lá, de “emancipação social e econômica”.
Porque falo de Alagoas? Porque Alagoas foi criado exatamente para enfraquecer o poderoso Pernambuco, no final da revolta constitucionalista, em 1817. Há quase duzentos anos a elite alagoana conseguiu a emancipação política. E há quase duzentos anos Alagoas tem alguns dos piores indicadores do Brasil.

O território e o tempo

Um território precisa ter o que fornecer para o hoje e para o amanhã. Sem isso, se esgota, e seus ocupantes terão que buscar a sobrevivência fora dele. Parte da crise europeia de hoje deriva desse esgotamento. Os europeus costumavam buscar recursos extraordinários pelo uso da força, dominando e colonizando outros povos e territórios. A festa acabou, e os Jeans, Fritzs, Enricos, Phillips e etc têm que se ver com suas terras esgotadas, vida selvagem quase inexistente, jazidas totalmente exploradas, ou seja: recursos naturais quase desaparecidos. Passaram a vender os bens imateriais – ciência, tecnologia, história. E sabem que isto é precário. Se olharmos para a Europa com atenção, poderemos tirar algumas lições dessa experiência milenar: a primeira é que, para sobreviver no século XXI, a Europa se reuniu, deixando de lado ódios seculares. A segunda é que a racionalidade no uso dos recursos naturais de um território – o que significa o uso de hoje deixando reserva para amanhã – é indispensável, sob pena do território se tornar tão pouco útil para sua população que ela cede parte do domínio dele.
O território fracionado tem pouco tempo, porque tem poucas reservas. E é exatamente isso, na contramão do momento histórico atual, que se está tentando fazer.

sábado, 12 de novembro de 2011

A divisão do Pará (II)

Entro de novo na discussão para comentar alguns e-mails que tenho recebido sobre este assunto. Vou colocar em itens, para ficar mais fácil.
Ficaríamos mais fortes?
Participo de ações políticas há mais de quarenta anos. Participei de eleições nacionais em vários níveis, desde a extinta UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas), na remota década de 1960, até à última para Presidente da República. Todas as campanhas, realizadas nas mais diferentes condições e com os mais diferentes articuladores, tiveram um ponto em comum: começa-se pelo Norte, “para liquidar logo esse assunto”. Várias dessas campanhas foram para eleições indiretas, com as da UNE, em que os eleitores eram os Estados, ou a eleição de Tancredo/Sarney. O Norte não é mais longínquo que o extremo Sul. Ocorre que na democracia de multidões são estas que conferem poder às representações, sejam federativas ou não. A pressão da base – como se dizia nas campanhas estudantis – ou das “minhas bases”, como dizem os deputados – faz diferença.
Descobri desde cedo que a única forma de enfrentar “a pressão da base” era tirar vantagem da posição estratégica do Pará, tanto geográfica como econômica. A histórica insubmissão paraense, que se expressa até em campos de futebol, quando o povo se recusa a interromper o hino nacional, é um sinal amarelo permanente em Brasília, nunca expresso claramente, mas demonstrado em centenas de episódios: a criação do GETAT (Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins), a desvalorização da Cabanagem, enquanto episódio histórico, a criação do Parque do Tumucumaque, e, mais recentemente, a criação de um grupo estratégico sobre o Marajó, sem participação do governo do Pará, e a ponte inconclusa sobre o Oiapoque.
Constatei também que somente uma vez a cada legislatura (ou seja, a cada quatro anos) a bancada da Amazônia no Congresso consegue reunir seu peso e investir em alguma causa. Mais dois Estados não mudarão o compasso da valsa.
Divide et impera, disse Júlio César, repetido, ao longo do tempo, por, entre outros, Maquiavel, Luiz XI, Kant e Napoleão.
Não, não ficaremos mais fortes, pelo contrário. Passaremos alguns anos vitais repartindo o pouco que temos, enquanto o cavalo selado do bom momento econômico galopa em todo o Brasil.
O Tapajós pode ir...
Tenho ouvido, e lido alguns números, sobre uma predisposição da população de Belém em se recusar a entregar o Carajás e deixar partir o Tapajós.
Talvez que essa posição decorra de estar o Tapajós mais distante. Mas penso eu que é porque, na imagem publicitária que se criou, ao longo do tempo, para as duas regiões, o Baixo Amazonas e o Oeste do Pará ficaram como regiões selvagens, vazios custosos de manter.
O que a maioria da população ignora, entretanto, é que são as regiões selvagens do Pará o maior patrimônio realmente nosso. Pela Constituição, todo o subsolo brasileiro é da União Federal, bem como os recursos hídricos. O solo e tudo o que está em cima dele é dos Estados. Os parques e reservas federais são apenas uma pequena parte do patrimônio florestal do Pará. Floresta e água são os recursos estratégicos deste século globalizado, em que o controle da foz de um rio como o Amazonas perde importância. Por isso, a região projetada para o Tapajós é tão importante quanto a projetada para o Carajás. O Sudeste do Pará é o hoje; o Oeste e o Baixo Amazonas é que nos permitirão negociar vantagens nas próximas décadas.
O Pará é grande demais!
O Brasil é maior ainda – e ninguém pensa em dividi-lo só por isso. O tamanho do território não importa, quando a administração é adequada. E, para isso, é preciso, principalmente, dinheiro.
Conterrâneos do Sudeste e do Sudoste do Estado se queixam de falta de acesso a isso ou aquilo. Vou transcrever, aqui, um pequeno trecho de uma dissertação de mestrado realizada em 2010 na ilha do Combu, que é parte de Belém, capital do Pará:
Em termos educacionais, o índice de analfabetismo é muito alto, as escolas das comunidades funcionam apenas até a 4ª série do Ensino Fundamental. Os ribeirinhos enfrentam sérios problemas de saneamento básico e, no geral, não há programas de saúde dirigidos a essa população. Economicamente, a possibilidade de ascensão social é pequena, considerando-se o pouco domínio tecnológico embutido nos produtos que comercializam. Relegados ao abandono, algumas comunidades apresentam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo, todos esses fatores contribuem para uma condição de vulnerabilidade social (Scherer, 2004), o que implica em uma invisibilidade política deste segmento da população.
A questão, pois, não é de distância ou de grandeza. É de administração e recursos.
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PS: desculpem-me a longa ausência. Tive motivos.

domingo, 7 de agosto de 2011

A divisão do Pará

Estamos às vésperas de um plebiscito para dividir o Pará. E, talvez, seja oportuno refletir um pouco sobre essas questões separatistas.

