quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Remédio fraterno

Na ante-sala de um consultório médico, aproveito o tempo de espera e leio seis páginas-resumo de uma pesquisa que constatou que uma boa coisa para prevenir depressão é – vejam só! - bons irmãos.

Uma fraternidade saudável na infância, dizem os pesquisadores, mostrou ser um antídoto eficaz para a depressão aos 40, 50 anos. O curioso é que o relacionamento com os pais não interfere: seja bom, seja ruim, o resultado é o mesmo. Os irmãos, entretanto, são decisivos. A existência de bons irmãos reduz o risco para os que têm propensão genética, e mais ainda para quem não tem.

Não pude deixar de pensar nos bilhões de filhos únicos dos países asiáticos, e nos milhões de filhos únicos dos países europeus. Suas perdas, pelo jeito, são maiores do que a simples convivência e partilha a que a fraternidade obriga. Também pensei que talvez as altas taxas de suicídios nos países asiáticas podem ter algo a ver com a falta de irmãos – de bons irmãos – na infância.

Mais tarde, imaginei que bons irmãos na infância quase sempre assim permanecem na vida adulta, e talvez a pesquisa tenha se esquecido desse detalhe: um apoiará o outro aos quarenta anos, se brincou junto aos seis e foi cúmplice aos quinze. Haverá com quem conversar, as possibilidades de solidão desesperada serão menores, porque o bom irmão será capaz de arrombar a porta fechada do sofrimento do outro, e socorrer.

E isto me lembra outra história. A de um bom filho, que um dia aprendera a fazer malabarismos com um cordão passado entre os dedos. Seu pai se trancara no quarto, silencioso, hostil, sem receber ou atender ninguém, dias seguidos, semanas, entreabrindo a porta apenas para receber alimento e água. O filho aproveitou um momento de porta entreaberta e passou a mão para dentro do quarto, fazendo malabarismos com os dedos e o cordel, surpreendendo o pai que, depois de alguns minutos, finalmente abriu a porta para o filho e para uma nova vida.

Irmãos também são capazes disto e de muito mais. Principalmente de proporcionar a certeza de que o amor é entre iguais. A admiração de um pai ou de uma mãe pelo bem-feito do filho é viciada pelo afeto intrínseco. A de um irmão vale mais, porque é entre pares: ela passa pelo crivo da crítica, e a ultrapassa. “Não é por ser meu irmão, mas...” Esta expressão, tão comum, resume a essência da fraternidade.

Essa fraternidade, filhos únicos poderão encontrar talvez em outros filhos únicos, amigos de infância que prosseguem na vida adulta. A pesquisa não examinou essa hipótese, e, possivelmente não será a mesma coisa: faltou partilhar o mais importante, que é o amor dos pais, e esta perda, ninguém recupera nunca.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Ressaca de elefante

Diz a notícia que uma manada de elefantes tomou um pileque de cerveja, dessas feitas em casa, e endoideceu. Um deles foi coçar as costas num poste, que derrubou. Morreu eletrocutado, assim como todos os que tentaram salvá-lo. Até que pessoas conseguiram desviar o restante da manada – a notícia não diz como – e interromper a tragédia.

A notícia me lembrou o Senado. Cerveja feita em casa – mordomias, cumplicidades, safadeza miúda paga pelo Estado – e um pileque de poder. Renan coçou as costas no lugar errado – daí por diante, os elefantes perderam o controle de si mesmos.

É necessário interromper a farra da manada. Mas que a tropa de elite não se assanhe: não queremos trocar uma manada por outra. Não queremos ditadores à la Hugo Chavez (que afinal, apenas repete o que os militares fizeram: um Congresso fantoche para fazer de conta que havia democracia). Muito menos Lula ad aeternum. Pessoalmente, eu quero a coragem, a austeridade e a competência de José Serra. Ele enfrentou e venceu os grandes laboratórios multinacionais, e isso, para mim, o credencia a enfrentar quem quer que seja, se Presidente da República. Afinal, os grandes laboratórios multinacionais são a vaca sagrada do capitalismo mundial. A vitória de Serra serviu ao Brasil, e a todos os pobres do mundo. Lula, o eterno protestador de passeata, faz um enorme agá com uma política externa pelos pobres, mas não fez até agora nada por eles – e não aguentou nem meia pressão de Bush. Aliás, não aguentou nem a pressão interna dos bancos, hoje os maiores beneficiários da Previdência Social. Duvida? Pergunte à Previdência quanto cada banco recebe, por cabeça e por mês, para permitir que os miseráveis aposentados recebam seu dinheirinho no caixa eletrônico...

O país está criando, aos poucos, as condições para uma grande ressaca cívica, depois do pileque dos elefantes senatoriais. A crítica circula livre na rede, graças a Deus, porque a censura é quem circula nas tevês abertas. Censura de interesses: ah, é cliente, deixa... Que aliás é a pior censura que existe, porque não tem regras nem parâmetros. Mais dia, menos dia, a crítica vai pular fora da rede e ganhar o espaço mais importante: a consciência cidadã de quem não dá, não dá mais.

A primeira onda da ressaca apareceu na praia do PAN, na forma de uma vaia que cassou a palavra de Lula. A segunda, na praia da seleção, na forma de um gigantesco coral de palavrões destinados a Galvão Bueno e à rede Globo. O que tem a ver? Ora, ora, não me decepcionem! Com quem dorme a Vênus Platinada?

Outras ondas virão, e talvez a gente tenha de volta um pouco de decência pública. Vergonha, sabe? Aquele sentimento que faz com que a gente preze a opinião que os outros têm da gente, que faz com que a gente se comporte civilizadamente, mesmo que esteja querendo voltar para a barbárie, mesmo que esteja querendo tomar um porre de elefante. A vantagem de ter vergonha na cara é que, depois de vencer a tentação, a gente pode ter orgulho de si mesmo. Ou de seu país. Ou de seu Senado. Ou de seus aldeões, capazes de desviar a manada e salvar os elefantes e o povoado.