segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Desculpem, mas é preciso

São oito horas da noite do domingo do Círio. Rola Faustão na televisão e eu estou cansada. Donas de casa sempre terminam cansadas o domingo do Círio.
Mas eu preciso escrever sobre algumas coisas relacionadas ao Círio. Coisas de certa forma desagradáveis, nota desafinada no coro ufanista geral.
Eu fiquei chocada com a motorromaria. Milhares de motos e motoqueiros roncando na rua – milhares de motoqueiros sem capacete. A questão não é a lei que, aliás, não abre exceções para romarias ou para qualquer outra manifestação – a questão é a absurda falta de consciência da necessidade de se usar um capacete quando se está numa motocicleta. A questão é a omissão das autoridades civis e a permissividade das autoridades religiosas diante da infração em massa e, sobretudo, diante do desprezo pela própria vida e pela dos demais, feita de forma ostensiva, sob alegação da fé. São os acidentes de moto os que mais matam e ferem no trânsito: não é possível ignorar essa realidade, principalmente num ato religioso.
Também me preocupa – e não é de hoje – o risco provocado pela desordem na procissão fluvial. Havia barcos superlotados. Havia pequenas embarcações bordejando perigosamente balsas e navios. Havia lanchas costurando o percurso. Havia barcos literalmente se tocando uns aos outros. A procissão é bonita, tem seu espaço. Mas o ocorrido este ano em Macapá deve acender um sinal amarelo. Anos houve, já, em que se procedeu com mais rigor nessa procissão. O rigor deve voltar.
Um outro ponto me chamou atenção. Ainda a pretexto da fé, cantores e bandas se posicionam no percurso da procissão tratando a multidão como plateia. É verdade que há muitos curiosos, pessoas que participam apenas por participar. Mas a grande maioria da gente que vai ao Círio é motivada pela devoção. Vão ver a Santa, pedir e agradecer. É desrespeitoso para com um sujeito que andou mais de duzentos quilômetros para chegar a Belém e entregar o seu metro de madeira oferecer-lhe uma exibição que, ao fim e ao cabo, visa apenas a divulgação e a comercialização posterior de produtos. Já basta a carga publicitária que acompanha a procissão em faixas e objetos; só que esta se dissolve na multidão, é devorada, digamos assim, pelo volume da manifestação. O show marginal à procissão é diferente: ele interfere diretamente naquilo que o romeiro está pretendendo fazer.
A última observação diz respeito às promessas dolorosas. Com raízes profundas na tradição católica, elas vêm-se multiplicando ultimamente – desconfio que, em parte, por causa dos cinco segundos de fama proporcionados pela tevê. A autoflagelação, entretanto, não é coisa que se recomende nem que se estimule. Do jeito que vai, está-se transformando em mais um show - desta vez, de horror.
Desculpem, mas é preciso dizer.