sexta-feira, 24 de julho de 2009

Comida e culpa

Minha amiga prova o doce, arregala os olhos e suspira. Lembranças de infância.... Um segundo depois, na segunda bocada, diz:

- Eu não devia estar comendo isso...

Minha amiga não é diabética e nem cardiopata. Não tem excessos de colesterol ou de qualquer outra daquelas coisinhas nos infernizam a vida. Ela é só uma massacrada pela sabedoria popular do século XXI.

Nos tempos antigos, manga com leite fazia mal, assim como tomar banho depois do almoço, comer marisco ou peixe de pele quando doente, ou tomar outra coisa que não fosse canja de galinha depois do parto. Uma dose de conhaque, cachaça ou vinho reanimavam o enfermo, sais de amoníaco tiravam do desmaio e uma gemada substancial recuperava as forças de quem sofria um choque qualquer.

Tudo isso era a interpretação livre das descobertas científicas de então (o uso dos sais e do conhaque é mencionado em guias de primeiros socorros do final do século XIX, por exemplo) combinada com escassez e prudência.

Hoje, a interpretação livre das descobertas coloca tudo o que é doce, massa e gordura num patamar de desconfianças. Só que este patamar tornou-se massificado e amplo demais. Não há revista que não tenha o seu “vida saudável” ou “cuide de sua saúde” ou seção assemelhada, não há site de internet que não tenha receitas light, diet, e coisa e tal, gerando uma pressão quase insuportável para quem gosta de comer.
Porque, além dos out-doors, das revistas e da televisão, sempre tem um chato na mesa para lembrar o colesterol, o não-se-que, o não-sei-como. Há gente que se policia e há gente que policia os outros.

Eu gosto de cozinhar, como milhares de outras mulheres. Penso que comer junto – dividir a comida – partilhar o pão – é coisa que distingue as pessoas humanas, porque (como Henri Sobel escreveu um dia) é solidário. E eu acrescento: é feliz. Uma mesa posta cercada de olhos brilhantes acompanhando a fumaça da sopa ou a delicadeza da salada, é um lugar redentor.

Mas, ultimamente, pessoas chegam-se à mesa e perguntam: “É frito?” ou “Tem ovo? Sabe, o colesterol...” Ou então: “Eu bem que gostaria, mas doce engorda...”
Outras cutucam o vizinho: “Olha o seu colesterol!”

Geralmente não são apenas os olhos do vizinho que perdem o brilho. Colheres baixam nos pratos de serviço, movidos pela lembrança inoportuna, talheres são cruzados porque, simplesmente, o chato da vez adicionou um travo de culpa no doce, no assado, na sopa. Em família ainda dá para silenciar o importuno, mas, em sociedade, o prazer se estraga inapelavelmente.

Essas coisas me vieram à lembrança quando olhei um título numa revista eletrônica: “Receitas para comer sem culpa”. E eu pergunto: culpa de que, meu Deus? Quem inventou essa culpa sem pecado e sem crime? Sem sequer contravenção?

Será essa uma nova forma de puritanismo? Ou de um epicurismo masoquista, em que um buraco a menos no cinto vale mais que o prazer de compartilhar uma boa comida?

Minha pobre amiga apagou as centelhas dos olhos, destruiu a recordação feliz, amargou o doce quando lembrou que “não devia”. Porque as pessoas estão carregando, agora, essa culpa sem razão, essa culpa incutida e inventada.

Se você perguntar porque “não devia”, as pessoas mostram, de um modo geral, que sabem tanto quando nossos antepassados sabiam sobre o que acontece no organismo. Alguém lhes disse, alguém as convenceu. Porque? Eu desconfio que os propósitos são bem menos nobres do que preocupação com a saúde.