domingo, 20 de dezembro de 2009

Boas festas

Boas festas!

Que todos vocês sobrevivam ao trânsito, não se deparem com nenhuma figura fora de si por droga ou álcool, no caminho que fizerem.

Que não sejam assaltados, nem adoeçam.

Que os que têm religião e acreditam no Natal não façam deste uma absolvição geral para as pequenas crueldades de todos os dias.

Que os que não têm religião consigam dar conta de todos os compromissos e obrigações sem se deprimir e sem se endividar demais.

Que os que têm famílias ultrapassem as disputas, dos ciúmes, as inconveniências sem maiores consequências; que tenham paciência com o chato, saibam acalmar os impacientes, contornem as inconveniências dos linguarudos, segurem a barra dos adolescentes e consolem as crianças que receberam os presentes errados.

Que aqueles que estão sozinhos encontrem ambientes onde possam se sentir incluídos em algum grupo social; e que os amantes da solidão consigam ficar sós.

Que os que amam o silêncio não tenham tremes-terra na vizinhança.

Que os que gostam de fogos de artifício possam soltá-los sem riscos.

Que os que estiverem de plantão tenham noites sossegadas e sem mortes.

Que ninguém se torture por ter esquecido um presente.

Que os que estão longe de casa e com saudades encontrem locais acolhedores, que lhes abrandem a distância.

Que os doentes encontrem dias de calma e melhoras, e que seus acompanhantes possam dormir despreocupados.

Que os que estiverem presos suportem estas festas sem muita nostalgia.

Que todos possam melhorar as refeições destes dias; que os que fazem doações lembrem-se que há muito mais necessidades do que podem atender sozinhos.

Que possamos, todos nós, acreditar que estaremos melhores - nós e o país - no próximo ano.

Boas Festas! Feliz Ano Novo!

sábado, 5 de dezembro de 2009

De panetones e pensamentos

Aparício Torelli começa:
"A moral dos políticos é como elevador: sobe e desce. Mas, em geral, enguiça por falta de energia, ou então não funciona definitivamente, deixando desesperados os infelizes que confiam nele".

O romano Catão comenta:
“Os ladrões de bens particulares passam a vida na prisão e acorrentados; aqueles de bens públicos, nas riquezas e nas honrarias”.

Antonio Vieira observa:
“Muitos cuidam da reputação, mas não da consciência”.

Aparteia Bill Gates:
"O sucesso é um professor perverso. Ele seduz as pessoas inteligentes e as faz pensar que jamais vão cair."

Mas Benjamim Constant volta para o foco:
“Os depositários do poder têm uma disposição desagradável a considerar tudo o que não é eles como uma facção. Eles chegam a incluir às vezes a própria nação nessa categoria”.

La Rochefoulcault reflete:
“Raramente conhecemos uma pessoa de bom senso além daquelas que concordam conosco”.

Stanislaw Ponte Preta reforça:
“A prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento”.

Jean-Jacques Rousseau abranda:
“O povo, por ele próprio, quer sempre o bem, mas, por ele próprio, nem sempre o conhece.”

Georges Clemenceau brada:
“A democracia? Sabem o que é? O poder dos piolhos comerem os leões!”

Napoleão Bonaparte objeta:
“Não tenhais medo do povo. Ele é mais conservador do que vós”.
E acrescenta:
“O erro está nos meios, bem mais que nos princípios”.

Volta Aparício:
"O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato”.

E o Marquês de Maricá acrescenta:
“Há duas coisas que não se perdoam entre os partidos políticos: a neutralidade e a apostasia”.

Roberto Campos, ácido:
“A burrice no Brasil tem um passado glorioso e um futuro brilhante”.

Maquiavel comenta:
“O primeiro método para estimar a inteligência dos governantes é olhar para os homens que tem à sua volta.”

E Getúlio Vargas:
“No Ministério há homens capazes. O problema é que alguns são capazes de tudo.”

Aparício comenta logo:
“Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio!”

Giordano Bruno murmura:
“Que ingenuidade, pedir para quem tem o poder para mudar o poder!”

E Aparício, de volta:
“Os vivos são e serão, sempre, governados pelos mais vivos”.

Nelson Rodrigues, amargo:
“Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos...”

E Aparício conclui:
“O Brasil é feito por nós. Só falta desatar os nós..."

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Segunda adolescência

Aos sessenta anos, descubro que entrei numa segunda adolescência. Adolescência às avessas, é verdade, mas, de repente, retornaram todas aquelas questões que perturbam o início da vida adulta.

Só que, na primeira adolescência, você ainda não pode. Na segunda, você não pode mais.

Olhar-se no espelho. O que vejo no espelho não é, absolutamente, como me sinto. Exatamente como uma adolescente, que jamais está satisfeita com o que encontra no espelho que não reflete o que vai por dentro. Aos 16, você encara o cabelo hor-rí-vel – exatamente como aos 61. A pele – ah!, meu Deus, espinha! diz a de 16. E a de 61: “Essas manchas!” . Em ambos os casos, não tem maquiagem que dê jeito, resta sair com a sensação de que todo mundo vai reparar.

A roupa nunca serve. Para a de 16, adulta em excesso; para a de 61, jovem demais. As queridas saias e blusas de repente se tornam objeto de olhares significativos. Você sente que errou, mas não sabe aonde. Acaba perguntando e ouvindo a mesmíssima resposta: “Essa roupa é um pouco inadequada, não?”

Você se sente deslocada, com ondas de insegurança, aos 16 e aos 61. Frequentemente cobram de você um comportamento padrão – que, aos 16, você ainda não alcançou, e, aos 61, você não dá conta mais. Você muda de gostos – aos 16, porque quer experimentar o mundo, aos 61 porque não aguenta mais aquela preferência – e todo mundo estranha: “Mas o que há com você?”

Ora, o que há! É que sou e não sou, do mesmo jeito que um adolescente é e não é. Estou vivendo um lusco-fusco: só que agora não é aurora, é ocaso.

Passei a ouvir uma frase que esquecera há muito: “Mas você não tem idade para fazer isso!” Muda apenas o advérbio: na primeira adolescência, entre o “tem” e o “idade” acontece um “ainda”. Na segunda adolescência, um “mais”. O resultado é o mesmo: um limite, uma indefinição, uma época de cores mal definidas, de luz e sombras.

Você toma uma dose de qualquer coisa e, instantaneamente, exatamente como aos 16, enfrenta um olhar de advertência. Aos 16, geralmente de alguém mais velho; aos 61, de alguém mais novo. Mas é o mesmo olhar.

Apaixonar-se é um problema. Adolescentes se apaixonam pela paixão, amam o amor, por assim dizer. Desconfio, pelo que tenho visto por aí, que mulheres de 60 também. Uma de 16 ouvirá: “Mas ele é velho demais para você!”. Uma de 61: “Mas ele é novo demais para você!”. O que, traduzido, quer dizer: inadequado, inadequado.

O sentimento de incompreensão é forte aos 16, como aos 61. As múltiplas restrições não casam com a disposição de ânimo. Você se machuca à toa com as boas intenções alheias. A diferença é que, aos 61, você sabe que as pessoas são bem intencionadas, e que geralmente têm razão. Aos 16, você bate numa muralha. Mas eu não consegui avaliar o que é pior.

Até porque na primeira adolescência, você pode tudo; e, na segunda, o que você pode é tudo o que tem.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Para não esquecer

Esta semana mergulhei em Varsóvia.

Eu não gosto de romances nem de filmes de guerra. Tanto nos romances como nos filmes, ela é maquiada. Mas eu leio documentários e vejo documentários. Tento entender como e porque acontece. O que leva as pessoas para a trilha da morte. Ainda acredito que este é um dos capítulos trancados do conhecimento, das coisas que não se sabe sobre a espécie humana.

Mas eu mergulhei em Varsóvia porque a luta polonesa na segunda guerra mundial foi algo de patético. Uma das fotos mais emblemáticas desta luta foi feita por Raymond Cartier, no seu antológico “II Guerra Mundial”: uma carga da cavalaria polonesa contra os tanques alemães. Sabres contra metralhadoras. Uma desesperada coragem, sem nenhuma chance ou alternativa.

O livro é “O Zoológico de Varsóvia”, de Diane Ackerman, e é uma história da resistência polonesa e da salvação dos judeus perseguidos.

Eu li, também, porque é preciso não esquecer até onde pode nos levar o cientificismo. Nesta época de sacralização da ciência, é preciso ter em mente que as muitas vertentes podem ser erradas, podem ser perigosas, podem nos arrastar para o excesso, para a tristeza – e, no rastro dela, à crueldade, como escreveu Drummond.

Há cerca de um mês, eu mergulhei no Gulag. Eu li Soljenitsin assim que saiu a tradução brasileira, ainda na guerra fria. Desta vez, fui pela internet, a partir dos discursos de Putín e Medvedev sobre o assunto – este último disse ser necessário ter o Gulag na memória russa, com todos os seus horrores, para que o país possa resolvê-lo. Eu queria saber como anda essa revisão. Encontrei museus, associações, páginas de depoimentos, a maioria delas ainda não traduzida.

O genocídio é semelhante, as técnicas são diferentes. O extermínio na Polônia durou quatro anos; na URSS, mais de vinte. A morte na tundra siberiana vinha por meio das doenças provocadas pela exaustão nos trabalhos forçados, fome e frio. Era lento e longo; a crueldade cotidiana, levando o horror contínuo para as vítimas, tinha formas diferentes, mas era, essencialmente, a mesma.

Os rasgos de heroísmo – aqueles gestos redentores, que nos devolvem esperanças – também são semelhantes. Em Varsóvia, alta adrenalina. No Gulag, paciência e piedade. Nos dois casos, o passado volta na forma de documentos abandonados, escritos, diários, jornais de resistência.

Eu estou tocando neste assunto, hoje, por causa da visita do presidente do Irã, e do discurso oficial da tolerância para com um homem que nega ter havido um extermínio judeu. Vejam bem: a questão não é com o presidente do Irã. É com Ahmadinejad, mesmo. Khomehini, o aiatolá-símbolo da revolução iraniana nunca chegou a esse ponto, apesar de sacerdote fundamentalista radical e de seu ódio a Israel.

Eu me pergunto até onde a tolerância com Hitler e Stálin responde por Varsóvia e pelo Gulag. E até onde irá o governo brasileiro nesta “ambição de se tornar ator importante no palco diplomático global”, como expressou o NY Times. E fico triste ao ver, nas enquetes feitas pela internet, que a grande maioria dos brasileiros acha que o Brasil não tem nada a perder proporcionando um palanque para Ahmadinejad.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um dia igual a todos os outros

São cinco horas da manhã, e acordo com um som grave e repetido, que estremece o ar. O quarto está fechado, todas as janelas da casa estão fechadas. É um carro que passa devagar – um carro de passeio – o som tão alto que ultrapassa todas as barreiras.

Levanto, vou ao banheiro. Abro a torneira, ela despeja um pequeno filete e ronca. Não há água, ainda. Vou para a cozinha e começo meu dia.

Minutos depois, buzinas ásperas se intercalam com o ronco de motores desajustados de ônibus, e assim continuará por todo o dia.

Às seis e meia, vou à padaria. Ao sair, sinto um cheiro forte de urina, recém-lançada no muro, e vejo garrafas vazias e lixo no pequeno canteiro em torno de uma árvore, em frente à minha porta. Nesse canteiro, plantei lírios do vale e vindicá, na esperança de que as flores impedissem o vandalismo. Foi em vão. Como agora, desde o começo as pessoas trouxeram seus grandes cães para fazer suas necessidades ali – e permitindo que eles arrancassem as plantas, escavassem a terra e revirassem o lixo depositado à noite por um vizinho –não sei qual - que deixa seus sacos exatamente ali.

Um ciclista passa na calçada, apesar da rua ainda estar livre de carros. Leva uma criança no varão, a caminho da escola. Não tem campainha nem buzina, nem luz, nem olho de gato. Até entendo que ele escolha a calçada para proteger a criança da selvageria do trânsito. Mas ao escolher a calçada. ele expõe outras crianças que caminham para a escola, também – e não têm culpa de nada.