Um passeio sobre o século XX nos mostra um mundo repleto dessa ansiedade política, particularmente na Europa e na África. Na maioria dos casos a separação se originou da quebra de organizações artificiais de Estados, retomando os povos seus caminhos antigos: foi assim na implosão soviética, com a emancipação da Georgia, Belorus, Casquistão e demais repúblicas sob domínio russo. Em outros casos, ainda na implosão soviética, foram destruídas fronteiras artificiais: foi assim no caso das repúblicas do Báltico, em que sérvios, bósnios, montenegrinos, tchecos e eslavos desfizeram a Tchecoslováquia e a Iugoslávia. Também fronteiras artificiais foram demolidas na África, dividida à força pelos países coloniais em meados do século: Burundi, Burkina Faso, Comores, Sudão do Sul. E alguns movimentos entram pelo século XXI: Chechênia, Cachemira, País Basco, Ossétia.

Componentes étnicos, religiosos e econômicos determinam, geralmente, o impulso separatista, quase sempre marcado por massacres. Esses componentes refletem, por seu turno, a incapacidade de repartir recursos e a intolerância com as diferenças culturais.

Essa incapacidade e essa intolerância, que são, de fato, os problemas a serem enfrentados pelos dois lados da separação, acabam fortalecidos no processo político e vão se rebater em profundidade no novo país. É assim na Georgia, às voltas hoje com dois movimentos separatistas e foi assim que o Burundi independente conseguiu ser o país mais pobre do continente africano.

Claro que o separatismo paraense não se compara com esses grandes movimentos divisionistas. De um modo geral, o separatismo brasileiro não passa de aspirações mais ou menos claras: as organizações paulistas, gaúchas e nordestinas se limitam a estudos e mais estudos sobre o assunto e jamais conseguiram sequer uma passeata consistente. O Pará não foge à regra: às vésperas do plebiscito, a discussão é politicamente correta.

Como não temos conflitos étnicos e nem religiosos, e nem mesmo opressão política, o componente principal do espírito separatista passa a ser o econômico: dividir para assumir completamente os recursos existentes, reter riqueza e viver melhor.

E isso, no século XXI, me parece no mínimo um anacronismo.

É só olhar em torno: nenhuma das repúblicas a sul, leste e oeste da Rússia dispõe livremente de seus recursos. A Europa montou uma verdadeira confederação: nenhum dos países do bloco pode decidir sozinho sobre qualquer recurso estratégico. Passo a passo, os países da Ásia e da América Latina se organizam: já há muitos itens, no Brasil como na Indonésia, onde a consulta prévia aos parceiros é mais que mera diplomacia.

Pode-se dizer: mas o governo, a capacidade de avaliar o sim ou o não, de representar o interesse local?

Três fatos recentes mostram a progressiva limitação dos governos num mundo cada vez mais globalizado: o virtual emparedamento de Obama no Congresso americano, o degelo cubano e o não-governo da Bélgica.

Obama viveu um impasse causado pelas relações globais em confronto com a política interna do país. Nenhuma saída, a não ser negociar. E os parlamentares cederam: primeiro a posição internacional, depois o resto. Se o país mais poderoso do mundo vive essa confrontação, imagine-se o que acontece com os outros...

No caso de Cuba, a suspensão dos subsídios que recebia da antiga URSS decretou a necessidade de uma rápida integração a outro bloco. Então todos os férreos princípios comunistas estão desaparecendo: mais dez anos e Cuba estará na economia de mercado, igual a todos os vizinhos. Com certeza não é o que a assembleia cubana ou Raúl Castro gostariam; mas é o que dá para fazer.

E, finalmente, a Bélgica: sem titular de governo há mais de ano, graças ao impasse entre valões e flamengos, continua funcionando quase normalmente. Não deixou de ser país e nem de ser Estado. O que, no início do século XX, promoveria instantaneamente uma intervenção de qualquer potência europeia, hoje é acompanhado com eficiente tranquilidade.

A esses limites impostos pelas redes globais, tanto políticas como econômicas, acrescente-se o verticalismo da estrutura do Estado brasileiro, em que a União detém 65% do volume recursos tributários – e ainda a totalidade dos recursos de subsolo e dos recursos hídricos. Pode-se ver facilmente que a margem de manobra de um governador de Estado, no Brasil, é extremamente estreita. Ele depende, fundamentalmente, da riqueza produzida no seu Estado para fazer-se ouvir. Quanto mais pobre o Estado, mais baixa será sua voz.

Um episódio ocorrido no Pará retrata bem isso. Trata-se da BR-422. Essa rodovia foi aberta com o nome de Transcametá, pelo governo do Estado do Pará, para integrar a região do Baixo Tocantins e permitir o acesso dos produtores rurais aos mercados maiores. Em 2002, diante das enormes dificuldades do governo em manter a rodovia, os parlamentares paraenses conseguiram sua federalização. Quase dez anos depois a estrada continua precária, sem conservação e sem asfalto em 195 dos seus 200 km. Em 2006 foi o governo do Estado que remendou a rodovia, para mantê-la aberta. De vez em quando, um protesto provoca novos remendos – e, nos intervalos, promovem-se rallies de jipes e motos.

Se o Baixo Tocantins fosse um Estado a estrada estaria asfaltada? Provavelmente, não. É só olhar as rodovias do Acre, do Amapá, de Rondônia e de Roraima. A frágil economia desses Estados amazônicos não sustenta suas reinvindicações. E, quando há cortes nos orçamentos federais – o que frequentemente acontece – são os recursos destinados aos Estados com menor população os primeiros a serem sacrificados.

Além disso, a divisão tem-se mostrado ingrata para os novos Estados: Goiás tem o 9º. Produto Interno Bruto brasileiro e sua população muito mais recursos que a do Tocantins: sua renda média é a 12ª do Brasil, enquanto que a do vizinho estado é a 16ª. O PIB do Tocantins é o 24º do Brasil. Pior que ele estão apenas o Amapá, o Acre e Roraima – não por acaso, na Amazônia. No Mato Grosso, verifica-se situação semelhante: enquanto o Mato Grosso ostenta o 14º PIB brasileiro e a 7ª renda média do país, o Mato Grosso do Sul tem o 17º PIB e a 11ª renda média.

O PIB do Pará é, hoje, o 14º do país. O PIB per capita é o 22º - o que significa um patamar pronunciado de pobreza. E, ao contrário do que muitos pensam, são as regiões Metropolitana e Nordeste do Estado que distribuem riqueza para as demais. Segundo o PIB dos municípios, divulgado pelo IBGE em 2009, dentre os 14 municípios de maior produto do Estado, Belém, Barcarena, Ananindeua e Castanhal somam 15% do PIB do Estado, enquanto que Marabá, Parauapebas, Tucuruí, Paragominas, Canaã dos Carajás e Redenção somam 8% e Santarém, Oriximiná, Itaituba e Altamira, apenas 3%.

Ou seja: se houver divisão, os residentes nos novos Estados vão ficar imediatamente mais pobres, porque o fluxo de receita que sai da região mais rica vai ser interrompido. Pior é que isso não quer dizer que os paraenses remanescentes vão melhorar de vida: haverá uma redução de receita e uma fase de desequilíbrio que vai ser dura de superar.

