quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Virada

Recebo o ano novo com o impossível chegando à minha casa: a partir do dia 6 de janeiro, concertos ao vivo na sala de jantar.
A iniciativa é da Filarmônica de Berlim, que, nesse dia, vai abrir sua sala digital de concertos. Não é preciso mais ir lá, para ver e ouvir. Basta pagar o ingresso eletrônico, e se instalar no sofá.
Não é a mesma coisa. Não, não é como você estar no show, com toda uma atmosfera cercando, a multidão voltada se entusiasmando ou se frustrando como um ente só. Mas este primeiro passo, que naturalmente abrirá caminho para todos os concertos, de todos os estilos – do rock ao reggae, do erudito ao gregoriano – vence o tempo de um golpe só. Pois eu terminara o ano descobrindo a existência de um violinista húngaro, em fim de carreira, que foi premiado com um Stradivarius porque sabia tocá-lo como raros o fazem – do qual, porque eu vivo do outro lado do mundo, nunca ouvira falar. É que passam-se anos até que o som emitido do outro lado do mundo chegue até nós... e mesmo as grandes celebridades, só as conhecemos quando já na metade final da carreira.
Eu amo isso: tecnologia a serviço da beleza.
O ano me chega, também, com um novo estilo literário apontando nas livrarias. Não sei como se chamará. Ele acabou de nascer. É sempre bonito ver uma coisa nova inaugurando o seu dia, como disse Cabral de Mello, principalmente quando essa coisa nova é de nascimento tão raro que às vezes passam-se séculos sem que aconteça.
Um livro recém-lançado, da brasileira Fal Azevedo (“Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite”) condensa o estilo, originado diretamente das páginas web. É uma forma de escrever aparentemente fragmentada – essa é a sua principal característica – com fortes vínculos no cotidiano. Uma escrita feita de instantâneos, por assim dizer. Com poesia e reflexões permeando fatos. Exatamente como a miscelânea da net, onde cada pobre mortal retira os pedacinhos para compor sua própria história.
Este novo estilo – que talvez até seja um novo gênero, mais adiante – lança para o ostracismo alguns clássicos, é verdade: quem se acostuma com a condensação da rede tem dificuldade para as longuíssimas digressões de Dostoyevski ou as páginas de descrições de Dumas. Mas renova a literatura, e vai alcançar um público que está muito longe, hoje, das editoras.
Por isso, apesar da violência encurralar Belém, tanto no Pará, como em Judá – não descreio do novo ano. Ele começa com rumo e talvez, quem sabe, seja feliz.
O que desejo para todos vocês.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O cartão




Esse aí é o primeiro cartão de Natal que circulou no mundo.
Coisa de inglês – do império britânico vitoriano.
E de artista.
Henry Cole, fundador e diretor do South Kensington Museum (hoje Victory and Albert), de Londres, teve a idéia e mandou, em 1843, o pintor John Callcott Horsley preparar este cartão. Ele incluiu as felicitações (Merry Christmas e Happy New Year) – e o cartão virou febre. No ano seguinte, a lordeza aderiu em massa. E, nos anos seguintes, o império inteiro.
Cem anos depois, o cartão de boas festas era mundial. E, na primeira década do século XXI, tornou-se virtual, também.
Mas o cartão é só uma das heranças do império britânico, era vitoriana, que chegou até nós, ex-colonos portugueses. Há muito mais – a maioria das heranças recebida através da atividade comercial ou industrial.
Uma das mais visíveis está nos carretéis de linha. Pode conferir: até hoje a medida é em jardas, em jardas o carretel padrão (embora, por conta do código do consumidor, os carretéis já tragam o equivalente em metros). Outra, menos visível, mas bem mais permanente, é a estrutura da escola de massa, substituindo a pequena classe, ou o ensino individual pré-vitoriano.
Eu catei esse cartão de Natal na tentativa de ter algo a dizer. Como jornalista veterana e editora, escrevi sobre o Natal durante cerca de 20 anos. Cheguei à conclusão que o Natal é a festa coletiva da solidão. Cada pessoa tem o seu Natal mágico, que é seu marco, profundamente individual. Ela poderá estar numa ciranda, de mãos dadas, e mesmo assim só ela perceberá aquele instante. Muita gente procura repetir esse marco, alcança até outros, mas jamais ele se repetirá. Outros, escondem-no num feixe de obrigações; outros ainda, num estressante nervosismo. Há os que comem, há os que bebem, há os que caçam presentes e os que tentam tirar vantagem – mas todos buscam o instante feliz da noite.
Que pode até ser como retratou Horsley há 150 anos, pondo no cartão o ideal vitoriano de felicidade. Que é esse aí, mesmo: uma família em torno de uma mesa, e, do lado de fora, os pobres recebendo sua esmola. Tudo em seu devido lugar.
Percebeu mais uma das heranças?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Eloá