Chego à padaria, e o primeiro flanelinha do dia já está a postos. (Penso se foi ele que urinou no muro, e me repreendo por isso: poderia ser qualquer um, já vi pessoas melhor vestidas fazendo isso). Ele grita para o vendedor de café e de apostas no bicho que assumiu o seu ponto na esquina fronteira, indiferente aos que dormem nas casas fechadas. Na padaria, uma fila já cansada se move em silêncio pelo balcão. Na volta, cruzo com pessoas igualmente silenciosas a caminho do trabalho.

Faz calor, agora, e vou cuidar das pequenas coisas do dia, nas ruas próximas. Tenho que desviar de cadeiras e mesas lavadas a céu aberto, um rio de espuma de sabão no chão, cobrindo meia quadra: uma sorveteria e um bar não se importam a mínima com a ginástica dos passantes tentando proteger os sapatos – e não escorregar.

Na frente da agência do banco, três camelôs armam suas barracas, abrem as cadeiras e ocupam a calçada. Um homem chega conduzindo um longo carrinho de mão: sobre ele, duas grandes e sujas vasilhas cheias de comida e um fogareiro a carvão, assando espetinhos. Ele pára, vende dois para motoristas de táxi que, depois de comerem, atiram fora o espeto e o saquinho de plástico que continha a farinha. Direto na valeta da calçada, onde já se encontram outros restos.

A fila dos idosos esperando a agência abrir é grande. Penso que os bancos conseguiram transformar privilégio em exclusão – a preferência, aqui, significa isolamento.

No supermercado, a conta dá uma fração de dois centavos. A moça do caixa arredonda: ela não tem troco, há muito tempo as moedas de um e dois centavos desapareceram de circulação. Não há dessas moedas no supermercado; pensando bem, há muito tempo eu não vejo uma delas, em lugar algum. O embalador ignora minha recusa em usar os sacos plásticos. Uma mulher espera que a caixa termine de contar uma fofoca para a supervisora e a atenda.

Atravesso a faixa, uma bicicleta passa raspando por mim. Olho a rua, há pelo menos meia dúzia de tipos mal encarados circulando por ali. Alguns estão claramente drogados. Um casal muito jovem está deitado na calçada, sobre papelão. São dez horas da manhã – penso que estão fazendo de propósito, para provocar encrenca.

Um carro de polícia passa devagar, e pára diante dos sinais exagerados que lhe faz um segurança que acabou de largar o serviço. Eu presto atenção. O rapaz sai correndo pelo meio da rua – a viatura está na faixa do meio – abre a porta e se atira para dentro. O carro vai embora sem incomodar ninguém. O segurança é, provavelmente, um policial fazendo bico – e, claro, quem ajuda amigo é.

No mesmo momento, um ônibus pára a cinco metros do acostamento, despeja seus passageiros, pega outros – todos saindo no meio dos carros, sem nenhuma estranheza.

No cruzamento próximo, buzinadas e xingamentos. Um agente de trânsito, indiferente ao que se passa, multa tranquilamente os carros estacionados na calçada, um após o outro.

O dia vai, e chega a noite. Recebi uma conta dobrada da companhia telefônica (mesma data, mesmo valor, mesma emissão, mesmo tudo); um convite todo amassado, tal a perícia com que o carteiro o colocou na caixa do correio; e o “restaurante” fronteiro começa a testar o som para mais uma noite de barulho e música ruim.

Cidadania? A gente vê na tevê...

domingo, 1 de novembro de 2009

Voz ao telefone

Atendo o telefone, e uma voz anódina diz:

- Por-gentileza-pedir-a. Maria-Francis-da-Costa-Pereira. Para-comparecer-a...

Desligo. É a segunda vez que recebo telefonemas impessoais para terceiros desconhecidos.

Não tenho o que fazer. Não há como dizer para essa voz gravada que a ligação está errada, que não há nenhuma Maria Francis da Costa Pereira neste telefone. Sabe Deus onde ela deveria comparecer; talvez esteja esperando alguma coisa, talvez seja um aborrecimento qualquer. Talvez seja importante, talvez não; mas é um absurdo, isso.

Faz parte dos abusos contemporâneos, particularmente de empresas e órgãos públicos que têm que atender multidões.

Um dia destes tive que ligar para o Banco Central. Percorri um longo e solitário caminho ouvindo máquinas me dizerem o que fazer e – pasmem! – advertindo repetidamente qualquer coisa assim: preste-atenção-no-que-está-fazendo, porque daqui por diante... tecle cuidadosamente, porque daqui por diante... Toda minha consciência humana se sentiu insultada; humana, mesmo, que eu não errei a palavra: a consciência cidadã já estava ultrajada muito antes, e foi isso que me levou a fazer a ligação.

Meus sonhos passaram a incluir a recuperação da imagem do telefone, aquele objeto fixado com angústia ou carinho, mas morando firme no coração da gente: o toque introduzia uma pessoa. Distante, mas uma pessoa. Desagradável, talvez, desconhecida, às vezes, mas era uma pessoa.

Agora, não. O toque pode introduzir uma máquina. Ou carradas de má-fé.

E a mensagem que decifro (não gosto do verbo decodificar) é: ei, número DX, trate de se enquadrar! você não passa de um grão de pó diante desta organização! reduza-se à sua insignificância!

Pobre Maria Francis da Costa Pereira! A insignificância é tal que sequer consideram eles a possibilidade de ter ligado errado. Afinal, trata-se do sacrossanto Sistema!

Digo sacrossanto porque é assim que atendentes de grandes companhias, bancários, funcionários públicos e empregados outros o consideram. “Meu Sistema não permite!...” – e dane-se você. “Tem que esperar o Sistema”. “Não é isso o que está no Sistema”. E acabou a conversa, como se direitos e capacidade de raciocínio fossem um lixo. Oh, o Sistema!

Ele me fez levar um dia inteiro de tentativas para passar um e-mail – sabem para quem? – para o meu provedor de internet, a empresa que processa meus e-mails! A cada endereço que encontrava repetia a história. E lá vinha o e-mail devolvido, com a seguinte observação: “este é um e-mail automático, por favor, não responda”. O último endereço que eu encontrei estava escondidinho no fundo de uma página, que já vinha de outra, que vinha de outra e de outra.

Se acha que eu estou exagerando, tente. Entre nos serviços de atendimento ao consumidor dos provedores, das agências de atendimento. Encontrará um telefone de atendimento, nunca um e-mail, assim, de primeira.

E essa é outra perversidade com o telefone. Porque o telefone, caríssimos, não gera documento. E mais: quem é que vai se lembrar do que falou numa ligação passada há meses? Além de que a linguagem oral é a maior fonte de desentendidos, principalmente quando, do outro lado da linha, há uma máquina, ou uma pessoa que faz questão de se comportar como máquina, repetindo ad nauseam o que você já disse que discorda.

E sempre podem colocar você ouvindo a musiquinha chata, até cansar e desistir. Quer uma prova? Experimente cancelar um contrato de Velox na Oi.

Eu recebo, volta e meia, pedidos de abaixo-assinados contra a perversidade praticada com animais. Penso em fazer um a favor da... telefonia digna? dignidade telefônica? não sei bem, mas o que eu queria mesmo era o telefone usado sem má-fé. Sem vozes fantasmagóricas - com corpos atrás das delas, gargantas reais emitindo sons, inteligência humana para resolver problemas.

Em favor da Maria Francis e de mim mesma.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A hora de sair

Grande parte da boa imagem histórica de um político está na forma – e na hora – que ele escolheu para sair de cena. É preciso uma boa dose de humildade e autocrítica para isso. Artigo, aliás, geralmente inexistente nos aceiros de vaidade, hoje mascarados pelo marketing defensivo, que habitam o coração da maioria daqueles que, por esta ou aquela razão, sobressaem-se dos demais.

George Simenon, no seu “O Presidente” (que não é um livro policial, note-se) detem-se sobre o processo superveniente ao afastamento: a mágoa, o cultivo de rancores, a perda progressiva de importância, a visão perspectiva da importância do esforço – quanto mais o tempo passa, menos importante se torna a crise pontual -, a contabilidade das perdas pessoais e, finalmente, a constatação de que os documentos escondidos, para defesa pessoal ou para o ataque a terceiros já não significam nada. O anônimo presidente criado pelo escritor lança-os ao fogo e se entrega à morte. Acabou.

Não posso deixar de pensar em outro livro, “Porque almocei meu pai”, de Roy Lewis, sociólogo militante e literato bissexto. Lewis reflete sobre o canibalismo do poder, no início do tempo humano. E juntá-los a um terceiro: “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, um livro extraordinário sobre nós, os brasileiros.

Em trinta anos no jornalismo testemunhei quedas e afastamentos de vários todo-poderosos circunstanciais. Raros conseguiram ultrapassar o limiar da porta de saída com tranquilidade. Estes geralmente souberam a hora de cair fora, interpretaram corretamente os indicadores para ceder a vez. Alguns preocuparam-se em deixar marcas: seu nome inscrito aqui e ali, numa rua, num bairro, num edifício, num livro. Outros postaram-se no centro do mundo e de lá não saíram, falando de si mesmos e suas realizações a todos e qualquer um, sem perceber que, com isso, tornavam o círculo de ouvintes cada vez menor. Outros ainda debruçaram-se sobre suas memórias, esquecidos do basilar princípio do jornalismo: old news, no news. Nada mais chato que a política passada – quem duvidar, que leia “O assassinato do general Pinheiro Machado”, livro que consiste na sessão de júri para julgar o assassino, e que foi publicado pelo furor que o julgamento causou, na época. Mesmo agora, em que a internet estabeleceu uma nova temporalidade para a notícia, em quatro dias ela se esgota.

A maioria se entregou ao “meu tempo” e ao desafeto. E, nessa maioria, extremados tornaram objetivo de vida pequenas vinganças, que, em alguns, chega a enxovalhar a própria biografia.

Tive um colega de jornal, o Luiz Paulo Freitas, dono de uma curiosidade insaciável e de uma memória do mesmo porte, que não perdia de vista os caídos, e nos informava sobre eles. Quase sempre na frase tinha um “coitado!” – e com essa palavra ele definia o sofrimento do apeado com a saída.

Havia quem não fosse “coitado!” – os que decidiram fazer outra coisa, viraram a página, dedicaram-se ao que lhes era possível com alegria e felicidade, encontraram seu lugar. Como Fernando Henrique, por exemplo. Sabem o que ele faz, hoje? Continua perseguindo o sonho da coalizão da América Latina. Ao lado de quatro outros ex-presidentes (entre eles Oscar Arias, Nobel da Paz) promove encontros, reuniões e debates em busca da paz continental. Esses cinco homens souberam reconhecer seus limites e sua importância. A porta de saída serviu-lhes de porta de entrada para outro espaço, onde mantém sua contribuição.

Comparando-se a Sarney, que se tornou um títere embalsamado em vida...


PS - Eli, mande-me seu e-mail!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

De touros, tartarugas e leopardos

Vejo um vídeo de dez minutos de Jose Tomas e leio furiosas declarações de direitos dos animais. Leio um artigo de David Rostchild defendendo a arte em marfins e cascos de tartaruga, e mais furiosas declarações de direitos dos animais. Vejo um vídeo de propaganda de um país nórdico, contra a violência doméstica, que termina com a afirmação de que algumas crianças gostariam que seus pais fossem animais.

Sou informada que as touradas vão acabar em Barcelona: a cidade, redesenhada, está sendo esterelizada, também. Nada de sangue e areia primitivos, entre as torres do século XXI! E que quase a metade dos espanhóis não está nem aí para as touradas. Sou informada, também, que ilhéus do pacífico sul continuam a fazer um tosco artesanato com cascos de tartaruga que – juram eles para as instituições que os ajudam - coletam, pacientemente.

Há muito o marfim e o casco de tartaruga foram substituídos por materiais melhores e mais resistentes, tanto para o uso doméstico como para o artesanato de luxo. Resta um pequeno espaço de colecionadores e joalherias de alto luxo. O mundo mudou, vai continuar mudando, mas algumas coisas permanecem: entre a necessidade humana e as necessidades dos outros seres, a prioridade é sempre humana.