Os governos novos, cheios de limites, como já disse antes, pouco poderão fazer para se contrapor à pobreza.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Reza brava

Paixão é paixão.

Li entre os anúncios classificados a oração que conclui esta crônica, sob o título de “oração milagrosa”. Por curiosidade, constatei o preço: pouco mais de 50 reais pela publicação, dada como condição imprescindível para o atendimento.

Esta oração é para ser proferida numa reza brava. A reza brava de São Cipriano – pronunciada com enorme energia, quase que de um fôlego só, como uma esconjuração. Pede a São Cipriano e aos seus vigias (Caifás, Ferrabrás e Satanás, segundo me informam) ou seja, aos poderes do bem e do mal. E oscila entre o romantismo e a vontade anulada.

Contou-me um praticante de Umbanda que, quando a Pomba Gira desce num terreiro, sua energia é como um redemoinho de que ninguém escapa: todos giram sobre si mesmo e em círculo, participando de alguma coisa muito forte, irresistível. Exu feminino, deusa da sensualidade, a Pomba Gira ocupa o terreiro com uma força primitiva que não tira a consciência, mas domina e inclui a todos num mesmo movimento atordoante. A representação da paixão, talvez. Com sua própria lógica de recorrer a tudo, contraditório que seja.

Não sei quem fez publicar essa oração entre anúncios de compra e venda de imóveis, mas imagino a paixão que a motivou. E essa reza brava é um exemplo tão claro e profundo da dualidade da alma humana e do sincretismo que marca o caráter religioso brasileiro que resolvi dividi-la com vocês, meus leitores.

Afinal, paixão tão brava é artigo cada vez mais raro de encontrar neste século de ciências e racionalidades.

A reza:

Salve Pomba Gira, Maria Padilha, Rainha das 7 encruzilhadas, fazei que (fulano) fique para sempre comigo. Pomba-Gira, trazei-me (fulano) para mim (fulana).

Assim como o galo canta, o burro rincha, o sino toca, a cabra berra, assim tu hás de andar atrás de mim (fulana). Assim como o sol aparece, a chuva cai, fazei ser dominado por mim (fulana), preso debaixo do meu pé esquerdo.

Com dois olhos te vejo, com três eu te prendo. Com meu anjo da guarda peço que fulano) ande atrás de mim, (fulana), como uma cobra rastejante, que me ame loucamente, que só sinta desejos por mim (fulana), que não consiga olhar com olhos de desejo para nenhuma outra mulher ou homem que não seja eu (fulana), que atenda todas as minhas vontades, que não me faça sofrer, que durma e acorde pensando em mim fulana) e que sempre me tenha em seu pensamento, que não consiga viver sem mim fulana), que seus pensamentos e desejos sejam sempre voltados para mim (fulana), que ele seja carinhoso, romântico comigo, que assim seja.

Pelo poder de São Cipriano, assim seja.

Fulano) vai vir atrás de mim, rastejando, humilde e manso, para que possamos ter bom convívio e assim sermos felizes. Peço a São Cipriano que (fulano)me procure agora, hoje, e não consiga mais sair de perto de mim um só minuto eternamente. Peço isto ao poder das três almas pretas que vigiam São Cipriano, assim seja. Que (fulano) me assuma de vez, que os inimigos não nos vejam, assim seja.

Ó Maria Padilha, minha rainha, atendei o meu pedido.

Desde já te agradeço, minha rainha, pois sei que serei atendida como sempre fui.

Amém
.

domingo, 3 de julho de 2011

Passarelas globais

Tudo começou com uma coleção de fotografias dos desfiles de moda desta estação pelo mundo. Antes disso, eu havia lido uma entrevista da Carmen Mayrink Veiga, um dos ícones da elegância de alta costura, em que ela dizia que o que se vê nos desfiles é puro lixo – mau gosto, no vocabulário de uma socialite como ela.

Depois, fui olhar as fotos dos vestidos que estão sendo leiloados em Hollywood, da coleção de Debbie Reynolds (os mais velhos vão lembrar-se dela, a mocinha ingênua de quem Liz Taylor tomou o marido), que não conseguiu montar um museu com eles; as fotos de alguns vestidos da princesa Diane, também leiloados, mas em New York; e o tapete vermelho do Festival de Cannes.

Bem, os vestidos que estão sendo leiloados (alguns por pequenas fortunas) são todos clássicos, o que deve consolar a Carmen: a permanência exige um padrão estético bem definido, porque mesmo a simplicidade do vestido branco plissado de Marilyn Monroe só existe com um corte perfeito.

Daí, fui tentar entender porque as passarelas do mundo inteiro vêm apresentando coisas no mínimo absurdas: na Ucrânia, um casal desfilou apenas com tapassexos – só que o dele era uma máscara de caveira e o dela era uma raiz de planta; na França, havia um modelo masculino com uma capa de folhos que lhe cobria metade do corpo, rosto inclusive; na Alemanha, mulheres descabeladas com os rostos pintados de tal forma que pareciam ter saído de uma surra, combinando, aliás, com a roupa rasgada; na Dinamarca, vestiram árvores com a roupa de gente.

Li uns quatro ou cinco artigos, entre eles o resumo de uma dissertação de mestrado e uma reportagem tentando explicar o que acontece. Eis o resumo: a globalização está uniformizando tudo; então as pessoas estão tentando desesperadamente mostrar sua individualidade. Desconstruindo a indumentária para gritar “eu existo, sou um indivíduo, não sou um apenas um número de cadastro”.

O problema é que, mesmo assim, a estética é implacável. Sua base matemática limita as assimetrias, por exemplo; elas têm que ter proporção, ou o olhar se retrai instantaneamente, recusando a desmedida. Então, a desconstrução – misturar estampados com listras, verde com rosa ou roxo com laranja, oncinha com grafismo – também tem um padrão estético indispensável ou vira, como diz a Carmen, lixo.

Um milímetro a mais no rasgão da roupa transforma o sofisticado em brega. É um limite tênue e, como a desconstrução deve ser individual, acaba sendo encontrado no coletivo – aquilo que “todo mundo está usando agora”.

E aí o “eu sou diferente” vira igual, novamente. As roupas descontruídas se tornam tão comuns que um clássico é que será o diferente. Tal como fez Jane Fonda no Festival de Cannes – a mais bem vestida, disseram, a mais elegante, num vestido que a cobria inteira. Com joias, bolsa e sapatos combinando.

