quarta-feira, 11 de março de 2009

O ciclo final

De repente, as pessoas começaram a morrer.
Não se trata de calamidade nem catástrofe, nem um ebolazinho vagando por aí. É uma simples questão de idade.
Os apologistas da meia idade, que a chamam pomposamente de melhor idade ou terceira idade, esquecem deliberadamente de dizer que é a fase da morte. Aqui e ali, um se vai disso, outro se vai daquilo, outro desaba numa cadeira de rodas, outro ainda mostra o aspecto devastado de uma doença incurável.
E é de repente que tudo acontece: um dia você acorda contabilizando perdas.
A gente se consola. No caso de minha geração e de meus amigos, a maioria deles teve vidas bem vividas. Talvez pobres e desconfortáveis, mas vividas em profundidade, pessoal e coletivamente. A gente se consola – mas, no fundo do fundão, sabe-se já na fila terminal. Agora, é uma questão de tempo.
E é aí que a morte entra definitivamente em nossas vidas.
Ela, que nos acompanhou disfarçadamente durante toda o tempo – “minha morte nasceu comigo”, dizia Ruy Meira – aqui e ali mostrando a cara entre sustos e dores, agora toma lugar ao lado. Ela estimula o acerto de contas consigo mesmo, a avaliação do que se fez ou deixou de fazer, o que ainda se pode fazer, as dívidas deixadas pelos sonhos não realizados. Ela estimula um retorno a coisas antigas, a vontade de repente de rever um amigo de infância há muito afastado, ou procurar gostos e sabores da adolescência – na verdade, a vontade de voltar o relógio da entropia. Ela impele para o médico, para a ginástica, para deixar de fumar, deixar de tomar a cerveja do fim de semana ou o drinque do almoço. Ela nos faz encher de nostalgia canções e alimentos que julgávamos antes insuportáveis. Ela manda mensagens, ao acertar este ou aquele conhecido.
As primeiras perdas são chocantes e dolorosas – envolvem a constatação de nossa própria condição. As seguintes, são mais naturalmente aceitas; e à medida que o tempo passa, a morte impõe seu ciclo de resignações obrigatórias.
É importante reconhecer este ciclo, mesmo que o pessoal que fala de melhor idade não goste. Pois que um dos problemas deste nosso mundo contemporâneo – Carlos Coimbra situa com propriedade isto, na sua “Introdução a uma teoria sobre a morte” – é o escamoteamento da morte e o recalque do luto, o não se falar do assunto, o esconder-se de uma pessoa sua condição terminal, impedindo-lhe a experiência final.
O torvelinho da melhor idade também impede outra coisa: aprender a conviver com a sombra da morte nas nossas vidas. Essa convivência nos faz cultivar as saudades daqueles que já morreram, valorizar os sobreviventes e descobrir, nas gerações mais novas, diamantes e pérolas, de uma forma que não conseguiríamos antes. É ela que nos dá paciência e tolerância. É ela que nos defende do terror primordial de morrer – este terror que nos guiou para a vida durante todo o nosso tempo – conduzindo-nos suavemente para o fim. Essa sombra permite que vejamos nuances que a luz crua da atividade plena nos impedia de reconhecer: o conjunto da humanidade, a nossa posição e importância no cortejo humano.
E, também, reconhecer que os que morreram continuam mantendo os fios que lhes correspondem na teia de afetos que nos protege do desespero que nasce, junto com a morte, ao sermos gerados.