A garota está morta, e o namorado – bem, o namorado está de cara inchada de tanto apanhar. Mas o repórter, o apresentador – ninguém fala nisso.
Durante e depois do caso, pessoas escreviam nos chats e comentavam na rua: “porque a polícia não usa um atirador de elite e mata ele logo?”
Essa pergunta é reveladora. Matar logo. Está ameaçando, deve ser morto. Mas deve?
Todas as pesquisas de opinião já feitas no Brasil são contra a pena de morte. Mas as pessoas pedem morte para criminosos – bandidos ou, como o rapaz, um criminoso eventual – com naturalidade: “porque a polícia não mata logo?”
Circula na rede um conjunto de slides chamado “sequestro na China”, em que um “negociador” mata um sequestrador a sangue frio. Os comentários são entusiasmados.
Outras perguntas e afirmações: “cadê os direitos humanos da garota?”; “agora, o pessoal dos direitos humanos vai proteger o assassino”. “Cara inchada é pouco. Deviam era dar muito nele”.
Pena de morte após um processo judicial regular, não pode; a polícia matar, pode. O que existe por detrás dessa ambivalência?
Eu não tenho muitas ilusões sobre a nobreza do ser humano, mas acredito que ninguém quer voltar à barbárie. Então vou tratar dessas perguntas – e da cara inchada do rapaz.
A primeira confusão é quanto “ao pessoal dos direitos humanos”.
O principal antagonista deste “pessoal” é uma certa quantidade de policiais que acha simples e fácil justificar o que não faz culpando “esse pessoal”. Um dia destes, uma amiga minha sofreu um seqüestro relâmpago e, como sempre, a polícia acabou prendendo o menor “laranja”. O delegado mandou as vítimas (eram duas) procederem à identificação do preso cara a cara com ele; fez com que o menor fosse espancado; depois, despachou todos para a delegacia da criança e do adolescente, dizendo que “vou mandar, mas não vai adiantar, porque tem uma juíza aí que vive passando a mão na cabeça desses pivetes”. Agora vamos ver o que o delegado tinha por obrigação fazer e não fez:
- ele não fez periciar o local do crime, nem o automóvel, nem os óculos que um dos ladrões deixou cair; aliás, ele sequer foi ao local;
- ele não relacionou testemunhas – havia mais de dez – para o inquérito;
- ele não ofereceu às vítimas o banco de imagens, para identificação dos bandidos adultos;
- ele não protegeu as vítimas de uma desforra futura, mas obrigou-as à situação de constrangimento;
- ele não mandou fazer e nem fez qualquer busca na sua jurisdição.
A culpa é da juíza que apenas quer que se cumpra a lei relativa aos menores? Quando um policial bate, ou manda bater num detido ou preso, está-se nivelando a ele, está respondendo com simples violência a violência cometida. Não há satisfação justa para a vítima, nisso: há, tão somente, barbárie. E nenhum trabalho profissional, policial. Saem da delegacia a vítima e o criminoso, mandados para outro lugar: pronto, livrou-se desses. Se os bandidos fossem presos, não haveria prova alguma contra eles, a não ser o depoimento das vítimas – que poderiam ou não identificá-los, porque o trauma de um seqüestro impede segurança na identificação. E isto graças à atuação do delegado – e não ao “pessoal dos direitos humanos”.
A segunda confusão é quanto a “atirador de elite”. Um tiro de precisão é algo tão difícil que, nas Olimpíadas, nos campeonatos de tiro ao alvo – com tranqüilidade, tempo para ajustar a mira, armas perfeitas, alvo delimitado, imóvel e perfeitamente visível – são raríssimos os campeões que conseguem os pontos máximos, ou seja, acertar na mosca em todos os tiros. Imagine-se numa situação de seqüestro, com o alvo movendo-se num local pouco iluminado e em condições de extrema tensão! A probabilidade de errar o alvo é alta demais para justificar o risco.
A terceira questão é quanto ao “mata ele, logo”. Afinal de contas, nós queremos uma polícia feita de assassinos a sangue frio? E para que? É bom lembrar que todo o excesso de poder conferido ao Estado, ou aos órgãos do Estado – entre os quais a polícia – volta-se contra quem o concedeu. Desde os tempos da guarda pretoriana de César – a primeira polícia organizada de que se tem notícia histórica. Polícia com ordem de matar acaba matando indiscriminadamente. Afinal, policial também erra – como qualquer um que não tenha nenhum controle sobre si.
A quarta questão é quanto aos direitos humanos da vítima. Será que ninguém vê que ela teve seus direitos violados pelo bandido, e não pela polícia? e que não é violando mais direitos humanos que se corrige a primeira violação? e que se a polícia fizer o que o bandido faz, está se igualando a ele, e deixando de ser um instrumento de justiça?
Matar e bater não resolve nada. Matar e bater somente piora tudo. Por acaso a cara inchada do rapaz vai suprir a falta de Eloá? Consolo teve a família, com certeza, com o bem que se gerou da morte da moça, com os transplantes de seus órgãos – nunca, com a cara inchada que a polícia ofereceu ao vídeo. Uma mãe transtornada pode até sentir-se melhor depois de bater, porque extravasou sua raiva; mas um espancamento feito por terceiro não fará com que se sinta melhor.
A quinta questão é quanto ao silêncio. Ele é cúmplice, e os jornalistas que exibem vídeos com um preso de cara inchada, sem comentários, alegando a pressão da opinião pública, tornam-se cúmplices da violência, e ajudam a piorar tudo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Vergonha!