Hoje, o que as passarelas da moda devem exibir são ideias para o mercado global. A roupa para vestir é mostrada no interior dos ateliês ou dos salões de venda das lojas de vestuário. A mulher com o rosto cruzado por trancinhas do próprio cabelo, ou o sujeito com metade do rosto pintada de verde, que desfilaram em Paris, são apenas polos radicais e indigestos de uma nova abordagem. As ideias serão tornadas digeríveis nos ateliês pessoais ou industriais que sabem perfeitamente que o que as pessoas vestem está muito aquém da desconstrução. Qualquer foto, de qualquer esquina do mundo retratará gente vestida com tênis, camisa de malha e calça comprida. As variações repousam sobre este conjunto, porque é prático, é barato – e é comum. Sim, comum. Semelhante a todo mundo.

É que há algumas coisas que, de tão evidentes, os teóricos se esquecem. Ninguém gosta de ser notado o tempo todo. Há momentos para aparecer, mas na maior parte de sua vida as pessoas querem passar despercebidas, por milhares de razões. A principal delas talvez seja por que é muito difícil manter, todos os dias, uma boa aparência o dia inteiro e combinar isso com conforto.

O distanciamento dessa realidade vem deixando as passarelas da moda como uma Sapucaí desordenada, combinando show de horrores com exageros de plumas sem nenhum enredo para desenvolver. É divertido, escandaloso e só para aquele momento. A moda, mesmo, rola por fora. Na plateia.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

As contas públicas

Numa passagem pela telinha, ouço o presidente da Transparência Brasil dizer que o Tribunal de Contas da União melhorou um pouco os controles, mas os tribunais de contas dos Estados e dos Municípios são inoperantes e a serviço de ex-governadores.

Eu não sei se o TCU “melhorou os controles” porque nunca antes, neste país, houve tanta corrupção. O que eu sei é que também nunca antes, neste país, houve tanta controlaria sobre a administração pública. Há, hoje, auditorias, ouvidorias, controladorias – mas controle, mesmo, neca. Tudo isso surfa nas montanhas de papel produzidas a partir de uma legislação que, desconfio, deve estar entre as mais burocráticas do mundo. Ir ao local, conferir o que foi feito do dinheiro – quem está fazendo isso é o jornalismo, global ou não. Sem consequências, naturalmente, porque não tem autoridade para tanto, e nem deve ter.

São toneladas de papel que arrimam as contas públicas – e, não sei quem disse com sabedoria, uma vez, acho que foi o Hélio Beltrão – quanto mais papel, mais corrupção. A infinita papelada cria desvãos e esconderijos, áreas de embarque e desembarque para todo tipo de golpe. Todos os tribunais de contas trabalham por amostragem, cujos critérios são, ora aleatórios, ora denuncistas. Simplesmente porque é humanamente impossível conferir toda a papelada – são alguns milhões de documentos a cada mês administrativo.

Produz-se papel para uma hipotética fiscalização – e a hipotética fiscalização é exigente com o papel. Falta uma assinatura: multa; publicou atrasado: multa; mas o buraco que não foi tapado, mas teve o serviço pago, passa tranquilo, tranquilo: a papelada está em ordem, ponto final.

Na base disso está um ordenamento legal que parece ter sido feito com a assessoria de Macunaíma: a sacrossanta, para os tribunais de contas, lei 8666/93, a lei de licitações. Ao contrário do que muitos alegam, eu não acho essa lei dura. Ela é falha, incompleta, não se ajusta para muito dos procedimentos administrativos públicos e, sobretudo, está ultrapassada. Foi necessário editar uma lei especial para informática e uma outra norma – que jamais foi discutida no Congresso Nacional, mas hoje tem força de lei em todo o país graças aos Tribunais de Contas – a Instrução Normativa 001, da Secretaria do Tesouro Nacional, com todos os seus remendos posteriores.

Eu não sei, porque ele não explicou, o que o presidente da Transparência Brasil considera “melhores controles”. O cipoal legislativo brasileiro semeia armadilhas em toda a administração pública: há atos que são regidos por diversas leis, um pedacinho em cada uma. E exige papel: há um dispositivo legal, por exemplo, que exige parecer jurídico para todo e qualquer ato administrativo que envolva recursos ou bens. Isto gerou um exército de bacharéis em Direito que não redigem contratos, não minutam convênios, não fazem audiências, não administram e não resolvem problemas: apenas dão pareceres. Como se trata de um parecer eles também não assumem responsabilidades: quem responde é quem assina o ato. E ai do administrador que não instruir o ato com um parecer! Tudo pode estar corretíssimo, mas faltou o papel, então...

Em toda a administração criou-se um número mágico: é o número três. Eu não sei porque duas propostas são piores que três: mas em todos os procedimentos licitatórios de pequeno valor há que ter três propostas, três cotações. Os múltiplos de três permeiam todas as instâncias: o limite máximo de contratos é de sessenta meses, o valor máximo de nota fiscal para compras com suprimentos de fundos é trezentos reais, são de trinta dias a maioria dos prazos de edital... Eu não sei se isto deriva de Brahma, Vishnu e Shiva ou do Pai, Filho e Espírito Santo. Mas o resultado não é nem um pouco espiritual: é papel, papel e papel engasgando todo e qualquer serviço público.

Eu sonho com o dia em que esta República vai deixar de ser cartorial, em que os controladores poderão ser encontrados nos canteiros de obras ou nas cozinhas das escolas, nos depósitos de medicamentos e nos almoxarifados de informática. O dia em que uma assinatura no verso de um empenho não será mais importante que uma obra feita e acabada. Em que a lei seja simples, clara e dura. Em que a experiência administrativa seja condição preliminar para a nomeação de um auditor. Em que transparência não seja uma simples página eletrônica ininteligível para o cidadão comum.

Aí, sim, os controles terão melhorado de fato.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Fi-lo porque qui-lo

A vida me levou para longe do blog, nas últimas semanas e, como eu não brigo com a vida, somente agora estou de volta. Porque ela me desvia do caminho reto para estradas com curvas impensáveis. Nessas curvas me exercito e aprendo. Quando terminam e à minha frente se desdobra, novamente, a planura, retomo o caminho antigo. Como escrever estas crônicas.

Nesta, vou tratar de uma questão aparentemente acadêmica, mas que é, na verdade, uma carga de profundidade: estas são semelhantes a um extintor de incêndio, mas têm o poder de fazer o mar vomitar – entre outras coisas, submarinos.

Trata-se do debate em torno do falar “certo” ou falar “errado”, levantado em torno de um livro didático distribuído pelo MEC.

Eu li o trecho polêmico, não li todo o livro. Li e assisti, também, algumas entrevistas e artigos variados sobre o assunto. Desconfio que o tema foi para a pauta por conta de competição comercial (dá para imaginar a quantidade de dinheiro empregado na feitura e distribuição desses livros) e, por isso, o debate se iniciou sem uma seriedade básica. Mesmo assim, quaisquer que fossem as intenções iniciais, ele ganhou corpo e consistência, porque é importante.

Quem fala o português que está na gramática? A pergunta é do professor Ataliba Castilho, um linguista e gramático pouco conhecido do grande público mas que é considerado um dos astros na praia da língua portuguesa. E ele responde: ninguém!