Por exemplo, a batalha em favor dos leopardos das neves. (Encontrei-os na web quando procurava guardanapos, acreditem!). Pacientemente, uma ONG trabalha em três países, com alternativas de renda em comunidades muito pobres (aí é que entram os guardanapos: na Ucrânia) para que elas deixem os leopardos em paz. Mas se um leopardo ataca o curral dos carneiros de uma família, não há o que fazer. Até os ambientalistas mais radicais concordam com sua morte. Mesmo sabendo que eles são muito mais raros que os elefantes portadores de marfim.

A tourada, no entanto, é um pouco diferente disso. O elo de ligação com tartarugas, elefantes e leopardos das neves é o respeito à vida de vertebrados não humanos (sim, porque para invertebrados, a atenção positiva se limita à utilidade deles; no mais, é política inseticida, mesmo). Desconfio que o que torna as pessoas tão passionais quando falam de touradas é menos o sofrimento do touro do que a exposição, de forma crua, do quão podemos ser letais. E, talvez, da própria morte, assim, de cara, com cheiro de sangue e tudo.

Jose Tomas consegue chegar à essência da tourada, que é a afirmação de poder humano: o racional perante o irracional, a calma diante fúria, a lâmina construída contra o chifre, a coragem do pequeno diante do grande, a elegância sobre o desajeito – e a individualidade.

É primitivo, naturalmente, e incomoda por isso: nossa civilização já conseguiu fazer com que a maioria finja ignorar que a sua sobrevivência depende da morte de outros seres. E a morte ritual de um touro nos joga na cara: nós somos assim.

Não sei se Barcelona ficará melhor ou pior sem as touradas; o que sei é que Jose Tomas é um emblema, e, parafraseando Rostchild, não há sentido em renegar nosso lado negro.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Clara, a paraense

Clara Martins tinha 19 anos quando ingressou no mundo científico, ao lado de, nada mais, nada menos, Paul Le Cointe. Ela estudava na Escola de Chimica Industrial, fundada em 1910 e fechada em 1931. Sua presença no primeiro e único boletim da Escola de Chimica, publicado em 1929, é como colaboradora de Le Cointe, líder da equipe francesa que tocava a escola, numa contribuição ao estudo químico das plantas amazônicas.

(Eu penso no que Clara deve ter enfrentado para entrar nessa escola, uma adolescente de dezesseis anos... a ciência era, nos anos 20 do século XX, um reduto masculino; creio que o fato de ter uma inteligência extraordinária a ajudou; mesmo assim, numa época em que o destino feminino vinha traçado do berço, estudar química industrial, com cientistas franceses – devia ser demais para a província!)

Dois anos depois daquela estréia, a escola era fechada por Getúlio Vargas.

Mas Clara tinha adquirido uma paixão, definitiva: a Amazônia.

Vinte e cinco anos depois, Clara conseguia sua reabertura. Ela já se chamava Clara Pandolfo, e já obtivera sua primeira parcela significativa de poder: estava na SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a antecessora da SUDAM), e havia otimismo – e dinheiro – em relação às coisas regionais. A Escola, agora, era escrita com “qu” e mantida pela Associação Comercial do Pará e SPVEA. A Escola de Química Industrial continua até hoje, transformada em Faculdade, dentro da Universidade Federal do Pará.

(Penso no que Clara faria hoje, ao ver o “seu” curso de química como um dos quatro piores do Brasil... Ah, não ficaria por isso mesmo!).

Nada mais tivesse feito Clara e isso já seria suficiente para garantir-lhe um espaço considerável na história da ciência paraense. Só que Clara era maior, muito maior: movida pela paixão desenvolvida com Le Cointe, tornou-se uma das maiores autoridades em Amazônia no século XX. Centenas de trabalhos e alguns livros refletem seu pensamento e sua participação.

Sim, porque Clara jamais foi omissa. Solidamente ancorada em ciência e técnica, foi uma militante que compareceu a milhares de eventos, escreveu dezenas de artigos, debateu, reuniu, lutou e interferiu politicamente onde quer que estivesse.

Era de uma lucidez impressionante o que, ao lado de uma inteligência extraordinária, lhe dava um senso crítico capaz de perceber conseqüências de longo e médio prazo com extrema rapidez.

(Eu penso em Clara enfrentando a aceleração tecnológica, que a alcançou depois dos 50 anos. Olhando os computadores e extasiada diante das telas que lhe mostram o que só imaginava através do estudo dos livros. Lutando com a velocidade, tentando compreender, observando a rápida mudança nos costumes, na tecnologia...).

Sua militância, é claro, foi ultrapassada: militâncias são efêmeras e circunstanciais. Seu pensamento, entretanto, fica. E muito do que disse dói, dói fundo numa certa elite e numa certa esquerda. Talvez por isso os comentários sobre sua morte são raros e esparsos; talvez por isso as pessoas esqueçam que Clara foi uma pioneira na ocupação de espaços intelectuais pelas mulheres paraenses; foi uma intransigente defensora da Amazônia; foi uma realizadora; foi uma servidora pública exemplar. Honrou seu mestre, sua família e sua geração.

Mais: gostem ou não, suas palavras ficam. Como estas, que escreveu em 1956, aos 44 anos, num trabalho vencedor de um concurso promovido pelo jornal “Folha do Norte”:

“Uma exploração florestal bem dirigida estará forçosamente jungida à necessidade de desenvolver programas de reflorestamento. A indústria madeireira que não providencie a reposição da cobertura florestal da área desmatada, será obrigada a ir buscar a distâncias cada vez maiores a madeira para seu suprimento, acarretando custos operacionais cada vez mais elevados”.

Simples assim. E ainda crítico, há meio século...

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Sons antigos

O carro-som da paróquia passa convocando para uma manifestação dominical pela paz. O locutor pede que levem bandeiras brancas e faixas.

Clérigos e religiosos têm promovido essas passeatas/procissões por toda a cidade, nos últimos tempos, nesta Belém que a droga está banhando de sangue. Em alguns bairros, como na Terra Firme, crenças diversas se misturam no branco, o espectro de todas as cores: pedem paz, paz, paz.

É uma prática antiga: diante do inimigo poderoso – seja ele a fome, a peste ou a guerra – reza-se coletivamente. Cortejos e procissões ocorrem da picada no mato ao asfalto, passando pelas ruas pavimentadas de todos os tempos.

O som é antigo, pois. Mas hoje, o inimigo não está nas portas da cidade nem do país, não há epidemia mortal nem fome. A paz que se pede é entre nós mesmos.

Seremos nós nossos próprios inimigos? Onde está o brasileiro cordial, que durante tanto tempo foi apresentado ao mundo? Ou esse brasileiro nunca existiu, era uma ilusão dourada que agora se desfez? E por acaso – estamos em guerra?

Não, não estamos em guerra.

No entanto as pessoas sentem necessidade de ir às ruas para rezar em procissões pedindo paz – como se estivéssemos em guerra.

As mortes violentas incham as estatísticas – como se estivéssemos em guerra.

Mas admitir um estado de guerra é reconhecer a existência de duas populações inimigas uma da outra. É reconhecer a existência de uma trincheira, de uma divisão. É dar como verdadeiro que os dois lados estão irreconciliáveis, que não há negociação possível, nem concessões a serem feitas.

Mas não há esses dois lados, nem essa trincheira – pelo menos, não de forma facilmente identificável. A violência permeia todos os espaços, físicos ou sociais: a sala de aula, o clube, a rua, o recesso doméstico, a repartição pública, a loja, o banco, a família, os grupos que tentam se divertir ou trabalhar em qualquer lugar.

O cidadão se vê tão impotente como quando tinha exércitos nas portas da cidade, ou quando a peste varria o interior dessas mesmas cidades: as instituições sociais incumbidas da defesa de todos e cada um estão como que naufragadas.

E eu acabo de ler os “princípios e diretrizes” votados na Conferência Nacional de Segurança Pública. Também são sons antigos.As propostas mais votadas são as reivindicações corporativas: mais salários, mais vantagens, mais privilégios. E o restante pode ser resumido numa única frase, confeitada de lindas palavras: que não se mude nada.

É melhor, mesmo, ir às procissões. Pelo menos estes sons antigos têm a harmonizá-los a majestade dos séculos.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Aiêee, Rubão!

Rubão era um pilar da sociedade.

Não tinha medo de careta. Nem do que está atrás da careta.

Poucos conheciam o seu sorriso.

Cuidava-se: caminhadas pela manhã, trabalho de tarde. Ooops, esqueci de dizer que Rubão não trabalhava como todo mundo, de sete às sete. Era um pilar social: começava por volta das dez; almoçava em casa, visto que dispunha de carro e motorista (este, que não era pilar, ia de sete às sete, oito, nove, dez...)

Tinha seus rolos privados e discretos, como todo pilar que se preze – é preciso manter a imagem, claro.

Rubão atendia grandes e pequenos.

Não se pode dizer que fizesse diferença entre eles, por serem grandes ou pequenos; a diferença era a sua permanente ansiedade de demonstrar que não fazia diferença. Isto o levava, às vezes, a procurar chifre em cabeça de cavalo, dentes em minhocas e os olhos do Floquinho, o cachorro do Cebolinha. À falta dos chifres, dentes e olhos procurados, criava algumas protuberâncias para se justificar. E todos o julgavam com leniência – afinal, eram pequenos excessos. De zelo, é, de zelo. Pronto.

Porque ele, mesmo, não se justificava. Ele era um pilar.

Muitos o consideravam um exemplo. Mães apontavam para os filhos: olha o Rubão! – para provocar-lhes vergonha de seu comportamento.

Ele se considerava modesto, mas o incenso social o comprazia. E, com o tempo, ai de quem a ele se contrapusesse!

Rubão estremecia, trincava os dentes, punha-se a catar fumaças de maus erros. Se conseguia uma chama que fosse dessa fumaça, fazia uma fogueira, onde assava incréus e desafetos. Afinal, era um pilar, sua responsabilidade ia além, muito além daquela de seus pares. E, ainda assim, era julgado com leniência e sorrisos de compreensão.
Só que os sorrisos de compreensão ficavam cada vez mais distantes dele, porque as pessoas se afastavam. Ele nem percebia: ocupado em, diariamente, caminhar pela manhã e trabalhar à tarde, polindo o pilar, pouco via ou ouvia do que lhe ia em torno.

No seu entorno, havia uma gralha.

Gralhas grasnam. Aquela grasnava muito.

Gralhas são espertas. Costumam recolher todos os objetos brilhantes que vêem, para por nos seus ninhos. Elas gostam de ninhos resplandescentes. Aquela era espertíssima.

Gralhas bicam. Seus bicos cortam pinhões e castanhas. Aquela bicava com vontade.

O pilar estava muito alto, era visível à distância, já. A gralha, voejando em torno, deitava-lhe sombras, conforme a posição do sol. Assim achava Rubão, que até gostava da gralha – mas aquela sombra, aquele grasnido, aquela mania de brilhos foi-se tornando insuportável. Afinal, era um pilar, oras!

Naquele dia, disse Rubão à gralha: porque não te calas?

A gralha não se calou. Aí, ele foi mais real que o rei: fez com que se calasse, ora se fez!

Mas o pilar estremeceu de ponta a ponta, definitivamente fissurado.

Alguns amigos resgataram antigos favores, para protegê-lo.

Organizaram uma parede lógica, que nem na música do Chico.

Comentavam: Aiêee, Rubão! Provou que é bão!

Os sorrisos lenientes ficaram amarelos em torno do pilar rachado.

E esta jornalista diz:

Viva o Rubinho!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Comida e culpa

Minha amiga prova o doce, arregala os olhos e suspira. Lembranças de infância.... Um segundo depois, na segunda bocada, diz:

- Eu não devia estar comendo isso...

Minha amiga não é diabética e nem cardiopata. Não tem excessos de colesterol ou de qualquer outra daquelas coisinhas nos infernizam a vida. Ela é só uma massacrada pela sabedoria popular do século XXI.

Nos tempos antigos, manga com leite fazia mal, assim como tomar banho depois do almoço, comer marisco ou peixe de pele quando doente, ou tomar outra coisa que não fosse canja de galinha depois do parto. Uma dose de conhaque, cachaça ou vinho reanimavam o enfermo, sais de amoníaco tiravam do desmaio e uma gemada substancial recuperava as forças de quem sofria um choque qualquer.