O que aconteceu na Grande Belém, no dia 5 de outubro, a quando das eleições municipais, é uma vergonha.
E não adianta os tribunais eleitorais e o Ministério Público fazerem de conta que tudo está bem. A população sabe. A população viu. A população sentiu.
Cerca de trinta mil eleitores foram objetivamente impedidos de votar em Belém, e alguns outros milhares em Ananindeua; e se eu digo “objetivamente impedidos”, não estou exagerando. Urnas que deviam ser substituídas, não o foram; e não havia cédulas para a votação manual.
É ridículo dizer-se que os resultados estão dentro da normalidade: não estão. Basta conferir a abstenção havida nas eleições, desde 2000: em todas as votações, ela fica muito longe dos 19% registrados nesta.
Choro de perdedor? Não, nada disso. Eu não estive na campanha, não apoiei qualquer candidato. Mas reclamo em memória dos que sofreram, morreram, foram exilados, humilhados, perseguidos para defender o direito do eleitor de escolher seus representantes; para defender a liberdade de julgamento no Judiciário, a dignidade da toga. Não é tanto tempo assim: ainda não se passaram 50 anos que Herzog morria na cadeia, Ulisses Guimarães era humilhado em público, Juscelino e Jango morriam em acidentes suspeitos, Teotônio Vilela percorria o país pedindo liberdade.
O que aconteceu em Belém ofende a memória destes homens.
Sabem os juízes e procuradores eleitorais, tão bem quanto eu, que trinta mil votos em Belém alteram a composição da Câmara de Vereadores. Sabem que as diferenças entre os candidatos foram pequenas demais, para que se desconsidere a quantidade de eleitores impedidos. Sabem que a eleição está sob suspeita.
Não adianta dizer que “foi o sistema”. O sistema que fez isso não é o de informática, o programado nos computadores. O sistema que fez isso é o mesmo que mantém a impunidade, é o mesmo que só fiscaliza os adversários, é o mesmo não viu uma garota presa entre homens em Abaetetuba, dias e dias a fio.
Esse sistema tenta convencer que a urna eletrônica é inviolável e que todos aqueles que a manipulam estão acima de qualquer suspeita. Tenta convencer, aliás, que todos os que organizam e executam o processo eleitoral estão isentos de qualquer paixão, inclusive da cobiça. Que os resultados são puros, isentos, livres.
Seriam – se não fosse o fato de que cerca de trinta mil eleitores não tiveram meios nem maneira de expressar sua escolha em Belém. Seriam – se não fossem as centenas de milhares de testemunhos sobre as condições de funcionamento das urnas eletrônicas, das trocas de disquete no meio da votação, das recomendações dos mesários dizendo ao povo que fosse para casa, às vezes até de maneira desaforada e direta. Seriam – se as urnas tivessem sido testadas, se tivessem sido conferidas, se a eleição tivesse sido preparada corretamente, com todo o respeito ao eleitor, à democracia, e àqueles que lutaram, sofreram e morreram para que esta eleição acontecesse.
É possível até que o resultado da majoritária não fosse alterado, se todos os que deveriam votar, votassem. Mas não se pode dizer o mesmo da eleição proporcional. A bagunça, fortuita ou não, acidental ou não, coloca em dúvida a legitimidade do mandato de todos os vereadores de Belém e Ananindeua.
E nos envergonha.
Uma vez, o ex-prefeito de Belém, Lopo de Castro, me disse que a oposição fazia campanha no Pará, nas décadas de 940, 950, com porretes de maçaranduba, para garantir a inviolabilidade das urnas, tanto quanto possível. A oposição terá que voltar a eles?