O professor Ataliba escreveu uma gramática de português brasileiro com uma parte dedicada à norma culta, isto é, à língua portuguesa padrão, e outra dedicada ao português vulgar. Sabe, pois, do que está falando.

Pois é: para ele só fala errado quem não se faz entender. Tipo assim:

Seu Eduardo, que me ajuda com as plantas, chega comigo e diz: “Tem que aparar o bugarim”. Eu dou um pulo: “Não mexa no meu jasmim bugarim!”. Ele argumenta: “Mas está grande demais, daqui a pouco ele quebra!” E eu: “Como que está grande! Não chega na altura do muro!” Ele me olha espantado e aponta... o buganvile. Que está imenso e realmente precisa de poda. Puxo-lhe as orelhas: “É o buganvile, seu Eduardo, bu-gan-vi-le”.

Ele não se fez entender. Portanto, falou errado.

Mas quando o seu Eduardo chega comigo e diz que a “esquadrilha da porta está bichada” eu sei perfeitamente que ele está falando da esquadria com cupins. Não faz a menor diferença ele falar esquadrilha bichada. Ele fez-se entender; não falou errado.

Quem falou errado fui eu ao dizer-lhe que cuidasse do vírus da gripe. A reação foi um espanto coroado por um sorrisinho que expressava: “Pirou!” E os próximos dez minutos foram para explicar que ele é quem tinha que se cuidar, o que é um vírus e o risco de pneumonia. De tudo ficou-lhe a idéia de uma entidade do mal (o vírus) capaz de estourar o peito de um homem (a pneumonia). Não consegui falar certo com ele.

Jânio Quadros, rigoroso guardião do vernáculo padrão, não escapou de provocar gargalhadas nacionais ao falar no máximo rigor gramatical, como: “Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido, comê-lo-ia”. Tanto que até hoje lhe é atribuída uma frase que nunca disse: “Fi-lo porque qui-lo”. A frase é de um jornalista que a usou como ironia ao estilo de Jânio – ironia porque, gramaticalmente, ela está errada. Virou palavra na boca de Jânio e símbolo, até hoje, de pedantismo que beira o ridículo.

Mas será que existe alguma correlação entre a ferocidade com que Jânio usava e exigia o uso do português padrão e a discussão de hoje sobre “falar certo” ou “falar errado”? Lógico que sim.

A explicação mais evidente está em “My fair lady”, o filme. Quando a elegantíssima garota começa a conversar, no camarote do hipódromo, cria um violento contraste entre sua figura e sua fala. A figura se desmonta diante do discurso: todos percebem imediatamente a fraude. Ela falava errado, ali – embora falasse certo no mercado de onde vinha. Ou seja: os espaços sociais são, muitas vezes, demarcados pela forma como se usa a língua materna. Uma pessoa fantasiada de vendedora de flores que falasse a língua padrão no mercado provocaria o mesmo choque que tiveram os convivas do sofisticado camarote do hipódromo. Elas perceberiam a fraude rapidamente.

A elite (que não é constituída pelos ricos, mas dos que a sociedade reconhece como os melhores entre todos, diga-se de passagem) demarca seu espaço com a língua padrão. O vocabulário é mais amplo e a sintaxe mais elaborada. Está mais perto da gramática que qualquer outra categoria social até porque assuntos complexos demandam maior conhecimento gramatical. É impossível, por exemplo, fazer-se entender em assunto científico com preposições usadas erradamente. Ou em assuntos financeiros, sem as condicionais corretas.

O grito: “Estão ensinando português errado nas escolas” que sintetiza a denúncia feita e a discussão que seguiu pode ser interpretado de duas maneiras: uma, a elite pressente uma ameaça na demarcação do espaço social; outra: há uma tentativa de impedir que os escolares da rede pública cheguem à elite.

Jânio, que não nascera em grupo de elite, usava a língua padrão para enfrentá-la. “Respeitem-me, falo melhor que vocês” – era o recado que mandava com os seus pronomes oblíquos postos na linguagem corrente.

A questão gira, pois, em torno da elite e é por isso que é tão importante. O rumo que toma a elite é o rumo que toma um povo inteiro. Durante grande parte da história da humanidade ela foi constituída principalmente por guerreiros e religiosos; hoje ela se tornou muito mais complexa, reunindo gente que lida com dinheiro, política, ciência e tecnologia, armamentos, informação e comunicação, religião e filantropia. Todas essas pessoas precisam ter o domínio da língua padrão: assim, esta não pode ser um caos, tem que ser ancorada na gramática e no dicionário. E cabe à escola ensinar isso.

Eu diria que o saldo do debate envolveu a reafirmação do ensino da língua padrão na escola; um avanço na compreensão de que o discurso deve estar adequado aos ouvintes; um reconhecimento do vigor e da riqueza do português vulgar; e, em âmbito universitário, o sentimento de que é preciso conhecer e sistematizar esta outra face da língua nativa, aquela falada na intimidade das casas e nas ruas.

Quanto ao livro questionado, a denúncia mostrou-se falsa: o professor defende o ensino da norma padrão – apenas colocou mal as coisas. Ou seja, falou errado.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

e o mundo gira...

Desculpem-me os amigos pela ausência, mas do que pomos às vezes não dispomos, e um turbilhão me afastou do blog.

Nesse intervalo de silêncio, um tsunami arrasou norte do Japão e estremeceu a indústria de energia nuclear; um doente mental promoveu uma chacina em Realengo; as despesas corporativas da Presidência da República bateram recordes inacreditáveis; Obama e o U-2 vieram ao Brasil, e Portugal nos pede ajuda, atestando que há dinheiro para gastar por aqui; e Liz morreu.

Tudo isso me espelha apenas um momento do mundo, igual a tantos outros já passados, diferente, entretanto: é outra escala e os conhecimentos são maiores, são outros ainda os atores. Mas o desafio de tentar entender é o mesmo. E a dificuldade, também.

De todos esses assuntos, o único em que consigo encontrar coerência é Elisabeth. Sua beleza, suas jóias, seu trabalho, suas extravagâncias, suas obras de caridade são um emblema completo de uma grande dama do século XX, nascida num continente e famosa em outro, seduzindo o mundo e usando todas as prerrogativas que a beleza e a inteligência lhe deram.

Do que ocorreu no Japão para mim é incompreensível a equação de risco: um ovo de serpente atômica num local sujeito a cataclismas periódicos. Porque não foi o aquecimento global que explodiu o Krakatoa, no Pacífico, em 1883. E o Japão, na borda da placa, corre riscos semelhantes. Talvez que o povo japonês confie mais do que nós na segurança tecnológica; talvez não veja alternativa. Mesmo assim...