Tudo isso era a interpretação livre das descobertas científicas de então (o uso dos sais e do conhaque é mencionado em guias de primeiros socorros do final do século XIX, por exemplo) combinada com escassez e prudência.

Hoje, a interpretação livre das descobertas coloca tudo o que é doce, massa e gordura num patamar de desconfianças. Só que este patamar tornou-se massificado e amplo demais. Não há revista que não tenha o seu “vida saudável” ou “cuide de sua saúde” ou seção assemelhada, não há site de internet que não tenha receitas light, diet, e coisa e tal, gerando uma pressão quase insuportável para quem gosta de comer.
Porque, além dos out-doors, das revistas e da televisão, sempre tem um chato na mesa para lembrar o colesterol, o não-se-que, o não-sei-como. Há gente que se policia e há gente que policia os outros.

Eu gosto de cozinhar, como milhares de outras mulheres. Penso que comer junto – dividir a comida – partilhar o pão – é coisa que distingue as pessoas humanas, porque (como Henri Sobel escreveu um dia) é solidário. E eu acrescento: é feliz. Uma mesa posta cercada de olhos brilhantes acompanhando a fumaça da sopa ou a delicadeza da salada, é um lugar redentor.

Mas, ultimamente, pessoas chegam-se à mesa e perguntam: “É frito?” ou “Tem ovo? Sabe, o colesterol...” Ou então: “Eu bem que gostaria, mas doce engorda...”
Outras cutucam o vizinho: “Olha o seu colesterol!”

Geralmente não são apenas os olhos do vizinho que perdem o brilho. Colheres baixam nos pratos de serviço, movidos pela lembrança inoportuna, talheres são cruzados porque, simplesmente, o chato da vez adicionou um travo de culpa no doce, no assado, na sopa. Em família ainda dá para silenciar o importuno, mas, em sociedade, o prazer se estraga inapelavelmente.

Essas coisas me vieram à lembrança quando olhei um título numa revista eletrônica: “Receitas para comer sem culpa”. E eu pergunto: culpa de que, meu Deus? Quem inventou essa culpa sem pecado e sem crime? Sem sequer contravenção?

Será essa uma nova forma de puritanismo? Ou de um epicurismo masoquista, em que um buraco a menos no cinto vale mais que o prazer de compartilhar uma boa comida?

Minha pobre amiga apagou as centelhas dos olhos, destruiu a recordação feliz, amargou o doce quando lembrou que “não devia”. Porque as pessoas estão carregando, agora, essa culpa sem razão, essa culpa incutida e inventada.

Se você perguntar porque “não devia”, as pessoas mostram, de um modo geral, que sabem tanto quando nossos antepassados sabiam sobre o que acontece no organismo. Alguém lhes disse, alguém as convenceu. Porque? Eu desconfio que os propósitos são bem menos nobres do que preocupação com a saúde.

sábado, 18 de julho de 2009

Conversa de cachorro

Percorro a internet e me deparo com uma página sob o título de “Amicão”: cães treinados para ajudar nas terapias de crianças com síndrome de Down, de idosos deprimidos e até de doentes.

Abro meu e-mail e uma apresentação em PPS me informa que nunca devo me distrair um cão-guia, nem me aproximar pelo lado errado.

Uma miçanga de Mia Couto desabafa: não sou eu o dono do cão, é o cão que me arrasta pela trela; eu lhe dou banho, comida e água, e todos os elogios são para ele; eu sou seu dono ou seu servo, afinal? – pergunta o escritor.

O Google me informa que a palavra “cão” tem 110 milhões de referências. O que, multiplicado pelos 6 mil idiomas falados no mundo (segundo a ONU) dá um número de arrepiar – principalmente considerando que a palavra “homem” só tem 48 milhões de referências, ou seja, menos da metade.

Uma vez vi, num castelo, dezenas de pinturas de cães de caça. Não eram cenas de caça, eram retratos, com o nome do cachorro inscrito na tela. Com assinaturas famosas, porque pinturas mandadas fazer por reis e príncipes. Eram retratos de favoritos ou de heróis – estes haviam tirado o patrono de algum aperto de caça.

Coisa pouca, se compararmos com os milhões de fotografias de cachorros que ocupam sites de relacionamento, porta-retratos domésticos, telas de tevê e até out-doors.

E coisa antiga, pois os cães de hoje não são a sombra do que eram antes. Porque, dos vertebrados modificados pelo homem, meu palpite é que só as galinhas e os bois tenham sido geneticamente mais alterados que os cães.

Um dos sites que visito contém uma longa lista de “raças reconhecidas” como tal e os respectivos padrões. Descubro que há cães que inevitavelmente sofrerão deste ou daquele mal, porque está inscrito na genética daquela raça. Cães produzidos especialmente para esta ou aquela finalidade – cruzados e recruzados para apurar determinadas características, ou eliminar outras.

Tenho a impressão que com a engenharia genética será mais fácil – ou mais terrível, dependendo do ponto de vista. Talvez até que um grande estúdio de cinema encomende e consiga um Cérbero de carne e osso, e o mítico cão de seis cabeças, guardião das portas do inferno, viva o tempo certo para rodar as cenas da travessia dantesca.

Tudo é possível quando se trata de humanos.

Até um concurso para saber qual o cachorro mais feio do mundo – the ugliest – e o vencedor é certamente inconteste: a língua é pendente, pelo lado da boca, o focinho fino é encimado por dois enormes olhos sob um tufo de pelos que parece uma crista. Nem por isso – seus donos são carinhosos e enchem de elogios o cachorro, cuja pele é rosada, com pelos esparsos e malhas marrons.

Dizem que nas cidades brasileiras há um cão para cada cinco habitantes, e a maior parte deles está nas ruas. E eu fico pensando porque temos cães e porque gostamos tanto deles – falo como coletivo, porque é muito raro encontrar alguém que deteste completamente os cachorros.

Muita gente afirma que os cães são companhia, amigos fiéis, ou são guardas, ou são colaboradores, etc etc. A meu ver, este é o lado nobre, racional e razoável de amar os cães. Penso que talvez haja o lado escuro da força: à falta de humanos e antes que cheguem os robôs, os cães suprem a demanda pelos escravos, usados para todas as finalidades que o bem ou o mal, gerados pelo cérebro humano, inventam.

E o leitor perguntará porque, afinal, estou com esta conversa de cachorro, agora.
Respondo: é porque, diante das cachorradas que estão fazendo Lula e Sarney, é melhor falar de cães.

terça-feira, 7 de julho de 2009

O consumido

Havia quem negasse sua humanidade: “Ele se transformou numa coisa! Não é mais gente!”
Havia quem invejasse e quem tivesse pena. Havia quem não entendesse, mas todos admiravam o dançarino, mais que qualquer outra coisa.

A aldeia global repete o quarup, desta vez em rosas vermelhas. Mas a fórmula é a mesma, secula seculorum: velórios longuíssimos, carpideiras autênticas ou falsas cercam o ritual da morte. Pessoas ferem os rostos, ou riem.

A diferença é que o morto foi, literalmente, consumido pela aldeia; ele não conheceu o cotidiano comum, as parcelas simples de dor e alegria, de partidas e chegadas, do velho e do novo. Ele se tornou, não uma coisa, mas um ciborgue mental, lincado de tal maneira ao sistema social que quaisquer de seus gestos e movimentos movimentam a máquina, e em tanta intensidade, que tornam impossível a individualidade. A pessoa se torna um ser coletivo, um produto; seus gostos e suas idéias são marcados pelo sopro alheio. Provavelmente ele desistiu da solidão necessária: e daí a fuga contínua através das idéias mirabolantes e da droga.

Como ser coletivo que é, ele apenas começou a morrer. Levará muito tempo até que vire uma simples referência, como é hoje Boris Karloff, por exemplo. Na época de Boris, o mundo apenas começava a ser uma aldeia global; hoje, a globalidade da aldeia não permite uma morte fácil para um ciborgue destes: sua memória continuará movendo a máquina, até que se consuma a última lembrança.

Ainda assim, as carpideiras continuam acompanhando os enterros, relembrando a todos que, para além do social está a carne e o osso, o nervo e a pele. E que, embora o sistema social devore gente, não pode existir sem gente.

Michael Jackson, à deriva, numa família estranha e num estranho mundo de paradoxos em que a liberdade total era também o total aprisionamento, viveu para produzir dinheiro – uma indústria montada numa única pessoa – e ainda assim conseguiu produzir alguma arte original. Esse toque de qualidade dentro da armadilha da produção enlouquecida do show que não pode parar – esse toque que vem do talento e do amor à arte – provavelmente gerou o desespero que o conduziu, afinal, à ruína. Não é possível para alguém conviver com a ausência continuada de si mesmo, quando existe um eu criador que precisa se manifestar.

E aí eu fico pensando nas mais de cem mil pessoas que seguem o Luciano Hulk ou o Marcelo Taz no twitter. Ou na audiência do BBB e dos outros reality shows. E Brizolla falando dos grandes rebanhos humanos destes tempos. E dos rebanhos atirando algumas reses aos crocodilos para que o restante atravessasse o rio. E Michael Jackson de novo.

Similar, mas diferente: reses e crocodilos são espécies distintas.

E é da tradição e da história humanas o sacrifício de iguais em nome do coletivo: os mal formados, os inimigos mais fortes, as virgens para aplacar os deuses... e Michael, e outros como ele, para que o sistema social funcione?

Definitivamente, eu penso em Michael como o consumido. E aí, vê-lo dançar é como olhar um belo rio condenado; me dá tristeza.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Planeta ameaçado

Alguém me diz que o planeta está ameaçado.

Aí me lembro: “choverá fogo e enxofre se continuarem nesta vida” – frase que teria sido pronunciada há três mil anos, por um dos profetas bíblicos.

Alguém sempre quer consertar o mundo. Faz parte, acho, do impulso civilizatório, que não é, nem mais nem menos, o uso da inteligência como equipamento de sobrevivência.

Leio Blaise Cendars (“Hollywood”), e ele descreve uns Estados Unidos do início do século XX bem semelhantes ao Brasil do início do século XXI. Quer dizer, semelhantes nos problemas. Este livrinho de Cendars é precioso: nele está registrado, com paternidade e tudo, o início da paixão norte-americana pelas estatísticas.

Só que há um século de diferença. A razão está nos trópicos? Ou na praxis religiosa? Ou na cultura original? Alguns milênios de conhecimento consolidado ainda não foram capazes de decifrar, ou talvez até de mapear, a complexidade da história humana.

Talvez porque a história tem sempre um ponto de vista, que é o do sobrevivente.

Mesmo assim...

Autoridades se reuniram mais uma vez num cemitério em território francês para lembrar que nunca tantos deveram tanto a tão poucos. Este interminável culto aos guerreiros não ameaça o planeta tanto quanto a poluição? Que glória há em destruir?

Que faremos nós – perguntavam-se as autoridades do pós-guerra, na segunda metade do século XX – com estes homens condecorados, mas que só sabem correr riscos e destruir? Que faremos nós com estes milhares e milhares de homens empregados em funções de vigilância e guarda, em todo o Brasil, quando for exigido das mãos deles algo mais que segurar um cassetete ou uma arma de fogo?

Nos pós-guerras do século XX, como ainda hoje ocorre, milhares e milhares de homens se mataram, simplesmente porque a guerra os tornou incapazes de viver em paz.

Violência é violência, tanto faz contra bandido como contra inimigo.

Alguém me diz que está tudo errado.

Não sei se tudo, mas há alguma coisa de muito errado no medo cotidiano. E não será com mais e mais armamentos que se vai resolver este medo.

No entanto...

Há um século, sem dúvida vivia-se pior que hoje. Todos.

Serão os nossos problemas apenas inevitáveis partes deste ciclo? Ou nos parecem maiores porque sabemos mais?

Este drama está na saúde: se as populações inteiras são advertidas que é possível prevenir doenças mediante exames regulares, vão exigir, com toda razão, exames regulares. Se não há como atender à demanda, instala-se uma crise. Mas a civilização não caminha de crise em crise? Mas, e até a crise gerar sua consequência criadora, o que acontece? Ou quando a crise desemboca na aniquilação, como na ilha de Páscoa, cujas estátuas são o que restou de presença humana, e não houve sobreviventes para contar a história?