sábado, 4 de outubro de 2008

Doce festa

Hoje é véspera de eleições, e por toda parte eu ouço críticas.
Alguém, no supermercado, diz que é melhor anular o voto a votar nesses que estão aí.
Outros reclamam da falta de propostas. Outros da falta de senso dos candidatos, dispostos a tudo para fazer-se notar. Outros, ainda, da repetição indefinida da propaganda eleitoral. Alguns se recusam a assistir qualquer coisa. Outros assistem como a um circo, com pipoca, refrigerante, prontos para rir.
Intelectuais torcem o nariz, donas de casa falam em altos brados, homens confessam não saber em quem votar. Nada presta, salvo para os militantes dos partidos políticos, cujo argumento principal é: me ajuda.
Mas eu, eu gosto de ver as bandeiras desfraldadas, os raps e as paródias da propaganda musicada, as idéias fora de propósito e a cara-de-pau de alguns candidatos. Gosto de ver a política explodindo nas ruas, com opiniões, mesmo fora de propósito e de senso, com porta-bandeiras inertes como postes, demonstrando claramente que estão ali só para ganhar um dinheirinho.
Eu gosto do ar de festa cívica que as eleições trazem consigo. Não é uma festa em honra da Pátria, como na Independência, é a festa da Pátria amada, idolatrada, salve, salve: estamos decidindo nossos destinos, diz a expressão de cada um, nas ruas, saindo da cabine de votação carregando o segredo de seu voto.
Eu gosto de sentir o pulsar o coração da democracia.
Gosto de ouvir a cidade dizer-se pela boca de muitos. Nada é diferente do que sempre foi, mas é sempre uma coisa nova inaugurando o seu dia, como disse João Cabral de Melo Neto. Intriga-me a sabedoria do voto, do rumo traçado por milhares ou milhões de mãos, indicando o futuro, agindo e reagindo de uma maneira intuitiva, mas sempre com poderosas razões movendo os dedos.
Sou daqueles que discordam de quem diz que o povo não sabe votar, que o povo é manipulado, que vai pela onda do marketing e da mídia, do voto comprado e coisa e tal. Isto porque eu já vi candidatos distribuírem dinheiro, cesta básica, remédios, óculos – e perderem fragorosamente eleições. Discordo de quem acha que o povo não sabe o que quer, que se ilude com falsas promessas. O povo sabe muito bem o que quer, e vota no sonho que tem. Só dormindo alguém sonha com o que não conhece e nunca viu.
Aprecio o estágio político em que estamos, eleição após eleição. Na primeira metade do século XX, os candidatos imprimiam e distribuíam suas cédulas de papel, situação e oposição eram obrigados a defender seus votos até com jagunços. Havia urna emprenhada, mapismo e roubo, puro e simples, de cédulas, para que não estivessem disponíveis para o eleitor. Na segunda metade do século XX, o regime era bipartidário e os candidatos de situação e oposição tinham que passar pelo crivo dos serviços secretos antes de poderem mostrar a cara ao povo. Não havia propaganda: o nome próprio (nada de apelidos), uma foto, um número, e estamos conversados.
A eleição era sem-graça, até porque, se a oposição tivesse votos demais, seria cassada.
Hoje, bicicletas sonoras circulam o dia todo, alto-falantes lembram fulano e cicrano, as carreatas e caminhadas assinalam as opções e nós – nós podemos criticar à vontade. Podemos dizer tudo o que nos vem à cabeça, podemos até elogiar se quisermos, podemos fazer propaganda e podemos não fazer nada.
A liberdade é doce e suave. A Pátria livre se enfeita de faixas, panfletos, cartazes, se enfeita sobretudo de vozes dissonantes, mas harmoniosamente democráticas.
E de repente sabemos que somos brasileiros, profundamente brasileiros.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A combatente que nunca perdeu a ternura

