quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A assombração

Nos idos dos 1960, nascera na Juventude Universitária Católica, a JUC, uma facção de esquerda chamada Ação Popular. Baseada na teologia da libertação era composta por jovens católicos envolvidos em política – a melhor maneira de construir o bem comum, como diz hoje, meio século depois, o papa. Esses jovens católicos confrontavam os comunistas que, clandestinos mas poderosos, organizados e sérios, tentavam controlar completamente o movimento estudantil. Eram uma boa alternativa para uma esquerda livre do predomínio soviético. A diferença fundamental entre os católicos de esquerda e os comunistas pode ser resumida assim: para os católicos, os meios eram tão importantes quanto os fins; para os comunistas, os meios justificavam os fins. Isso parece pouco, mas é um abismo inconciliável. Estávamos, entretanto em plena guerra fria: “quem não está comigo está contra mim”, diziam russos e norte-americanos. Quem não estava com nem um, nem outro, foi liquidado.
Veio o golpe e a AP, que mal se formara, foi considerada inimiga do regime. Conseguiu, no entanto, fazer o congresso da UNE de 1965 e controlar a entidade, já ilegal. Entre os militantes da AP estava José Dirceu, vindo da União Estadual de Estudantes de São Paulo. Inteligente e extremamente persistente, apoiado pelo poderio paulistano, José Dirceu conseguiu convencer as lideranças que era melhor fazer o congresso da UNE de 1966 em São Paulo. O congresso de 1965 tinha sido feito em Minas Gerais: o discreto e eficiente povo mineiro segurara a onda sem problemas.
José Dirceu expôs esquemas de segurança e assumiu a responsabilidade. O congresso se reuniu e todo mundo foi preso. José Luiz Guedes, eleito presidente, saltou do ônibus-cadeia em movimento para escapar. Conseguiu e retomou o bê-a-bá: começar de novo com todas as lideranças devidamente identificadas, “queimadas”, como se dizia então, com a única opção da clandestinidade absoluta.
José Dirceu manteve-se como quadro de liderança de AP. Mas a facção enfrentava enormes dificuldades: foi rejeitada pela ala conservadora da igreja católica, cujos integrantes, em muitos casos, denunciaram os militantes, como aconteceu com frei Betto, obrigado a uma fuga incessante para escapar da cadeia. A JUC também se desmontou. Mas a AP tinha milhares de militantes não comunistas. De alguma forma eles tocavam o barco. Até o dia em que a direção nacional da organização, a qual José Dirceu integrava, decidiu que era tempo de abraçar a causa comunista. Razões? A URSS financiava e os escrúpulos eram poucos: afinal, para eles, os meios justificam os fins. A AP, católica, virou a APML – Ação Popular Marxista Leninista, defendendo a luta armada. A esmagadora maioria dos militantes deixou a facção, indo enfrentar solitariamente seus destinos. A APML virou mais um segmento comunista, do mesmo tamanho da Polop, VAR, Var Palmares etc.
Muitos viraram fantasmas, mergulhando de cabeça na clandestinidade. Outros passaram a ter vidas duplas. A esquerda católica, entretanto, conseguia dialogar com os comunistas e lhes oferecia a proteção que podia, ajudando a solapar o regime e preservando vidas. A APML, um pouco por sua origem católica, um pouco pelo fato de que os militantes haviam deixado de ser estudantes e eram obrigados a trabalhar na iniciativa privada, voltou-se para o movimento sindical e, em conjunto com outros segmentos comunistas, apostou nas lideranças dos sindicatos de trabalhadores nas indústrias, o mais importante dos quais, o dos metalúrgicos de São Paulo, tinha uma liderança carismática, muito próxima dos católicos, o Lula. Não sei quando José Dirceu e Lula se encontraram, mas sei que, desde a primeira greve no ABC, na década de 1970, Dirceu já era o fantasma do Lula.
Como toda assombração, era fluido o suficiente para desaparecer por detrás da barba hisurta do metalúrgico. Fez as pontes necessárias para que Lula aproveitasse toda aquela enorme estrutura do clero de esquerda, derrotado pelos conservadores dentro da Igreja Católica, para a organização do PT. O crescimento do partido levou, necessariamente, seus líderes à elite política. O aprendizado levou algumas décadas, mas foi completo: discursos para o povo e manobras nos bastidores; uma versão no palanque, outra no gabinete. E algumas máximas clássicas da política: não se faz nada sem dinheiro; é preciso ir onde o dinheiro está; o feio é perder.
Lula no palanque e seu fantasma, Dirceu, nos bastidores. A guerra fria terminou, os comunistas puderam ocupar seu espaço legítimo, o fim da clandestinidade fez cair as máscaras. O clero católico, o grande apoiador, festejava os avanços até que um dia o PT chegou ao poder. De repente, frei Betto, o maior ícone católico dessa caminhada, se afasta do governo. Ele descobrira o avesso do avesso. Dirceu, agora com Lula, deixou de ser fantasma e a grande esquerda não comunista trincou de alto a baixo. De novo. Com uma diferença, desta vez: algumas sólidas lideranças católicas haviam se formado nesse meio tempo e elas conseguiram evitar o esfacelamento total: os irmãos Arns, o próprio frei Betto, Leonardo Boff, para citar os mais importantes.
Dirceu é comunista? Não, não é. Ele seria comunista se fosse o caso. Mas ele conhece bem demais as limitações da ação comunista. Dirceu é pragmático e, por isso, não é e nunca foi um estrategista. Todas as vezes em que tentou ser, ocasionou desastres. Como todo pragmático diante da estratégia, ele se equivoca. Seus objetivos são curtos.
Por esta razão não compreendeu que dinheiro deixa rastro – é como cheiro de peixe, se denuncia fácil. E como o cheiro de peixe, onde adere, fica e marca. Mesmo que não esteja no seu bolso. Basta que tenha estado no porão do barco, em grande quantidade.
Seguindo os mesmos métodos de Dirceu, Lula se livrou dele. Sem escrúpulos e justificando os meios com os fins. Principal beneficiário do mensalão, usou a velha máxima política e atirou o aliado na arena: percam-se os anéis, não os dedos. Lula já perdeu um, sabe a falta que faz.
E, agora, Dirceu é fantasma oficial: funcionário fantasma de uma empresa também fantasma, deixou de ser, definitivamente, a assombração de Lula.