quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Medicina de massa


Eu pago convênio. Caro. Minha empregada paga convênio. Barato.

Eu fui para uma consulta médica, pré-agendada. O médico trabalha num espaço que divide com cerca de outros vinte. Três atendentes. O rapaz olha para mim, com cara de cansaço, e me diz para pegar uma senha. Pego, é a 905. No painel, aponta para 885. Constato que estou numa fila apenas para ter acesso à fila do atendimento médico. Digo-lhe que agendei a consulta, ele faz que não ouve – deve ouvir a mesma coisa milhares de vezes. Vou embora e aviso à médica que lá não volto.

Minha empregada marcou sua consulta. Ao chegar, foi informada que o médico não fora trabalhar. Ela agendou de novo. Madrugou na porta do consultório. Pegou a senha número sete. O médico chegou às 9, ela foi atendida às onze. Perdeu a manhã toda.

Lá como cá, o mesmo desleixo. Ou seja, não é questão de pagar caro ou não.

Reclamam do atendimento gratuito. É igual. Apenas, no gratuito, só dói no corpo, não dói no bolso também. E o SUS ainda fornece o remédio.

Falo para outra médica essa situação. Ele me diz que a demanda é grande demais, fila de um ou dois meses em algumas especialidades. Mas a gente paga convênio porque doença não tem hora, não é mesmo?

E também porque convênio é uma espécie de seguro. Seguros, todos sabem, trabalham com probabilidades e faixas de risco. O Brasil tem boas estatísticas de saúde: elas informam, com razoável segurança, que quantidades de população são afetadas por quase todas as doenças. São as estatísticas de morbidade. Mas, apesar de serem estruturados como seguros, os planos de saúde não usam essas estatísticas, não dimensionam o serviço que deverão prestar. E ninguém os obriga a isso – então eles não fazem. O que eles fazem – tanto o que eu pago, que é caro, como o que paga minha empregada, que é barato – é o seguinte: credenciam os médicos que se dispuserem e dão o atendimento como resolvido. O cliente que sofra todas as dores que tiver que sofrer – inclusive a do bolso.

E fazem pior. Instituíram uma burocracia estúpida, tanto no sentido de grande, como no sentido de absurda. Todos os exames de imagem precisam de um carimbo. Esses exames precisam de uma autorização do que eles chamam de “auditoria médica”. Como o volume é enorme, geralmente, e é impossível para três ou quatro médicos auditarem milhares de exames, tudo se reduz a você ficar duas horas numa fila e receber um carimbo num formulário do qual se preenche apenas duas ou três linhas. Aliás, boa parte do tempo de um médico, hoje, é ocupado preenchendo formulário. Às vezes, a maior parte da consulta, também – quando se trata, por exemplo, de exames periódicos de controle.

O quotidiano de um médico, hoje, inclui um punhado de clientes verdadeiros – aqueles a quem ele acompanha de fato – e dezenas de clientes ocasionais. Nestas últimas consultas, a relação é difícil: pacientes, cada vez mais impacientes e informados, desconfiam e se defendem, e o médico, por seu turno, desconfia e se defende também. Esse desfilar de rostos desconhecidos, de um lado e de outro, leva a medicina a um buraco negro: não há médico que não solicite exames complementares para fundamentar um diagnóstico, não há paciente que deixe de desconfiar de um médico que não peça esses exames. E aí, a burocracia põe seu dedinho: são duas consultas para fazer uma, porque o retorno, o plano não paga, embora obrigue. Porque precisa do carimbo...

Essa consulta partida ao meio, no sistema público, leva a situações dramáticas. O paciente precisa de rapidez no tratamento, mas ele só poderá fazer o exame dentro de trinta dias, e terá mais trinta para remarcar a consulta. Alguns médicos simplesmente internam o paciente; outros, se limitam ao vai-da-valsa, e, sessenta dias depois, quando o paciente volta, pior, naturalmente, fazem a prescrição.

A medicina se tornou de massa, não há como voltar atrás nisso. Mas ela pode ser de massa e pode ser decente: muitos países, desenvolvidos ou não, já apontaram o caminho certo, que pode ser resumido numa frase: o paciente deve ser atendido e respeitado.

Coisa que os encarregados públicos de regular o setor parecem não entender, e com que os dirigentes de planos de saúde nem sonham. Para eles, o paciente é só um fator de custo - ou lucro.