De Realengo reflito sobre a falta completa de alternativas para doentes mentais no país. Também porque a mídia insiste em chamar pré-adolescentes de crianças. Toda jovenzinha na faixa de idade das vítimas jamais admite ser chamada de criança. Garota, garoto, sim, ainda vai. Também reflito no exemplo que os professores daquela escola deram para seus colegas de todo o Brasil: nenhum fugiu, nenhum abandonou os alunos. Responderam à crise com presteza e responsabilidade, e duvido que qualquer deles tivesse sido treinado para isso. Eles evitaram mais mortes que a polícia – no entanto, ninguém lhes deu medalhas ou honrarias.

Das despesas da Presidência, reflito o quanto o país vai fingir não ver o que está acontecendo em Brasília. Esse fato é apenas parte de um conjunto cada vez mais perverso: os órgãos controladores caçando lebres enquanto a manada de javalis passa. Prefeitos de micromunicípios são acusados em rede nacional, enquanto corruptos notórios são empossados em cargos eletivos. Nesta época, quem não deve tem que temer, porque quem deve rola a dívida e se safa, numa boa. Mas quem não deve, dorme tranquilo e por isso corre o risco de acordar devendo sem saber nem por que...

E do pedido português, acho graça. Porque, afinal de contas, eles não deixam nossos profissionais de nível superior trabalharem lá. E ainda discriminam os brasileiros. Ou seja: continuam nos olhando como a metrópole olhava a colônia, boa apenas para entregar o ouro...

Obama veio, espalhou charme e talvez acabe mais popular que John Kennedy no Brasil. Afinal, ele não foi à Argentina; mostrou que tinha se preparado para a viagem, ou seja, mostrou respeito; e, apesar da timidez dos acordos assinados, abriu caminho para coisas bem maiores, pela primeira vez, no caso dos presidentes norte-americanos, com um sorriso aberto da população.

E o U-2 deu uma aula de profissionalismo que bem poderia ser aproveitada pelo show-bus nacional...

terça-feira, 1 de março de 2011

Benedito Nunes

Fui sua aluna, e ele me ensinou a pensar.

Sua tolerância com a tolice me intrigava. Depois compreendi: saber-se humano é também saber-se um quase nada. Se a dimensão do tempo nos esmaga, a consciência do conhecimento nos coloca no tamanho exato do que somos e demonstra que o degrau que separa os inteligentes dos tolos, os eruditos dos iletrados é um fio de cabelo.

Sua paixão pelo cinema também me intrigava. Eu jamais consegui me deixar envolver por um filme – simplesmente por saber que, em torno de qualquer cena, há sempre um grupo grande de pessoas. Entendi, mais adiante, que sua paixão pelo cinema era um pouco a ausência do teatro na sua vida, e muito, a expectativa do criado ou do recriado, do novo. Passei a ler os filmes à moda Bené – mas fiquei muito longe na leitura. Faltaram-me boa vontade e paciência.

De sua vida, um episódio me serviu de referência para muita coisa. Foi quando o nome da rua em que ele morava foi mudado. Benedito lutou ferozmente até conseguir manter seu endereço. Com CEP ou não, sua casa continuou na travessa da Estrela, que existe só naquele trechinho de dez metros, com um único morador. Ele me explicou que não mudaria de endereço, depois de décadas de correspondência e referências. Conquistara aquele endereço; não seria um Correio que iria tomar dele.

Foi a mais importante aula de exercício de cidadania que tive.

Benedito conseguia que as pessoas se esquecessem facilmente de sua estatura intelectual e, frequentemente, surpreendia mesmo seus pares: de repente, palavras inesquecíveis lhe escapavam da boca, com a naturalidade de quem fala abobrinha. Um lampejo de quem escora a sua sabedoria na sabedoria humana, e não faz mistério disso. Era simples, e, ao mesmo tempo, extraordinário – tal como as linhas puras da boa arquitetura, aquela que resiste ao tempo e a todos os modismos, e consegue que mesmo alguém completamente brega fique boquiaberto de admiração.

Esse brilho ocasional, esses instantes de pensamento límpido, esses relâmpagos de inteligência não serão repetidos mais, para sempre. Como ele ensinou, na primeira aula que tive com ele: a morte é uma situação limite. É inexplicável, e para além dela, somente a imaginação.

E é esta que nos consola, e o consolava, nos voos cinematográficos em que ele fazia questão de embarcar. Faz-nos crer, sem base alguma, que suas palavras não escritas serão perpetuadas da memória de uns para a memória de outros: e não é isso a imortalidade? A essência do homem que se foi, preservada para compor a essência do homem que virá?

Há seus livros, é verdade, sua contribuição para a filosofia e para a arte. Mas livros são interpretáveis. À pergunta tão comum nos exercícios estudantis: o que o autor queria dizer com isto? – haverá, sempre, múltiplas respostas. Já não haverá mais a do autor. Seu pensamento dependerá de intermediários para ser compreendido. Ninguém mais poderá ter a experiência única de perceber o incompreensível e admiti-lo – nenhuma palavra escrita pode reviver esses momentos de que Benedito era tão rico.

E eu nem posso dizer que gostaria que ele ficasse para sempre entre nós, porque ele riria na minha cara dizendo que a entropia é uma bênção da natureza. E, claro, teria toda razão. Mas que eu gostaria, gostaria.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O SUS inglês e o nosso

Pela quantidade de e-mails que recebi, virou um cult na internet um programa, feito pela televisão dos Estados Unidos, sobre o sistema de saúde inglês.

Pois resolvi responder à pergunta embutida no cult: porque não fazemos assim?

Bem, a primeira questão é dinheiro. A Inglaterra tem uma renda por pessoa (a chamada renda per capita) de 36 mil dólares anuais. O Brasil chegou próximo aos 10 mil dólares anuais no ano passado: ou seja, menos de um terço. Isso significa que, para começo de conversa, o Brasil arrecada, em termos proporcionais, três vezes menos impostos que a Inglaterra. E, continuando a conversa de impostos para financiar o sistema, a carga tributária brasileira é menor que a inglesa: o último estudo publicado a respeito, em 2008, pela Receita Federal, situava o Brasil com 34,41% de carga tributária (a porcentagem de renda que o cidadão tem que transferir para o Estado, através dos muitos impostos e taxas), e a Inglaterra com 35,7%. Então: Brasil, 34,41% de 10 mil dólares/ano: 3.441 dólares por pessoa; Inglaterra, 35,7% de 36 mil dólares/ano: 12.852 dólares por pessoa.

