sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Verdadeiras procelárias

Gosto dessa palavra, “procelária”, e por isso a uso; trata-se de um pássaro cuja aparição prenuncia tempestades – as procelas. Por analogia, procelária é quem anuncia horrores ou terrores, tumultos e convulsões. É uma palavra forte, aberta, que rola na boca e tem todos os fonemas difíceis para estrangeiros. Define bem o que vou escrever a seguir.

Tenho ouvido discursos, muitos discursos, e lido entrevistas, muitas entrevistas, ultimamente, que insistem em dizer que o mundo está pior e será muito pior daqui a dez, quinze, cinqüenta anos. Bem, tirando o fato de que se dizia o mesmo há 50 anos, acredito, do fundo do coração, que haja algumas razões para confiar, coisas que as procelárias não vêem porque são... procelárias.

Em primeiro lugar: quem poderia dizer que aquele pequeno ser antropóide, convivendo com mamutes e assemelhados, os dominaria em alguns milhões de anos? Ou que os bandos se tornariam tribos, as tribos criariam clãs, os clãs se transformariam em povos e os povos constituiriam nações? Visto isso, porque não posso – não devo – acreditar que as nações venham a constituir uma comunidade planetária de seres essencialmente iguais mas diferentes na sua existência?

Todo este processo significou que, a cada salto da inteligência, foram criados novos problemas, que por sua vez foram encarados e resolvidos, permitindo novo salto. Pode-se questionar talvez se eles poderiam ser melhor resolvidos; mas não se pode deixar de considerar que foram resolvidos. Porque não será assim no futuro, próximo ou remoto?

Vejo imagens particularmente terroristas anunciando que mundo vai ficar sem água potável em 50 anos (o engraçado é que ainda nem começamos a dessalinizar a água do mar), que o aquecimento global vai exterminar tudo (mas as calotas polares já derreteram antes, e já tivemos eras de gelo, também), que os desertos tomarão conta da terra (céus, temos hoje bancos genéticos, estoques capazes de reconstituir qualquer floresta em vinte anos – a Floresta Negra está sendo reconstituída, e já se registram até ataques de lobos), e outras coisas mais. Claro que precisamos ser responsáveis até para que os estoques durem mais, e não se percam, novamente, dingos e moas. Eu defendo o uso de produtos com menos tempo de degradação, e a racionalização de uso do resto. Mas entre ser responsável e acreditar que o mundo vai acabar, há uma enorme diferença – e é aí que entra a injustiça das procelárias.

As procelárias desconfiam da capacidade humana de resolver problemas, e eu desconfio que essa desconfiança delas se deve ao fato de que não serão elas que estarão no comando das soluções. Porque a minha geração deixou, sem dúvida, um mundo melhor para a próxima: basta olhar para um computador para constatar isso, basta observar a queda dos índices de mortalidade para ter certeza. A geração ascendente terá que resolver os problemas de sua época. E resolverá, do seu jeito, que não será o nosso.

Procelárias da filosofia falam da falta de ética e da degeneração dos costumes. Na Bíblia já se falava disso – é só ler alguns profetas, ou mesmo a história de Moisés. Na verdade, ética e costumes vivem em conflito, e ambos mudam o tempo todo. Fenícios vendiam-se a si mesmo como escravos por tempo limitado, para pagar dívidas. Na sua ética, o pior era não pagar. A permissão de matar varia conforme a cultura, mas existe em todas. No fundo, a composição da natureza humana é a mesma. Será a mesma no futuro, com razões e permissões diferentes, que nos parecerão degenerados, talvez, mas que são a resposta da época para os problemas da época.

As procelárias não compreendem isto. Elas sequer se preocuparam em saber se é verdade ou não o que as lendas e os poemas dizem dos pássaros chamados procelárias, como viventes da tempestade. Na verdade, esses pássaros procuram segurança diante da tempestade, como qualquer ser. Só que, para eles, a segurança não é a terra – mas o mar alto, porque são aves pelágicas – o oceano é a sua terra.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Arte, o mistério

Atores disléxicos, pintores sem mãos e um nobel de literatura que confessa, semvergonhamente, que jamais conseguiu dominar a ortografia de sua língua-mãe, tendo necessidade sempre de alguém que lhe corrigisse os erros...

No entanto, quem discutirá a qualidade incrível dessas pessoas? Diz-se que da Vinci era um pintor displicente: dedicava-se mesmo à invenção, particularmente de equipamento bélico. E, no entanto...

Alguém disse uma vez que produzir uma obra de arte leva um por cento de inspiração e o restante, de transpiração. Mas não é verdade. Embora haja necessidade de trabalho, manual ou intelectual, a obra de arte traz um selo específico que a diferencia de todo o resto. Inclusive de suas cópias.

Jamais ninguém conseguiu definir com clareza qual o componente que faz com que entre dezenas de quadros, centenas de livros, milhares de peças teatrais, milhões de músicas, nasça aquela que é, de fato, arte. É impalpável e indizível: alguma coisa secreta e misteriosa que nos faz admirar, mesmo sem entender, mesmo sem ter idéia do que se trata. Uma ponte de sensibilidade na essência do que é humano: e mesmo não gostando da agressividade das cores, você pára diante de Miró.

Nunca antes a produção intelectual da humanidade esteve tão ao alcance das pessoas como hoje. Do lixo ao luxo, a rede de computadores apresenta de tudo. Inclusive um concerto sinfônico com um guitarrista no solo: pura arte, que faria Richard Wagner levantar-se do túmulo para ouvir, conversar e talvez morrer de novo, de pura inveja – porque talvez que a guitarra fosse uma nota faltante para os angustiados violinos da abertura da Tannhäuser.

Ou estará completa uma obra de arte, para sempre? As milhares de interpretações para a Ave-Maria de Bach são, afinal, o que? A melodia é a mesma, mas em torno dela, para além dela, sob ela, a liberdade de fazer transforma, gera outras sensações e efeitos. Serão mais arte para a arte original? E, afinal de contas, o que faz da Ave-Maria de Bach ser tão amada?

Leio as cartas de Clarice Lispector para suas irmãs, lembro Aracy Balabanian dizendo “Meus filhinhas!” e constato que a despreocupação intelectual de Clarice ao escrever para suas queridas não impede o rigor sintático que é uma das faces de seu talento. As cartas não foram escritas para ser literatura, mas são: a síntese narrativa em que se desenvolvem demonstram a cepa de onde vieram. São cartas que falam de trivialidades, e mesmo assim, são incomuns. A diferença, creio, está em Clarice.

Mas apenas creio; arte é ato de fé, sem explicação plausível e racional. Assim, posso crer no que quiser sobre a arte, que não fará a menor diferença. Porque a arte é o maior mistério humano, o abismo das sensações aberto diante de nós, para mergulhar planando e desafiar todos os limites sem conseguir enumerar nenhum.