Recebo abaixo-assinados: pela liberdade religiosa na Birmânia, contra a crueldade com os animais, contra a fome em países miseráveis... e ainda penso que o Brasil poderia fazer muito mais pelo Haiti além de fornecer soldados para as forças de paz. Certo, o engajamento eletrônico talvez dê algum resultado. Faz parte do ciclo, e afinal de contas, ser contra ou a favor sem armas nas mãos é melhor do que atirar granadas.

Faz parte do ciclo também governar com um instituto de pesquisa de opinião emitindo relatórios quase diários. Excesso de democracia, ou simplesmente paz na terra?

Mas a maioria sempre arroz-com-feijão. E aí, o que acontecerá com as idéias de
vanguarda, que permitem traçarem-se estratégias de longo prazo?

Talvez que este seja o perigo real do planeta. Talvez.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Ronaldo Barata

Ronaldo Barata morreu nesta semana, de câncer – o que jamais esperou que acontecesse, porque foi ameaçado de morte durante grande parte de sua vida, depois de ter passado pelas prisões da ditadura.

Ele nunca fez escândalo disso. Nunca pediu escolta ou segurança, embora tivesse passado grande parte de sua vida como autoridade pública. Ronaldo chefiou o antigo Getrat (o poderoso Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins, cujos poderes eram quase absolutos à época, pouco depois do final da ditadura e sem praticamente sem legislação específica), o Incra e o Iterpa. Ele lutava por uma reforma agrária justa. Assentou milhares de migrantes que encontraram futuro no Pará. Também nunca fez escândalo disso.

A precariedade de sua vida, porém, o deixou com um futuro incerto: ele vivia o presente, seu horizonte era restrito. Por conta disso, e por conta também do próprio temperamento, não se preocupava com garantir-se velhice tranquila e segura. Deixava seus anos de idoso, se lá chegasse, por conta dos amigos – que, de fato, não lhe faltaram na hora mais dura – e do acaso.

Entrou e saiu honrado de todos os órgãos de controle fundiário que dirigiu. Entrou e saiu militando: primeiro, no clandestino Partido Comunista Brasileiro, depois, ao concluir que era preciso mais que bandeiras e agitação para construir uma reforma agrária, na social-democracia do PSDB. Tentou mandatos, mas sua bandeira única restringiu-lhe os votos. Seu mote era a terra produtiva resgatando a miséria. Não é uma bandeira simpática para o eleitorado cada vez mais urbano.

Pois bem. A uma semana de sua morte, precisando urgentemente de uma transfusão, vamos encontrar Ronaldo Barata semi-consciente, bloqueado à porta de um hospital público. Ele continuava pobre como quando começou a carreira pública; não tinha como pagar um plano de saúde, nem dinheiro para se socorrer na rede privada.

Foram horas de negociação e pressão de seus amigos, liderados por Simão Jatene, com Ronaldo na porta do hospital, para que finalmente o Ophyr Loyola o recebesse, e ele passasse os seus últimos dias medicado.

Quero crer que a situação na porta do hospital se devesse à crise por que passa o Ophyr Loyola, e não a outras injunções. Quero acreditar nisso. Outra coisa seria cruel demais.

Muita gente não gostava de Ronaldo. Alguns tinham-lhe ódio mortal. Mas mesmo essas pessoas, cujos interesses ele feriu em algum momento de sua infindável luta, hão de reconhecer que sobre ele jamais pesou sequer a sombra de suspeita por atos escusos. Apesar de lidar com o nervo exposto da questão fundiária. Apesar de ser um negociador, um mediador.

Que diferença!

Ao mesmo tempo, que resposta para os que não acreditam que se possa fazer política e administração pública com decência e honradez!

E com alegria, porque Ronaldo era um homem alegre, que as dificuldades não abatiam – as fotos mostrando sua cabeça branca, nas passeatas repletas de jovens, são uma prova disso.

Hoje, Ronaldo descansa em paz. A consciência não lhe pesa o espírito.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Dias perigosos

“O Pará está colapsando”, me diz um médico, que também é administrador hospitalar. Colapsando é uma expressão do jargão dos hospitais. Quer dizer – numa crise que pode paralisar. Ele aponta os sintomas: fornecedores com pagamentos atrasados, gastos desordenados, pouco dinheiro entrando, impasses em problemas sérios por divergências entre dirigentes, falta de soluções. Ele vê o lado de dentro, e ele está assustado.

Eu vejo o lado de fora: há duas semanas que a variedade dos legumes e verduras minguou nos supermercados. Na prateleira onde havia tomates especiais, agora há alface, cujo volume preenche o espaço vazio. O preço do peixe bate recordes; nas gôndolas de carne, retornaram pratinhos com ossos limpos. Ainda há bastante, mas é cada vez mais frequente ter que vistoriar cuidadosamente cebola a cebola, batata a batata, para escapar do estragado. Eu também estou assustada.

É a crise, diz o governo.

Sim, a crise – deveria ser então um governo para enfrentar a crise, não? Afinal, este é o dever dos governos. Até agora, o conjunto de medidas anunciadas contemplou apenas um objetivo: pagar o funcionalismo. Está certo. Mas, e o restante do povo que, aliás, é a maioria? Cadê o arroz tipo 2, cadê o feijão colônia a preços populares? Cadê um mínimo de atenção para o que está acontecendo nas cozinhas?

A crise, no discurso do governo, é apenas uma justificativa. Parece que nos altos escalões ninguém acredita nela. No entanto, senhores, acordem! Ela está aí, bem aí, no fruteiro da esquina que está vendendo um punhado de peras e morangos, em vez das dezenas de mangas, bananas e abacaxis que vendia; no aumento do número de mendigos que disputam lugares sob as marquises – e debaixo de chuva!

Quatro estradas federais foram cortadas pelas chuvas, informam os noticiários, e o abastecimento de Belém – e de muitos municípios que se abastecem em Belém – periga por isso. Sim; mas pelo menos outras quatro estradas estaduais também estão cortadas pela chuva, e a produção rural empacada nelas. Pergunte agora se foi feito algum plano de contingência ou preparação para o período de chuvas, previsto como muito forte pela meteorologia, desde o início do ano passado. Nada.

Além disso, as estradas interditadas não têm nada a ver com os preços crescentes. Não são necessárias estatísticas: basta percorrer os mercados, as feiras e os supermercados. Espertamente, os supermercadistas já anunciam remarcações, por conta das estradas interditadas. E todo mundo sabe que o que sobe, não desce, se o governo não fizer descer.

Alguma medida? não, nada. A burocracia se volta para si mesma e continua comprando crachás, sinalização para prédios, material de expediente, refeições para congressos... tudo isso estava no Diário Oficial de hoje, 6 de maio, ao lado de inúmeras concessões de diárias.

Se o médico estiver certo no seu diagnóstico... não quero nem pensar!

domingo, 26 de abril de 2009

Epístola de Paulo aos brasileiros

O professor Paulo Murilo Castro de Oliveira, ou De Oliveira, P.M.C, é desconhecido do grande público. Mas está no cotidiano do grande público mais do que qualquer um poderia imaginar. Fisico, um dos maiores do Brasil, é, no âmbito da formulação que faz funcionar as redes de computadores, aquele sujeito que, quando fala, todo mundo cala a boca para ouvir.

Sua produção científica ultrapassa a centena de artigos e abrange três livros – para falar só do que é mais importante. Então, apesar de desconhecido do grande público, De Oliveira não é, absolutamente, um Zé da Rua.

Numa carta, ele resolveu falar, agora não de física – mas com base num profundo conhecimento das fragilidades e limitações dos sistemas informatizados – mas de educação e de ciência. Seu clamor é pela “desrobotização” do sistema de avaliação das Universidades, implantados pela CAPES – o órgão que controla todo o dinheiro e toda a política de formação de cientistas no país.

Quem se interessar, pode encontrar o teor integral do pronunciamento do professor em http://physicsact.wordpress.com/2007/11/25/fisico-discute-a-ciencia-e-a-pg-no-brasil/. Eu vou apenas transcrever um trecho, porque se trata de uma denúncia muito grave:

“Outro aspecto nocivo dessa competição erroneamente induzida pelas agências de fomento é o aparecimento, com freqüência cada vez maior, de práticas condenáveis que vão desde pequenos deslizes até plágios e fraudes. Alguns desses casos têm se tornado públicos ultimamente, devido à posição de seus personagens. Infelizmente a freqüência de tais faltas é muito maior do que nos faz supor o conhecimento de apenas um ou outro episódio.
Vou citar alguns exemplos, em ordem crescente de gravidade. O líder de um laboratório permite que seu nome seja incluído como autor de todas as publicações daquele laboratório, porque assim vai haver no grupo um pesquisador nível IA do CNPq, exigência de vários programas das agências de fomento, exigência esta baseada na mesma estratégia míope de competição. Outra opção muito difundida é se convidar algum pesquisador IA a emprestar seu nome ao projeto de pesquisa alheio. Há também a chamada corda-de-caranguejo, um pesquisador faz o trabalho de pesquisa, inclui colegas na lista de autores, e com isto recebe regalias da instituição (licenças para viagens, carga horária de aulas reduzida, etc). Há também a manipulação do número de professores do curso de pós-graduação, tira-se fulano e inclui-se sicrano no relatório deste ano. No ano seguinte inverte-se. O curso de graduação da instituição é sempre prejudicado. Trabalhos idênticos ou cópias ligeiramente maquiadas de um mesmo autor ou grupo de autores são submetidos e muitas vezes publicados em diferentes revistas. Autores copiam trechos de publicações alheias, muitas vezes trechos de importância marginal, outras vezes de importância central. Trabalhos inexistentes são colocados na plataforma Lattes, muitas vezes apagados após a avaliação específica do interessado. No nível mais grave vem a leniência das agências de fomento com a ocorrência de tais práticas.”

Isto equivale a dizer que a corrupção está permeando, de forma oficiosa, a área de onde se formam os quadros dirigentes, políticos, econômicos e culturais. Isto equivale dizer que, juntamente com as aulas de história e matemática, os alunos recebem aulas de corrupção – e com a máscara da boa intenção, como é o caso de “garantir verba para o laboratório”, ou “amparar o colega, que passa por uma fase difícil”, ou até ajeitar os crônicos impasses administrativos universitários, do tipo “eu assumo a coordenação, mas vou parar de publicar, vou me prejudicar, vocês têm que me ajudar”.

A carta é tão importante que a denominei de epístola, mas está batendo numa muralha de indiferença, no que chamo a muralha da mediocridade: a Academia simplesmente sepulta, pelo silêncio, o que a incomoda. Não é justo com o cientista De Oliveira, P. M. C, nem com o professor Paulo, que ensina em duas Universidades há 28 anos.

E o que trata é tão sério que interessa a todos nós.

terça-feira, 14 de abril de 2009

A fera faminta

A previsão é fácil, não vê quem não quer. O governo enfrenta dificuldades de caixa. Os impostos vão aumentar.

A técnica é a mesma, desde que se unificaram os impostos. Primeiro, os impostos sobre luxos e, naturalmente, o contestado cigarro. Como o governo não aperta o cinto de jeito nenhum – principalmente agora quando diz, pomposamente, que o consumo deve ser mantido alto para combater a crise mundial – virão os outros, depois. Até o final do ano provavelmente estaremos pagando um por cento a mais dos nossos ganhos para o governo.

O Brasil é o sexto país do mundo onde mais se paga imposto mas o que causa espécie é que, mais que o Brasil, só a Suécia, a Noruega, a França, a Itália e a Espanha cobram mais de sua população. E, olhando para as cidades desses países e as da Alemanha, Estados Unidos e Japão (onde se paga menos impostos que no Brasil) é fácil ver a tremenda distorção em que vivemos.

É perverso, porque grande parte desses impostos é devorada pela falta de rumo político do país. E muito daquilo que compõe a assim chamada “distribuição de renda” – essa enganação de bolsas de todo o tipo, que está arruinando a Previdência Social e afastando, cada vez mais, milhões de pessoas da produtividade regular que, esta sim, gera riqueza – volta para o erário, na forma de tributos.