A segunda questão é de escala. O Brasil é um país continental, com concentrações populacionais altas em alguns lugares e dispersão populacional também alta em muitos outros. A área da Inglaterra (130 mil km2) é equivalente à do Estado do Paraná (199 mil km2). O pequeno tamanho e a concentração populacional permitem que as cidades, vilas e aldeias se interliguem mais facilmente, o que facilita a integração de recursos, inclusive os humanos: é possível, por exemplo, transportar um paciente facilmente para um hospital especializado, de forma que o médico generalista (aquele que aparece na reportagem) não tem que se ver com os casos mais complicados. Ele tem uma retaguarda qualificada e que pode usar. Na maior parte do Brasil, isso é quase impossível – o transporte aéreo de pacientes, por exemplo, é necessário quase como rotina em dezenas de Estados.

A terceira questão é de qualificação de mão de obra. Ainda pagamos o preço da rapina colonial europeia: nossas escolas superiores se desenvolveram a muito custo, e se Napoleão não tivesse invadido Portugal, teríamos esperado mais ainda para começar. Isso aconteceu tanto aqui como na África do Sul, de colonização inglesa, no Zimbabwe (holandesa), Marrocos (francesa), Argentina (espanhola) e por aí afora. Os Estados Unidos se livraram disso porque tiveram uma formação diferente, e se tornaram país muito antes de nós. Assim, as escolas de medicina que nos Estados Unidos se iniciaram com Harvard, em 1626, no Brasil só começaram em 1808 – quase exatos duzentos anos depois. Faz muita diferença, porque ciência e educação são processos lentos de formação e multiplicação. Hoje, temos equipamentos de última geração sem ter quem os opere em vários locais do país.

A quarta questão é cultural. A reportagem exibida foi feita pela televisão dos Estados Unidos para ser exibida nesse país, questionando o sistema de saúde americano (que, aliás, Obama está tentando reformar agora). Ora, os EUA têm dinheiro e mão de obra qualificada semelhante à inglesa, e escala semelhante à do Brasil. Porque eles não têm um sistema de saúde semelhante?

Porque a Inglaterra é um país fechado e os Estados Unidos, assim como é o Brasil, são países abertos. Abertos do ponto de vista de migrantes (a Inglaterra se fecha totalmente quando julga necessário) e do ponto de vista social (a Inglaterra ainda mantém uma casta aristocrática, e a Câmara dos Lordes é a maior expressão disso). Isso permite uma dura disciplina de trabalho que, se de um lado facilita que o sistema funcione azeitado, por outro sufoca a originalidade e retarda a inovação. Ora, isto conflita com o jeito americano de ser (tanto no Brasil como nos EUA), jeito que deriva das necessidades da sociedade. Nos Estados Unidos, se alguém se comove com uma criança sem pernas por conta da explosão de uma mina terrestre, mobiliza céus e terra, arrecada dinheiro, arranja patrocinador e consegue a prótese. Na Inglaterra, põe-se Lady Di para fazer campanha contra as minas, mas os hospitais têm uma cota de prótese e dela não passam – mesmo que o país inteiro esteja comovido com o drama.

É um jeito duro de administrar, que o Brasil talvez até um dia, muito longínquo por sinal, queira e consiga fazer.

Uma última observação: na reportagem, informa-se orgulhosamente que o sistema inglês nasceu imediatamente após a guerra, em 1946, portanto. Nosso SUS nasceu quarenta anos depois, em 1988, e, em vinte anos, tornou obsoleta a caridade das centenas de organizações religiosas que atendiam os chamados indigentes – pessoas que podiam morrer por não poder pagar tratamento. Hoje, essas organizações integram a rede SUS, com liberdade, aproveitadas todas as suas instalações, e o que antigamente era caridade se tornou direito. A mortalidade no parto despencou em mais de 60% no período. A mortalidade infantil, que era de 75 por mil em 1986, já 1990 passava para 55 por mil e em 2009 se reduziu para 20 por mil.

Falta muito, por certo, para chegar aos 5 por mil, nível da Inglaterra. Mas só esses resultados demonstram que o SUS – sem o rigor disciplinar inglês e com todas as suas dificuldades - é uma extraordinária realização brasileira.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os filhos d'algo

A expressão portuguesa é antiga, medieval. Era usada como meio prático de designar a nobreza sem título. E, também, como alerta pra um tratamento específico para aquela pessoa – afinal, era um filho d’algo, amanhã poderia ser algo.

Depois, esta expressão virou palavra – fidalgo – que foi incorporada aos almanaques da nobreza e, mais tarde, com a extinção gradativa da aristocracia, ganhou outro significado, o de pessoa gentil, educada, cortês. E gerou outro substantivo: fidalguia, aquela virtude que consiste em se ter tanta atenção com os outros que se é capaz de até antecipar seus desejos.

E porque estou eu falando de coisa tão antiga?

É que me veio a cabeça que a alta burguesia repete em muitas coisas a velha aristocracia quando vejo um jovem engenheiro recém formado responsável por um edifício de 34 andares na firma de construção do pai. É um filho d’algo, sem dúvida. Jamais seu pai entregaria a responsabilidade de uma obra desse porte a qualquer outro engenheiro com um ano de formatura.

Nas publicações oficiais e nos relatórios empresariais encontrou outros filhos d’algo, facilmente identificáveis pelos sobrenomes. Jovens, inexperientes, assumem cargos e diretorias saídos quase que diretamente das Universidades. “Tem o pai por trás”, me dizem, ou, mais raramente, “a mãe”, querendo com isso significar que a consultoria grátis, ou o acesso a quem manda de fato é uma solução.

Pois é, mas, hoje como na Idade Média, um dia a casa pode cair.

O edifício de que o jovem engenheiro era responsável, ruiu.

Na Idade Média, quando um filho d’algo caía prisioneiro do inimigo – lembrem-se que a guerra era a principal atividade deles – havia que esperar que a família providenciasse o resgate. Eram prisioneiros em locais especiais: castelos, geralmente, com direito a tratamento nobre (não há certa analogia com as prisões especiais de hoje, para quem tem patente ou nível superior?). Chegar ao resgate levava muito tempo: às vezes mais de dez anos. Muitas vezes, quando as negociações se concluíam, o resgatado já era só a sombra de si mesmo, até porque, naquela época, o tempo de vida era pouco.

Mais ou menos o que vai acontecer com o jovem engenheiro. A família terá que resgatá-lo: vai gastar muito com a defesa, porque o processo aberto para apurar responsabilidades durará, com certeza, mais de década. Talvez consiga recuperar seu filho d’algo; talvez não. Mas o sistema, que concede essas vantagens também faz seu preço. E ai de quem não paga!

Nada tenho contra jovens executivos, pelo contrário. Mas tomo como referência o exemplo de Júlio de Mesquita, o fundador do “Estadão”. Seus filhos, seus herdeiros, assumiram as diretorias do jornal, cada qual por sua vez – mas depois de percorrer todos os setores, trabalhando como quase qualquer um, sujeitos a horários, disciplina e chefes. Fizeram o percurso da carreira: podiam entender o valor de uma diretoria.

