sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A hora de sair

Grande parte da boa imagem histórica de um político está na forma – e na hora – que ele escolheu para sair de cena. É preciso uma boa dose de humildade e autocrítica para isso. Artigo, aliás, geralmente inexistente nos aceiros de vaidade, hoje mascarados pelo marketing defensivo, que habitam o coração da maioria daqueles que, por esta ou aquela razão, sobressaem-se dos demais.

George Simenon, no seu “O Presidente” (que não é um livro policial, note-se) detem-se sobre o processo superveniente ao afastamento: a mágoa, o cultivo de rancores, a perda progressiva de importância, a visão perspectiva da importância do esforço – quanto mais o tempo passa, menos importante se torna a crise pontual -, a contabilidade das perdas pessoais e, finalmente, a constatação de que os documentos escondidos, para defesa pessoal ou para o ataque a terceiros já não significam nada. O anônimo presidente criado pelo escritor lança-os ao fogo e se entrega à morte. Acabou.

Não posso deixar de pensar em outro livro, “Porque almocei meu pai”, de Roy Lewis, sociólogo militante e literato bissexto. Lewis reflete sobre o canibalismo do poder, no início do tempo humano. E juntá-los a um terceiro: “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, um livro extraordinário sobre nós, os brasileiros.

Em trinta anos no jornalismo testemunhei quedas e afastamentos de vários todo-poderosos circunstanciais. Raros conseguiram ultrapassar o limiar da porta de saída com tranquilidade. Estes geralmente souberam a hora de cair fora, interpretaram corretamente os indicadores para ceder a vez. Alguns preocuparam-se em deixar marcas: seu nome inscrito aqui e ali, numa rua, num bairro, num edifício, num livro. Outros postaram-se no centro do mundo e de lá não saíram, falando de si mesmos e suas realizações a todos e qualquer um, sem perceber que, com isso, tornavam o círculo de ouvintes cada vez menor. Outros ainda debruçaram-se sobre suas memórias, esquecidos do basilar princípio do jornalismo: old news, no news. Nada mais chato que a política passada – quem duvidar, que leia “O assassinato do general Pinheiro Machado”, livro que consiste na sessão de júri para julgar o assassino, e que foi publicado pelo furor que o julgamento causou, na época. Mesmo agora, em que a internet estabeleceu uma nova temporalidade para a notícia, em quatro dias ela se esgota.

A maioria se entregou ao “meu tempo” e ao desafeto. E, nessa maioria, extremados tornaram objetivo de vida pequenas vinganças, que, em alguns, chega a enxovalhar a própria biografia.

Tive um colega de jornal, o Luiz Paulo Freitas, dono de uma curiosidade insaciável e de uma memória do mesmo porte, que não perdia de vista os caídos, e nos informava sobre eles. Quase sempre na frase tinha um “coitado!” – e com essa palavra ele definia o sofrimento do apeado com a saída.

Havia quem não fosse “coitado!” – os que decidiram fazer outra coisa, viraram a página, dedicaram-se ao que lhes era possível com alegria e felicidade, encontraram seu lugar. Como Fernando Henrique, por exemplo. Sabem o que ele faz, hoje? Continua perseguindo o sonho da coalizão da América Latina. Ao lado de quatro outros ex-presidentes (entre eles Oscar Arias, Nobel da Paz) promove encontros, reuniões e debates em busca da paz continental. Esses cinco homens souberam reconhecer seus limites e sua importância. A porta de saída serviu-lhes de porta de entrada para outro espaço, onde mantém sua contribuição.

Comparando-se a Sarney, que se tornou um títere embalsamado em vida...


PS - Eli, mande-me seu e-mail!