Diz o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário que “se (você) sentir sede, pode escolher entre os 54,8% incidentes sobre a cerveja, 45,8% sobre refrigerantes em lata, 43,9% sobre a água mineral ou 34% sobre a água de coco”. Isto é parte de uma arrecadação que bateu os cem bilhões de reais em janeiro – antes do aumento do imposto dos cigarros e alguns artigos de luxo. Cem bilhões em um mês – e ainda não chega, diz o governo, que recolheu um trilhão de reais em 2008.

Cinco meses de seu trabalho diário vão para o governo. Mais de 30% de toda a produção nacional é abocanhada para ser mal gasta, mal gerida e mal explicada. As cidades continuam sem saneamento, a zona rural, sem melhoria tecnológica visível na a agricultura e na pecuária, e o patrimônio natural, dilapidado sem qualquer compromisso com viabilidade e futuro.

É hora de imposto de renda, e penso que muita gente inteligente ainda se ilude com a restituição, esse absurdo instituído pelo Mário Simonsen – se não me engano – e que consiste simplesmente em cobrar mais que o devido e, depois, pagar menos que a dívida. Eu gostaria muito de saber quanto o governo leva, acima do que deveria levar, com o imposto de renda não restituído. Essa caixa preta, entretanto, ninguém abre.

Vou dar um exemplo. Uma pessoa morreu em fevereiro. Não haverá declaração de renda relativa ao ano-base em que morreu – mas o imposto retido não será devolvido, seja justo ou não. Outro exemplo: prestadores de serviço avulso, com pequenos recolhimentos, que não deveriam pagar o imposto, raramente apresentam declaração para cobrar a devolução. O imposto fica para o governo, injustamente. E um terceiro exemplo se refere à mágica das taxas – se você se atrasa, paga multa e mora, mas o governo devolve o cobrado a mais só com a taxa Selic.

Neste país de muitas distorções, a tributária é a pior – até porque a maioria das pessoas não quer saber. O assunto é chato e não há como falar dele sem se sentir enganado, mas absolutamente impotente para mudar as coisas. O que é muito desagradável para qualquer um.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Censura - de novo?!

Na pauta, as alterações da lei Rouanet.

Como escritora que sou, tenho que saber e opinar. De cara, informo que tenho idéias próprias – talvez até peculiares – sobre o que deve ser o papel do Estado quanto à arte e cultura. Não concordo com subsídios. Não concordo com patrocínios. Defendo a manutenção, pelo Estado, dos espaços, das escolas, das experiências e de uma estreita faixa de manifestações que, pelo longuíssimo prazo que exigem para se realizar, teriam sua existência comprometida pelas leis do mercado. Também informo que jamais participei de editais da lei Rouanet ou de quaisquer outros, nem também nunca tive meus livros patrocinados pelo Estado. Eu vou à luta, como acho que todos devem ir. Vou à editora, vou à prateleira da livraria.

Assim, tenho cá minhas divergências com a lei Rouanet. Mas até agora, foi a única coisa razoável que se vez em favor das manifestações artísticas deste país. Funcionou, até agora, e funciona como é possível numa economia de montanha russa como é a do Brasil, e responde, hoje, por milhares e milhares de expressões artísticas, de Norte a Sul.

Agora se faz a segunda tentativa para distorcer e rebentar com a lei, sem colocar coisa que valha no lugar.

A primeira tentativa veio da bancada confessional no Congresso – aquela comprometida com igrejas. Queriam permitir que as igrejas tivessem acesso aos incentivos, enquanto igrejas. Eu não tenho nada contra um coral, um conjunto, um organista, competirem num edital da Rouanet – mas tenho contra as igrejas em si. A finalidade delas não é arte – a arte é uma ferramenta para elas. Assim, estão fora.

A segunda tentativa vem do ministério da Cultura, agora. Numa postura que trai o espírito ditatorial, ou imperial, que rege este governo. A lógica é: “Eu sou o dono do dinheiro; tenho o direito de mexer onde quiser, dizer o que e quem vai gastar, e ainda ficar com a criação.”

Assim, inventa um “critério subjetivo” para aprovar os projetos. Qualquer adolescente sabe que, quando um professor inventa um “critério subjetivo” num teste de redação, é melhor escrever o que o professor acha certo. É melhor saber primeiro o que ele pensa sobre o assunto. Em arte, a existência de “critério subjetivo” no Estado significa aparelhamento. Meio século de “critério subjetivo” transformaram o esplendor artístico da Rússia numa caricatura da qual ela vai levar outros cinquenta anos para sair. No Brasil recente, o “critério subjetivo” fez com que um censor anônimo tivesse o desplante de “corrigir” Chico Buarque – é só entrar no site do Arquivo Nacional, está lá, para todo mundo ver. Ou seja, “critério subjetivo” é censura. De novo!

Depois, preconiza a quebra do direito autoral – “porque o dinheiro é do Estado”. Só que o dinheiro não é do Estado, o governo não é o dono do dinheiro. O dinheiro é público. É social. Cientistas e pesquisadores tiveram, já, uma tremenda queda de braço com o Estado por causa disso. Eles resolveram o problema – eles têm direitos sobre as patentes. Simplesmente porque o Estado gerencia o dinheiro público, mas o cérebro que gerou o invento, a descoberta, a arte, não é. E um cientista, um artista, é tão povo como todos os demais. Vive do que faz, e, tal como os jogadores de futebol, são muito poucos os ricos nesse setor.

Juntando o “critério subjetivo” com a quebra do direito autoral, o que se tem é uma intervenção extremamente ampla, cuja consequência só poderá ser uma: uma crise sem precedentes no setor cultura.

Assim, não dá.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Caca ideológica

Um parlamentar alemão, irritado com a quantidade de cocô de cachorro encontrada diariamente na rua, apresentou uma proposta de lei radical: a formação de um banco de DNA canino, obrigatório, de forma a permitir que se identifique o dono do cocô – e, por aí, o dono do dono do cocô, para que este último pague uma pesada multa.

Complicado? Nem tanto, quando se tem dinheiro bastante para fazer exame de DNA de cocô de cachorro. O que chateia é que, por aqui, milhares de crianças aguardam exames de DNA para conhecer o próprio pai – e não há dinheiro bastante para fazer o exame. A distância dos dois mundos permite isto; e, como indicador de concentração mundial de renda, este contraste no âmbito do DNA parece ser suficiente.

O projeto não passou até agora, e não foi porque pensasse a sociedade que ele custa caro; foi porque os alemães estão achando que um banco de DNA canino e a identificação do cocô uma intolerável invasão de privacidade – e que, quando se começa a invadir a privacidade de bicho está próxima a invasão da privacidade humana.

Convenhamos, ainda, que é um certo consolo – negativo, está bem, mas assim mesmo consolo – descobrir que a civilizadíssima Alemanha não consegue fazer com que seus cidadãos evitem o cocô das ruas só por ser uma questão de civilidade. Que é preciso um bocado de repressão para que as ruas fiquem limpas dessas cacas anônimas. Eu reclamo do que encontro nas ruas daqui; percebo que o cachorro e seu cocô é drama também entre os povos mais adiantados.

Talvez se ensinássemos os cachorros a enterrar o cocô? Ou, melhor ainda, se eles já nascessem sabendo? Para isso, haveria que isolar o DNA correspondente nos gatos e transplantá-lo para os cachorros. Cães transgênicos, naturalmente – mas com as cidades limpas de dejetos. Mas seriam os cães transgênicos os mesmos que amamos? Os verdes dizem que não – pelo menos quanto à soja e outros produtos da terra. Mas o novo princípio, oriundo diretamente do avanço tecnológico, é: mude-se tudo a qualquer preço, desde que não mudemos nós.

Uma civilização epicurista, desabituada da paciência de construir, do esforço penoso de colocar pedra sobre pedra, literal ou figuradamente? Por enquanto, os alemães discutem o banco de genes caninos, e, nessa discussão, os limites de controle do Estado sobre os cidadãos. O cocô de cachorro ganhou matizes ideológicos, ora pois, quem diria?! E, ao que parece, o projeto do deputado não passará. Ele terá que arranjar outra maneira de conseguir que os donos de cães recolham o cocô das ruas, ou, então, talvez criar uma taxa canina para manter os serviços de limpeza e construir espaços especiais para o alívio dos cachorros.

Quanto aos donos, não estão nem aí. Como aqui.

sábado, 21 de março de 2009

Menos, Dráuzio!

Li a carta aberta de Dráuzio Varella – e como eu gostaria de ter tantas certezas!

Primeiro, a certeza da ciência, la mobile donna. Esta senhora é tão volúvel! Mendel, por exemplo: durante anos a fio, isolado num mosteiro, cuidando dos jardins e fazendo pesquisas. Num mosteiro, sabe? Ele era um monge agostiniano. A inteligência médica da época abominava suas descobertas. Ele apresentou seus trabalhos; foi ignorado. Morreu em 1884, mas só no início do século XX que a inteligência médica finalmente compreendeu as leis do que se tornou moda, e hoje provoca a polêmica das células-tronco: a genética.

No século XIX, o que se aceitava como certeza médica científica passava muito longe das teorias desenvolvidas por Freud, durante todo o século, e até hoje polêmicas. Trabalhou-se a eugenia na Europa e nos Estados Unidos – o que é cuidadosamente oculto, hoje, depois que a segunda guerra mundial demonstrou, com os horrores dos campos de concentração, até onde se pode chegar na busca pelo indivíduo humano sem defeitos. São terríveis dos relatos de lobotomia praticada por médicos na “cura” de criminosos julgados casos perdidos; e são terríveis, também, os relatos das experiências realizadas com presos perpétuos nos Estados Unidos.

Ah, mobile donna!

Segundo, a certeza do compromisso médico com o alívio da dor. Não vamos longe. Brasil, anos de chumbo. Havia médicos nas salas de tortura, sim, senhor. Página negra? É, sim. Mas eles não fizeram nem mais, nem menos, do que seguir uma trilha sombria e obscura que vem desde o início dos tempos, acompanhando guerreiros, torturadores, violências. Essa trilha é bem pouco conhecida; é uma trilha que todos gostam de esquecer que existe e é mantida aberta até hoje – em Guantánamo, por exemplo.

Terceiro, a certeza de uma cosmovisão antagônica, entre o cristianismo – ou, mais especificamente, o catolicismo – e a medicina. Oh-ho, como cantaria Siegfried. Sem sair do Brasil: foram os católicos, à sombra da Igreja, com suas Pias Obras, que construíram os primeiros, os segundos e os terceiros hospitais por aqui. Era o bispo – não a autoridade pública, colonial ou imperial – quem abria hospitais, cuidados pelas ordens religiosas, mantidos pelas contribuições de caridade. Hoje o Brasil tem seu SUS – e grande parte dele ainda é operado por ordens religiosas católicas. Justo onde existe maior pobreza, onde não chega o braço secular do Estado – onde se precisa de mais que um salário para poder suportar a dificuldade. Isso não seria possível se houvesse uma cosmovisão antagônica; resignar-se à dor e à morte não é a mesma coisa que incentivá-la. É preciso um sentido para o sofrimento, para que ele se torne suportável.

Quarto, a certeza de que a manipulação da vida intra-uterina é indispensável. Ah, como eu queria ter certeza disso, do sim ou do não, límpido e claro! Aborto, por exemplo. Vejo defesas e condenações apaixonadas, mas nunca li nada sobre as consequências do aborto no organismo da mulher que o faz. Porque deve ter – é como capotar um carro, ou frear um trem em alta velocidade, porque todo o organismo se mobilizou para a gestação. O que, de fato, acontece no aborto?

A insegurança da camisinha e da pílula – porque a pílula tem uma margem de insegurança, embora nunca ninguém toque no assunto – estão levando os jovens africanos, nos países onde a AIDS é epidêmica, a adotar os princípios – tão católicos, por sinal! – da monogamia e do auto-controle sexual. É só ver os relatórios da OMS. E esses jovens nem são católicos...

