segunda-feira, 9 de julho de 2007

O antigamente é hoje

Minha amiga me lança um olhar meio nostálgico:

- Quando poderemos passear novamente nas calçadas, tranqüilamente, como antes se fazia?

Imediatamente me lembro de conhecidos nostálgicos pelos quintais (com uma goiabeira, naturalmente!) de sua infância. Essa época acabou, como acabou também a disponibilidade das ruas para um passeio simplório. A complexidade urbana designa locais certos para atividades certas; este é o século XXI, o século das massas, da ditadura das maiorias e, lembrando uma original expressão de Leonel Brizolla, dos grandes rebanhos humanos.

Aí está: não poderemos mais fazer o que fazíamos antes. O passado está lá, e não me digam que era melhor, diante de um cursor que sobe e desce trazendo o mundo para dentro de casa. Não me digam que era melhor diante das panelas de aço inoxidável e da leveza dos potes de plástico, da simplicidade dos detergentes e da eficácia dos antibióticos.

Esta época tem seus problemas, como todas as épocas. Suas epidemias, nem piores nem melhores que as de outras épocas – porque o que aterroriza nas epidemias é não se saber como curá-las. Seus problemas e crises, específicas dela. Também agora se diz que o mundo vai acabar, tal como no ano mil; como no tempo da guerra fria; como na época do dilúvio.

Assim, os problemas que temos hoje são os de hoje, assim como os benefícios. Os benefícios do passado, nele ficaram, como também as crises. É verdade que a violência urbana aumentou. Mas é preciso lembrar que as bengalas, que hoje olhamos como nostálgicos artigos de moda dos séculos passados, eram fundamentalmente um instrumento de defesa pessoal. O jovem de bigodinho fazendo pose com a bengala na verdade era alguém pronto para enfrentar assaltantes. O toque de elegância dos castões dourados ou entalhados disfarçava o chumbo derretido nos canos, ou a madeira maciça que as tornava respeitáveis porretes para quem sabia usá-las. Então, os tempos não eram tão pacíficos assim...

Em cidades pequenas é possível passear tranqüilamente nas calçadas, até mesmo sentar-se à porta e conversar com os vizinhos e conhecidos. Nelas, todos sabem quem vai surgir na esquina, e todos sabem quem vai e quem vem. Nas cidades grandes, isso é impossível: já no século XIX, Machado de Assis ressalta o bucolismo dos subúrbios do Rio de Janeiro exatamente com as conversas de calçada e os passeios a dois e três...

Antes de acabar, por falta d’água ou poluição, ou aquecimento ou seja lá o que se profetiza hoje, o mundo vai ter que achar soluções para as gigantescas concentrações urbanas. Pode ser uma solução à Stan Lee, com cidades de vários andares e uma camada cultural em cada andar; pode ser uma solução admirável, com os rebanhos geneticamente domesticados, à Huxley, em que a inteligência e a iniciativa são reservas ilhadas; pode ser uma dispersão como a evocada no episódio da Torre de Babel (aliás, essa história bíblica pode ser aplicada diretamente ao processo de globalização); ou, de repente, a mãe natureza resolva tudo a seu modo traumático. E pode ser até que a população humana consiga mecanismos sensatos de auto controle, que, afinal, sonhar faz bem e a humanidade é sempre surpreendente.

Mas esses processos de solução são longos e duram gerações. Nossa geração provavelmente não verá nada disso, de forma que é melhor para nós deixar o passado para trás e tentar viver, da melhor forma possível, o presente: se não podemos passear tranqüilamente nas calçadas, podemos pelo menos ter muito mais esperança, em todos os setores da vida, do que jamais nossos pais tiveram – e isso não é pouco.

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