Jovens que se destacam pelo talento, pela criatividade, pela inteligência, pela ousadia, abrem suas próprias portas. Ser filho d’algo às vezes facilita, às vezes atrapalha: não é o essencial para seu sucesso ou desempenho. Eles formam a verdadeira elite, aquela que soma inspiração com transpiração para chegar a resultados.

Como antigamente: D. Henrique, o navegador, era um filho d’algo, quinto filho do rei de Portugal. De seus cinco outros irmãos que chegaram à idade adulta, um morreu refém do inimigo, porque o resgate não chegou a tempo, e outro foi rei. Mas foi ele quem inscreveu seu nome em maiúsculas na História, no capítulo dos grandes descobrimentos.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O traje da posse

Abro o convite, posse do governador pela manhã e a indicação é seca: traje passeio.
Solenidade a céu aberto, no mínimo 35 graus Celsius positivos. Choveu muito, na véspera; o ar está limpo de qualquer poeira que atenue o sol equatorial.

Saí de casa pensando que a indicação seca do convite permitia um voo da imaginação, porque o conceito de “traje passeio” difere conforme a cabeça da pessoa e o próprio traje é feito, também, conforme a renda. E uma posse, num governo democrático, vai reunir todos os níveis de renda.

Bem, foi um divertido espelho do jeito de vestir no início do século XXI, em Belém do Pará. Roupa é também um conjunto de sinais que informam ao olhar do estranho a classe, a disposição de ânimo, o objetivo de quem veste. E, para além da moda do momento, também informam os parâmetros sociais exigíveis – ou aceitos - numa solenidade dessas.

No caso dos homens, a margem de manobra é limitada, porque o parâmetro “traje passeio” é quase um uniforme: paletó, gravata, meia e sapato.
Mas tem o sujeito do paletó alugado, com uma transparente falta de hábito de envergar o traje: sobram botões e bolsos, a gravata despenca para um lado e o sapato é o único, geralmente sem nada a ver com o resto. Esse tipo não tem punhos de camisa: a camisa por baixo do paletó é de mangas curtas e colarinho, às vezes, até pólo.

Tem o cidadão que cheira a tira a quilômetros de distância. Eles parecem comprar ternos na mesma fábrica e não adianta mudar a cor. A gravata é de nó corrediço, sempre, não sei porque, embora eu ache perigoso um segurança andar com um nó de forca no pescoço; o cinto está sempre à mostra, porque como eles nunca fecham o paletó, ele despenca nos dois lados, por força da gravidade, voeja em torno dos quadris.

Há o impecável. O terno de corte perfeito geralmente é tão discreto que sobressai do resto, principalmente porque a gola e os punhos da camisa são alvíssimos. Nos sapatos, nem um grão de poeira, sugerindo que jamais entram em contato com asfalto e reles calçadas; de vez em quando, um fugaz brilho no pulso indica o relógio.
Em contraponto, o contestador veste um terno claro e põe uma gravata de tal modo e com tal arte que informa imediatamente que ela, a gravata, está ali contrariada, por pura obrigação. Eu observei cuidadosamente um deles: a gravata estava direitinha, com um nó Windsor, mas ele deixara uma ponta tão comprida que ela balançava um “não” redondo. Nos pés desse indivíduo você pode achar um mocassim, um sapato de elástico, um sapato cavado – jamais vai encontrar uma fieira amarrando as abas do rosto.

E tem o militante entusiasmado. Ele pôs o seu melhor paletó, ou talvez seu único terno, que pode ser marrom ou quadriculado, até azul marinho, mas jamais é preto.
Ele toma cuidado com essa roupa, volta e meia olha para ela. A camisa geralmente é de cor, com os punhos, às vezes puídos, bem abotoados. A calça é outra história. Pode ser do terno, mas pode ser jeans, pode ser preta, pode ser de qualquer cor, mas será a melhor do guarda-roupa, e estará muito bem passada. O sapato, como é único, é um social clássico e, por isso, a gente pode medir-lhe a idade comparando a ponta com a moda do momento.

Este homem, se estiver acompanhado, será de uma mulher que foi ao cabelereiro na véspera especialmente para a ocasião, estará com as unhas pintadas na cor da moda, bem viva, e veste, também, o melhor vestido, aquele que usou na última festa a que foi – é decotado e tem brilhos. E como o vestido pede, o sapato é muito alto, combinando com a bolsa, que, evidentemente, é de festa.

Ela encontrará lá um outro tipo de mulher: a que precisa aparecer. Pode ser que esse precisa seja por necessidade, mesmo – fazer-se notar para conseguir subir na carreira ou arranjar emprego – ou pode ser que seja por temperamento. Os cabelos delas ou são louros, ou são negríssimos, ou são mechados de dourado, mas sempre pintados. As mais velhas, com esse perfil, usam tons azulados ou, então, um louro claro, mas fogem do acaju padrão como o diabo da cruz. Elas brilham nas orelhas, nos braços e nas mãos. Os vestidos são planejados para disfarçar ou valorizar o que interessa: curtos, se as pernas são bonitas, decotados, se o colo é notável, semilongos, se há necessidade de cobrir os joelhos. Mas são sempre vestidos.

Diferente desta, há aquela que de longe se apresenta como executiva. Está toda em tons pastel, ou então de preto; usa terninho ou tailleur; o cabelo é correto, a maquilagem é discreta, o sapato é de saltinho e, geralmente, fechado. A roupa cai arrumadamente e não há um fio de cabelo, quanto mais uma gola, fora de lugar.

Há, ainda, as festeiras. A roupa é arrumada de última hora, mas elas capricharam nos adereços e nas pinturas. Nessa categoria, as visões na posse foram diversas e, algumas vezes, até divertidas. Alguém apareceu de longo cheio de brilhos, outra levava um vestido de malha justo, com listras horizontais, que cairia muito bem numa magríssima – mas o caso é que ela era gordíssima. Decotes de todos os tipos e profundidades, e os cabelos, um espetáculo à parte: pirâmides, cachos, presilhas, piranhas, até uma tiara apareceu com uma flor presa do lado. Indiferentes aos resultados, elas fizeram, cada qual, a sua festa: abraçaram, abordaram, tagarelaram. Levaram ao pé da letra a indicação do convite: traje passeio, roupa para passear. E passearam, coloridas, alegres, felizes por estarem ali.

Bem, havia também os que consideram irrelevante o traje pedido: estes estavam sem paletó, eles, e elas usando rasteirinhas. Eram poucos, tentando uma originalidade que passou despercebida na multidão. E apenas conseguiram se confundir com os assistentes de cinegrafistas, que, em roupas de trabalho, enrolavam os fios.
No final da manhã, todos estavam nivelados pelo suor, apertados nas sombras dos palanques ou das mangueiras, pés pedindo trégua. E saíram, todos, com o ato de presença, em traje passeio, carimbado nas retinas alheias, esperando ter deixado uma boa imagem de si.