O poder clerical pode ser grande, mas tem suas raízes nas dúvidas de pessoas como eu. E é por isso que interfere no social - até porque o poder político deriva exatamente do grau de aceitação da liderança. A excomunhão que o bispo fez pode ter sido fora de lugar, escandalosa, errada ou o que for – mas repousa nessas incertezas.

Por isso – menos, Dráuzio! Proteste, se acha que deve, mas dê o seu a seu dono; nem
os médicos são tão mocinhos, nem a igreja católica é tão bandida. Lá como cá, feras há.

segunda-feira, 16 de março de 2009

O dinheiro na cueca

Nesta sexta, 13, um chinês foi preso transportando 300 mil na cueca.
O que me fez lembrar o outro dinheiro na cueca – aquele do PT, e perguntar: em que deu aquilo tudo?
Foi em 2005. Três anos depois, foi preso um dos réus no caso do mensalão, também com dinheiro na cueca. Logo depois, um traficante com mais de um milhão. Em seguida, um sequestrador, que trazia as notas marcadas de um resgate – 14 mil. Agora, esse chinês, que ninguém sabe direito porque tinha a cueca cheia de grana.
Exceto o último, todos foram denunciados pelo Ministério Público Federal.
Em 2007 uma comissão do Congresso aprovava emenda à lei contra a lavagem do dinheiro enquadrando o dinheiro na cueca como crime.
Dei uma busca: todos os processos ainda se encontram em primeira instância, nenhum foi julgado. Os recursos sobem e descem dos tribunais, apenas para que se comece o julgamento.
Pois bem. Transcrevo uma das informações que encontrei:
“Uma empresa especializada em material de defesa/espionagem colocou no mercado a “Brief Safe”, uma cueca com bolso de velcro e “marcas de freiada” pré-impressas. O objetivo é guardar seus bens mais valiosos (se bem que isso toda cueca faz) à vista de todos.” O lançamento é de 2007. A empresa é a Shomer Tec., que vende, também, uma caneta de tinta fantasma com selo da KGB. Cada cueca custa 11 dólares.
É fácil culpar o Judiciário e o sistema de recursos e contra-recursos que eterniza os processos civis ou penais brasileiros. Mas a questão fundamental é outra: todos se queixam do Judiciário mas ninguém faz nada para consertar o estrago.
Porque a sociedade não quer, nem o Estado. Um sociólogo ou um economista poderiam explicar essa situação como característica de países emergentes: o dinheiro ilegal pesa muito no PIB para ter um combate sério. É como a questão dos temporários: se os parafusos forem apertados demais, a máquina explode.
Eu me consolo lendo algumas coisas antigas. No momento, a história dos bucaneiros do Caribe, no século XVII. A descrição das condições de vida dos colonizadores ilhéus (Cuba, Tortuga, Trinidad, Tobago, Hispaniola – hoje Haiti e República Dominicana) é de arrepiar. Mas o que mais me chama atenção é a existência de investidores por detrás dos capitães piratas, e governadores que investiam no ramo ou compravam, para revender, produtos de saque. Àquela época, não havia cueca que comportasse o dinheiro – era todo em moedas, e a própria cueca ainda não existia – e, talvez por isso, a forma de desviar a prata real era muito mais violenta.
As coisas se suavizaram em meio milênio – pelo menos podemos nos proteger em casa, e não no oco de árvores.
Mas as ameaças continuam as mesmas: a penúria ainda é um fantasma persistente, já não mais na forma de navios com caveiras e ossos cruzados, mas agora em forma de assinaturas eletrônicas. Não se morre com freqüência de exaustão física, mas, agora, de exaustão moral: o suicídio já é, no Brasil, a terceira maior causa de morte de jovens, perdendo apenas para os homicídios e acidentes de trânsito.
A sensação que tenho é que navegamos muito – ciência, tecnologia, medicina de massa – mas o fundamental, que é o respeito mútuo, ainda está tão atrasado como antes.
E as cuecas testemunham isso.

quarta-feira, 11 de março de 2009

O ciclo final

De repente, as pessoas começaram a morrer.
Não se trata de calamidade nem catástrofe, nem um ebolazinho vagando por aí. É uma simples questão de idade.
Os apologistas da meia idade, que a chamam pomposamente de melhor idade ou terceira idade, esquecem deliberadamente de dizer que é a fase da morte. Aqui e ali, um se vai disso, outro se vai daquilo, outro desaba numa cadeira de rodas, outro ainda mostra o aspecto devastado de uma doença incurável.
E é de repente que tudo acontece: um dia você acorda contabilizando perdas.
A gente se consola. No caso de minha geração e de meus amigos, a maioria deles teve vidas bem vividas. Talvez pobres e desconfortáveis, mas vividas em profundidade, pessoal e coletivamente. A gente se consola – mas, no fundo do fundão, sabe-se já na fila terminal. Agora, é uma questão de tempo.
E é aí que a morte entra definitivamente em nossas vidas.
Ela, que nos acompanhou disfarçadamente durante toda o tempo – “minha morte nasceu comigo”, dizia Ruy Meira – aqui e ali mostrando a cara entre sustos e dores, agora toma lugar ao lado. Ela estimula o acerto de contas consigo mesmo, a avaliação do que se fez ou deixou de fazer, o que ainda se pode fazer, as dívidas deixadas pelos sonhos não realizados. Ela estimula um retorno a coisas antigas, a vontade de repente de rever um amigo de infância há muito afastado, ou procurar gostos e sabores da adolescência – na verdade, a vontade de voltar o relógio da entropia. Ela impele para o médico, para a ginástica, para deixar de fumar, deixar de tomar a cerveja do fim de semana ou o drinque do almoço. Ela nos faz encher de nostalgia canções e alimentos que julgávamos antes insuportáveis. Ela manda mensagens, ao acertar este ou aquele conhecido.
As primeiras perdas são chocantes e dolorosas – envolvem a constatação de nossa própria condição. As seguintes, são mais naturalmente aceitas; e à medida que o tempo passa, a morte impõe seu ciclo de resignações obrigatórias.
É importante reconhecer este ciclo, mesmo que o pessoal que fala de melhor idade não goste. Pois que um dos problemas deste nosso mundo contemporâneo – Carlos Coimbra situa com propriedade isto, na sua “Introdução a uma teoria sobre a morte” – é o escamoteamento da morte e o recalque do luto, o não se falar do assunto, o esconder-se de uma pessoa sua condição terminal, impedindo-lhe a experiência final.
O torvelinho da melhor idade também impede outra coisa: aprender a conviver com a sombra da morte nas nossas vidas. Essa convivência nos faz cultivar as saudades daqueles que já morreram, valorizar os sobreviventes e descobrir, nas gerações mais novas, diamantes e pérolas, de uma forma que não conseguiríamos antes. É ela que nos dá paciência e tolerância. É ela que nos defende do terror primordial de morrer – este terror que nos guiou para a vida durante todo o nosso tempo – conduzindo-nos suavemente para o fim. Essa sombra permite que vejamos nuances que a luz crua da atividade plena nos impedia de reconhecer: o conjunto da humanidade, a nossa posição e importância no cortejo humano.
E, também, reconhecer que os que morreram continuam mantendo os fios que lhes correspondem na teia de afetos que nos protege do desespero que nasce, junto com a morte, ao sermos gerados.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Excessos

Um dia destes fui a um prédio comercial. Na portaria, catracas. Na recepção, uma moça gentil me pediu a identidade, começou a preencher uma ficha e me apontou uma câmera. Foto, para que? para cadastro de segurança.
Eu disse a ela que bandido é que tem ficha de segurança. E nada neste mundo ia me fazer tirar uma fotografia para uma ficha de segurança na portaria de um edifício. Claro que não entrei. Perdi a consulta, troquei de profissional, porque também não vou me consultar com um profissional que aceita que seus clientes façam ficha de segurança.
A medida, apresentada ao condomínio por uma empresa de segurança, diz que visa proteger as pessoas que trabalham no prédio. Eu me pergunto, de que? Nenhum assaltante vai ser impedido por uma catraca ou por uma ficha; saber quem é o assassino não devolve a vida de ninguém. Para mim, é um excesso, oriundo de certos setores da segurança – tanto pública, como privada, diga-se de passagem – de um perfil que nos faz duvidar da sanidade do que propõem. Eles nivelam por baixo: todos são suspeitos. Desrespeitam, com a maior tranquilidade, a privacidade alheia: são fanáticos com câmeras escondidas e microfones ocultos. Envolvem muros em cercas elétricas – de efeito tão duvidoso como a ficha de segurança – e colocam em risco, sem o menor remorso, quaisquer pessoas.
Naquele edifício das fichas ninguém se perguntou – ou investigou – quem é que manipula essas fichas. Quem é que está dentro de um uniforme de empresa de segurança; para onde vai este cadastro, ou, pelo menos, se o computador é à prova de hackers. Qual o grau de segurança da própria empresa que diz fornecer segurança. Comem um bolo comprado pronto, exatamente como fazem com um sanduíche na padaria da esquina.
Esquecem que os aparatos de segurança são restritivos, e quanto mais eles são instalados, mas se cerceia a liberdade, e mais a privacidade de cada um vai sendo invadida. Com um agravante: se alguém, seja quem for, sabe muito sobre você – seus hábitos, seus amigos, seus conhecidos e sua família – os riscos são maiores. Esses crédulos não conseguem ver pessoas dentro das fardas (e as empresas de segurança sabem muito bem que o uniforme torna impessoal quem o usa) e atribuem às fardas e uniformes a condição de infalíveis, ou incorruptíveis. Só que isso não existe.
A ficha de segurança do edifício é uma miragem. Pode até excluir indesejáveis – com certeza, afasta clientes que, como eu, não aceitam ser tratados como suspeitos – mas não será ela que evitará o crime.
O crime recrudesce porque existe, de fato, uma demanda por bens de consumo – seja alimento, seja instrução, seja tevê de plasma, seja tênis de grife – que não é atendida; e porque há uma cultura de impunidade, seja para o crime de colarinho branco – a corrupção nas diferentes esferas de governo – seja para o pequeno furto; do crime ambiental à infração de trânsito. Isso faz com que tomar seja mais fácil que comprar; o risco em tomar foi reduzido, graças ao emperramento do Judiciário, e, se uma pessoa está disposta a correr o risco, vai em frente. Essa é uma das razões pelas quais as prisões estão cheias de homens jovens: eles, que foram soldados saqueadores nos tempos de guerra, para a qual iam para morrer ou fazer fortuna, correm o risco.
E é também por essa razão, entre outras, que a ficha da portaria do edifício pode intimidar o cidadão, mas não intimidará o criminoso. Ela é apenas um dos muitos excessos em torno da questão de segurança.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Burocracia centenária

