sábado, 30 de maio de 2020

O padre e seu legado



Os meninos e meninas de Emaús o chamavam simplesmente de padre. Eles reconheciam a marca diferencial. Porque Bruno Secchi, um sardo que veio para Belém com vinte anos, recém ordenado, era principalmente um padre. Padre Bruno, era como os paraenses o conheciam. Um sujeito magrinho e pequeno, de rosto e maneiras calmas, que disfarçavam uma vontade férrea e uma coragem a toda prova, produtos de uma fé profunda.

Ele chegou na barca dos salesianos de onde desembarcou no final do século passado, para tornar-se pároco ligado à Arquidiocese de Belém. Mas, tanto na Ordem como no clero regular, padre Bruno se colocou firmemente ao lado dos desvalidos, mirando principalmente os mais vulneráveis: as crianças e os adolescentes mergulhados na pobreza extrema.

Começou com os pequenos trabalhadores das feiras e mercados: crianças que vendiam jornais, faziam carretos nas feiras, trabalhavam como ajudantes. Fez para eles um pequeno restaurante. Choveram contribuições e auxílios. Pouco a pouco, a iniciativa foi ganhando corpo: surgiu a República do Pequeno Vendedor. Arrecadações anuais de artigos usados na cidade permitiram a montagem de uma escola de ofícios. Em tudo isso, havia uma constante interferência: a violência contra as crianças e adolescentes.

Padre Bruno cruzou as divisas do Pará: persistente, incansável, percorreu o país inteiro convencendo pessoas, políticos, empregadores e empregados, funcionários públicos e juízes da necessidade de lei especifica para proteger as crianças e adolescentes. Em grande parte o Estatuto da Criança e do Adolescente saiu de seus pensamentos e de sua persistência. O Brasil lhe deve isto. Nós lhe devemos isto.

Sua coragem pode ser demonstrada num único episódio: policiais haviam tido um confronto com bandidos em Belém, e, na vingança pela morte de um colega, mataram uns tantos suspeitos e percorreram as ruas da cidade atirando e exibindo os cadáveres. O padre Bruno foi a única pessoa a levantar a voz contra a barbárie. Enquanto um milhão de habitantes da cidade se encolhiam amedrontados, ele foi às televisões e condenou, com palavras mansas, mas duras, o acontecido, forçando assim a correção de rumo.

Padre Bruno morre aos 80 anos, naturalizado brasileiro; o Estado do Pará está em luto oficial por três dias; alguns milhares de adultos, que tiveram sua infância ou adolescência resgatada em Emaús, farão um luto mais duradouro. Algumas centenas de jovens não verão mais o sinal – o Padre – nos trabalhos cotidianos de Emaús. Mas o legado deste homem está fincado na história de sua pátria de adoção e na terra que ajudou a suavizar.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Sem silêncio (1)




Cartas aos amigos

Belém, Pará, 23 de abril de 2020.

Queridos amigos e amigas,

Dois motivos me levam a quebrar o silêncio que me impus desde quando os pequenos cronistas saíram de moda e eu com eles. Sem leitores e sem disposição para me tornar um brainstar, de vez que prezo profundamente minha privacidade, decidi parar por ali mesmo, alguns anos atrás.
Eu acreditava que a minha geração, aquela que lutou nos anos de chumbo e, depois, nas diretas já, tinha cumprido seu tempo e que a hora de agora é a de nossos filhos. Mas há momentos em que não é possível esperar pelos outros. Há momentos em que os velhos como eu, depositários do que não deve ser esquecido, precisam voltar para exercer sua função de transmissores: postar-se em frente aos mais jovens e dizer-lhes, mesmo que não sejam ouvidos, o que deve ser dito. Esta é a primeira razão.
A segunda, ao contrário do que afirmam aqueles precipitados senhores, de que as palavras não movem montanhas e não mudam realidades, a humanidade tem raízes exatamente nela: no princípio era o verbo e no final será o mesmo verbo, passando por Gilgamesh e abracadabra, por evangelhos e alcorões, por ilusões e verdades. E eis a segunda razão: as palavras estão erguendo muralhas odientas; são necessárias outras palavras para combatê-las.
O primeiro discurso vem do século passado, meados do século passado.
Um dia destes alguém me dizia que o abandono dos velhos na pandemia do corona é fruto do neoliberalismo ou do capitalismo selvagem: quem não produz, morre. Mas quem dera que essa fosse ideia nova! Milhares de pessoas não teriam morrido nos anos 30 e 40 do século passado... Pois foram essas as razões que guiaram o programa de eutanásia desenvolvido pelo governo Hitler na Alemanha, iniciado em 1939 com... bebês. Esse programa não foi executado pela Gestapo ou por outra organização da SS nazista. Foi executado por médicos. A crueldade vinha revestida de misericórdia. Em nome da misericórdia, pois, foram esvaziados os hospitais psiquiátricos diretamente nas câmaras de gás. Em nome da misericórdia, milhares de crianças com deficiência física ou mental foram mortas, a princípio por overdoses de remédio ou simplesmente de fome, mais tarde, por asfixia. A mesma asfixia do coronavírus. Até agosto de 1941, 70.273 pessoas tinham sido assassinadas. Praticamente a capacidade máxima do Maracanã. Até o final da guerra, em 1945, tiveram “morte misericordiosa” 230 mil pessoas.
Esse programa foi o embrião do holocausto.
O abandono dos velhos se inspira, pois, em puro nazismo. Que não era capitalista, mas autocrático e escravagista. Tão autocrático e escravagista quanto o regime stalinista.
Esse abandono já está crescendo e multiplicando-se: nenhuma medida foi tomada para proteger as tribos indígenas, para as quais a simples gripe é mortal, e um vírus como esse, genocida; nem as pessoas amontoadas nos presídios. Himmler disse uma vez que, no interesse do país, “tirar a vida de um homem não significará mais que tirar a vida de um boi” – ou seja, bandido bom é bandido morto. Como um boi, ou pior que isso.
Quando um moleque de 9 ou 10 anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí: 'trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil...'. Agora, quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então, o trabalho não atrapalha a vida de ninguém.” Isto é Bolsonaro, março de 2020. Arbeit macht frei (o trabalho liberta). Isto é a inscrição na entrada do maior campo de extermínio nazista, 1941. Onde pessoas morriam (também) de tanto trabalhar.
Coincidência ou consequência? A linha sutil da palavra estabelece um cinismo comum de dois.

Obrigada pela atenção, da

Ana Diniz.