A jovem senhora olhou para mim como quem está insultada e diz:
- Ah, mas vai ter que esperar, sim! Afinal de contas, isto é uma repartição pública!
O estupor me impediu qualquer resposta, e a raiva que se seguiu era absolutamente inútil. Desde que entrara naquela repartição municipal que eu vinha acumulando irritação, mas a frase da jovem senhora me mostrou que qualquer reclamação bateria em cheio numa muralha de indiferença. Pior: na firme e enraizada crença de que o usuário do serviço público é um transtorno, e que todos, absolutamente todos os que entram numa repartição são suspeitos.
A coisa começara no protocolo. Apresentei o documento, pediram cópia da minha identidade. Para que?, perguntei. Para anexar na petição, responderam. Sim, e...? São ordens, me disseram. Eu disse que não ia tirar xerox nem anexar cópia alguma pela simples razão de que qualquer pessoa, com identidade ou sem, pode peticionar em qualquer protocolo. E a obrigação do protocolo é receber o documento – ou teria que obrigá-los?
De nariz torcido, a funcionária cheia de curvas nos lugares errados recebeu e carimbou o papel. O que me levou a crer que essa história de identidade é simples adiamento do trabalho – aplicando-se a consagrada técnica de matar o cliente pelo cansaço.
Há quatro meses ando em busca do dito papel, igual aos mendigos de Istambul: atrás de mim, uma corrente de latidos: ao... ao... ao... O último “ao” já me comunicou que é só mais um da série; e não adianta discutir.
Este último “ao” é um jovem e guapo mancebo. Sua mesa está vazia, e era o meio da manhã. Ele não sabe o que reivindico, porque não se deu ao trabalho de ler o documento que passou em suas mãos. Tenho a nítida sensação de que sou indesejada. Aí, discuto, no meio do corredor. Uma discussão em voz alta no meio de uma repartição pública é sempre um bom cartucho; haverá falatório, porque o tédio da papelada faz de qualquer incidente assunto para uma longa conversa de dois funcionários, mesmo que haja filas no guichê em frente. Uma dúzia de rostos converge para nós, interessados na fofoca. Eu falo alto, faço-me mais surda que sou, para obrigá-lo a falar alto também.
Estou com raiva, mas ao olhar um cartaz na porta da repartição, falando em atendimento cidadão, um enorme cansaço me toma inteira. À frente do cartaz, pessoas igualmente cansadas baixam a cabeça e esperam, os papéis pendurados entre os dedos. Ou melhor: seus direitos pendurados entre os dedos, inúteis diante da indiferença.
Lá dentro, vi duas novas funcionárias sem mesa, sentadas em cadeiras, esperando acho que o final do mês; uma mesa vazia, ocupada por uma senhora que lidera um animado bate-papo com dois homens – todos, funcionários sem fazer nada. Penso que um terço de tudo o que consigo ganhar vai alimentar esse ócio burocrático. E penso que chegamos a uma distorção que será muito difícil corrigir.
Daí me lembrei de Machado de Assis e seu Brás Cubas. Mais de cem anos, e nada mudou. As repartições continuam repartidas; a burocracia manuscrita tornou-se eletrônica, mas continua o mesmo dinossauro, crescendo ano após ano. E, seja imperador ou presidente, governador de Estado ou de Província, há sempre gente demais e trabalho de menos. Quanto ao cliente, usuário, ou que nome tenha – até cidadão – é apenas um detalhe, geralmente incômodo. Pronto para ser despachado para Istambul.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Crônica de quaresma

Desculpem-me a ausência, mas tive motivos fortes.
Tentarei ter uma freqüência mais regular; mas quarenta anos de trabalho assalariado deixam a sua marca – e a minha, é olhar com um tédio enorme tudo o que me lembra emprego. No entanto, escrever é minha paixão, e dela não escapo. Por isso, sempre acabo voltando ao teclado, e, de um jeito ou de outro, mantendo-me ligada ao que foi meu trabalho de toda a vida.
Não que eu goste disso. Olho espantada pessoas de minha geração que me afirmam que não podem parar de trabalhar. Dizem com orgulho que continuam trabalhando. Conheço professores que dão aulas quase de graça para continuar no magistério, e profissionais que aceitam empregos que não pagam a eles a metade do que valem.
Às vezes imagino que essas pessoas restringiram seu universo ao trabalho. Ignoram o prazer de simplesmente ouvir uma boa música – ouvir bem uma música é desligar-se e deixar-se penetrar por ela, o que demanda pelo menos cinco minutos de total alheamento do que está em torno. Ou de contemplar um quadro, uma escultura, deixar-se levar pelas curvas e pelos contrastes, pela expressão que emana das tintas e formas.
Há tanto o que ver, tanto o que ouvir! Todo o tempo de uma vida seria insuficiente para embalar-se nos delicados traços dos miniaturistas, ou nas explosões modernistas, ou apenas no capítulo “cordas” da música.
Depois de quarenta anos trabalhando, inserida na máquina produtiva contemporânea, continuar porque? Para sentir-se no contexto? Para contribuir? Mas contribuir com o que, para quem? Para acreditar-se partícipe do todo social?
Ora, há muitos meandros e desvãos no todo social – não apenas o trabalho, tornado hoje uma engrenagem formidável onde você, faça o que fizer, será apenas uma peça pequena. Se você precisa de dinheiro, é diferente – então não é uma questão de orgulho, mas de necessidade. Aí, é de lamentar, não de se orgulhar.
Escrever estas crônicas é um pouco diferente – deixar as idéias escorrerem através dos dedos e se espalharem no visor, procurar as palavras certas, organizá-las, retirar as que são excessivas e acrescentar as indispensáveis – é um delicado prazer, embora traga o laivo do trabalho diuturno do jornalismo. Mesmo assim, ao abrir uma página assume-se um compromisso – e é isto, que lembra emprego, que lembra prazo, que me enche de tédio. Às vezes, tédio suficiente para que a idéia morra no nascedouro.
Além disso, estou escrevendo depois do carnaval. Aliás, depois de cinco dias de chuva marcados como carnaval no calendário. Sem-graça. Blocos de sujos, mascarados ou não, caminhando – quem tem coragem de sair aos pulos nas poças d’água, se já deixou de ser criança faz tempo? Ou levar seu cavaquinho, seu tarol ou seu pandeiro para a rua? Nem a danada da cachaça conseguiu vencer as toneladas de água que desabaram sobre Belém nestes dias. Nos desfiles, fantasias se desmancharam sob a força da chuva, as alegorias murchas, ensopadas.
Mesmo que os desfiles tivessem acontecido pela manhã – o que defendo, porque é impossível que não chova nas noites de fevereiro em Belém – teriam sido sob chuva.
Por tudo isso, esta é uma crônica de quaresma. Mas, pelo menos, não saiu rabugenta.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O preto Obama

O combativo companheiro olha pra mim através de uma barbicha rala e antiga e sentencia:
- Obama é um branco disfarçado de preto.
Contemplo o homem à minha frente. Ele é mestiço, como todos nós. Nele, a precedência física é índia: olhos, malares e a barbicha rala. Penso de repente que com outro tom de pele e ele poderia ser mongol ou eslavo. Deixo a sentença – ele não pronunciou uma frase, mas uma sentença – se decompor no meu cérebro. Pergunto-lhe:
- O que é ser preto?
Do discurso confuso que se seguiu apreendi que é necessário aos pretos usar cabelos rastafari ou assemelhado, camisetas berrantes e palavras agressivas – do ponto de vista do combativo da barbicha. Luther King não serve, tem que ser Malcolm X. Daí perguntei se ele conhecia José do Patrocínio. Conhecia, assim, de ouvir falar – ou seja, não conhecia.
Pensei, mais tarde, o quanto de sutil e venenoso pode ser o preconceito. Obama – poderoso, inteligente, culto - não pode ser preto, tem que ser branco. Obama não pode ter ascendência sobre os louríssimos descendentes de irlandeses ou saxões – ah, ele está lá para prestar-lhes serviço. Obama não pode ter um compromisso com seu povo e sua pátria – o preto Obama deve ser um branco tingido.
O Quênia festejou em torno de fogueiras – sim, nós podemos! mesmo sabendo que Obama será um presidente norte-americano por excelência, que fará o necessário pelo seu povo e pelo seu país, mesmo que tenha que pisotear metade do mundo. Ele é um gigante, este homem: ao lado dele, Lula, Cháves e Morales são caricaturas.
Provavelmente seu primeiro trabalho como presidente será o de faxineiro. Há uma enorme quantidade de lixo da guerra fria espalhada pelo planeta. Ao mandar fechar a base de Guantánamo, Obama acendeu a primeira sinaleira de uma longuíssima estrada diplomática. O entulho das guerras do século XX, que atravanca o mundo todo, e cuja existência é extremamente dispendiosa, precisa ter seu rumo e destino. Há que explodir as minas terrestres, desmontar ou desarmar gigantescos navios e submarinos, desmobilizar milhões de soldados em todos os continentes e das mais variadas etnias, recolher e transformar a tecnologia desenvolvida para a guerra... Grande parte desse entulho é norte-americano; e é um entulho valioso, que poderá alicerçar, tranquilamente, a nova escola pública de qualidade buscada por eles.
Deixem-me imaginar José do Patrocínio festejando a eleição de Obama. Porque ele festejaria, sem dúvida, com uma queima de fogos de artifício de deixar o Rio de Janeiro embasbacado; e, depois, tentaria uma audiência para levar ao presidente americano um grande plano de fraternidade Brasil – Estados Unidos. Mirabolante, como todos os planos dele – mas com tanto otimismo e tanta fé na criatura humana que seria impossível ignorá-lo.
José do Patrocínio veria em Obama uma perspectiva, uma possibilidade, onde o combativo companheiro da barbicha rala só vê um branco tingido. José do Patrocínio, negro, filho de escravos, dobrou o Rio de Janeiro à sua vontade e inaugurou, no Brasil, tanto o automóvel como o primeiro acidente de automóvel. O preto Zé do Pato jamais se reduziu à própria pele. Como o é Obama, era grande demais para isso.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Aconteceu em Belém

Um dia qualquer de dezembro, rua Miguel, anoitecer. Um homem estava parado na porta de sua casa. Vamos chamá-lo de Zé. Não Zé da Rua, que ele não é nenhum cidadão de nada. Ele é Zé, o receptador. Zé, o homem da dica de ouro para um assalto que renda. Zé, homem de respeito no meio da bandidagem. O cara que sabe se entender com os caras: polícia pula a casa dele quando dá batida geral no pedaço.
De repente, um carro de vidros pretos, um revólver e pasma a vizinhança: o Zé, o homem, o cara, foi sequestrado.
O carro arranca e some no silêncio atônito de todo mundo. É a mulher do Zé que dá o primeiro grito. Ela agarra o filho mais velho, um menino magro de sete anos, a única pessoa da rua Miguel a andar com cordão de ouro no pescoço – ninguém toca nele. O menor, de dois anos, dorme. O alvoroço sacode a rua e, boca a boca, a notícia entra na invasão.
Ali, quem dormia, acordou. Uns dois ou três se mexeram: um foi avisar o pai do Zé, outros dar apoio para a mulher. Agora, espera.
Duas horas depois, o telefone. Pedido de resgate: trinta mil.
A mulher chora, implora: só tem quinze. Não tem como arranjar os trinta. A voz no telefone foi inflexível: trinta mil, nem mais, nem menos. Ela pede tempo. A voz diz que pode até receber os quinze logo, mas quer trinta.
O pessoal do apoio orienta a mulher: combina logo, entrega os quinze, pode ser que resolva! Ela vai, vai, marca encontro no Entroncamento, para o dia seguinte, com quinze mil.
De boca em boca a notícia se espalha. No dia marcado, hora aprazada, ela afrouxa, o pai assume. De repente, a pacata rua Miguel parecia entrada de shopping: mais de dez motocicletas, com duplas nos assentos, gente a pé e carro cheio. Todos armados. Para escoltar o pai do Zé, oras. Afinal, ele é um cidadão de respeito.
Na invasão, o comentário cresce, falado baixinho, boca-ouvido. Aquele assalto... há uns anos. Foi um assalto de trinta mil, dois foram presos, o terceiro fugiu com o dinheiro. Foi logo antes do Zé montar seu negócio de comprar roubo e furto, negociar paradas. Será?
Era trinta mil, certo, e trinta mil, nem mais nem menos, estão exigindo agora. Alguém faz contas, poderia ser o tempo da condicional... Por onde andam os dois, por onde? Quem foi, quem não foi, nunca se soube quem era o cara...
Uns da escolta saem na frente, batendo os arredores do Castanheira, virando o Entroncamento do avesso. Outros acompanham o pai do Zé com o dinheiro.
Os da frente vão na pista, encontram rastro e, finalmente o carro com Zé e mais um motorista, amarrados, dentro da mala. Rendem os sequestradores.
Pára, pára tudo – e chama a polícia. De município vizinho de Belém.
Porque, de outro município? Porque se fosse a que atua no bairro ia soltar todo mundo, respondem os motociclistas da escolta. Ah, então tá.
Os homens da lei libertam os reféns, o pai do Zé guarda o capital de volta. Os sequestradores ficam presos. São dois Zés-Ninguéns. Zé, o capitalista do assalto, toma cuidado com o que diz. Não sabe nada, foi bem tratado, ficou na mala, e só.
Está, entretanto, aturdido. Confessa para os íntimos que está com medo. Pensa em sair desta cidade, porque está violenta demais. Conta que recebe agora ameças de morte.
Na invasão, uns e outros olham desconfiados para o Zé. Não têm certeza, mas...
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Esta história é real. Eu troquei nomes e escondi lugares porque também acho que a cidade está violenta demais - e não pretendo receber ameaças de morte.