(Especialmente para Samuel, Clara e André)

Elisa leria esse “especialmente” aí em cima e me telefonaria imediatamente:
- Ah, não, senhora! Põe também o Danilo e o Firmino! E dá um jeito de incluir a Verinha! E, olha, também a Maria e a Rosa. Afinal de contas elas já estão comigo há anos!
Ela era assim, a Elisa: um coração enorme, uma generosidade oceânica. Ela era incapaz de chegar e perguntar do que alguém estava precisando. De alguma maneira ela sabia – e, nas horas difíceis, já chegava com o almoço, a capa de colchão, a almofada, o descanso para os pés, ou a palavra amiga. Exatamente aquilo que a pessoa precisava e de que ninguém se lembrara de providenciar.
Sobre sua ternura compassiva desdobrou-se um edifício de lutas de vanguarda: para satisfazer o pai, formou-se professora no IEP. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu sua vaga no antigo curso científico, preparatório para a Universidade. Fez os dois cursos simultaneamente; mostrou o diploma ao pai e foi estudar medicina, seu sonho, sua vida, lado a lado com Carmem Tuma, irmã de Simão.
A essa primeira luta, doméstica, seguiu-se a Ação Católica, na JUC, e a participação nos grandes conflitos dos anos de chumbo. Elisa respondeu a inquérito policial-militar; e perdoou todos os que caíram sob a força dos interrogatórios. E abraçou sua grande causa, a saúde pública.
Lembro Elisa às turras com Almir Gabriel, seu grande amigo, discutindo saúde pública. Narrando, indignada, algum desacerto, para Marinalva e Arnaldo Gama. Falando de “coisas do hospital” com Anselmo Bentes e Zélia Amador, com Ana Vicentina e Ronaldo, Margarida, Rosemary Góes, e outros tantos... O hospital é o Barros Barreto, que ela transformou em universitário, com o decisivo apoio do então reitor Nilson Pinto.
Elisa e Beth Santos, lutando juntas, com o apoio de Roberto, pelo Instituto Evandro Chagas. Elisa e Waldir Mesquita, batalhando a implantação do SUS. Elisa falando emocionada de Noel Nutels, seu parceiro de trabalho no então SESP, e me emprestando livros sobre saúde da família. Elisa discutindo a inteligência emocional com Carlos e Dasy Coimbra, com Clarice e Rômulo Alves, Arthêmio e Terezinha Ferreira, Jean Hébette, Davi Laredo ...
Também lembro Elisa recebendo para os aniversários, que ela gostava de festejar, abrindo a casa para amigos, irmãos e suas famílias e cobrando presença, inclusive das crianças e adolescentes, tanto e com tanto amor que Sarah, filha de Edith e Silvério Maia, a escolheu como madrinha.
E lembro, sobretudo, uma frase de dois verbos, extremamente comum no seu vocabulário: “Precisamos ajudar”. O ajudado podia ser um amigo íntimo, ou um completo desconhecido. Ela mobilizava e geralmente conseguia o objetivo – que poderia ser uma visita para conversar, uma ajuda material, uma urgência reconhecida pelos escalões competentes, ou algumas flores de aniversário.
Ela jamais perdeu a ternura. Por isso, no dia em que morreu, plantei finalmente no lugar definitivo a muda de açucena que ela e Samuel me deram. As estrelas brancas e perfumadas me lembrarão sempre desta que foi uma estrela viva, dando rumo e socorro a milhares de pessoas.

sábado, 13 de setembro de 2008

Waldick, a marca

Eu não me dera conta o quanto Waldick, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga, Angela Maria, Jackson do Pandeiro, e outros desses estavam presentes na minha vida até descobrir, de repente, que todas as músicas que sabia de cor sem ter decorado deliberadamente a letra eram aquelas cantadas por essas pessoas.
Essas foram as músicas da minha infância e pré-adolescência, ouvidas nas rádios e nos alto-falantes das esquinas. Decorei por ouvir, ouvir e ouvir, porque todos os discos de vinyl que comprei, a partir dos quinze, dezesseis anos, passavam muito longe deles.
E aí fiquei pensando o quanto essas pessoas – essas músicas, esse estilo de cantar – influenciaram minha vida e meus gostos e desgostos.
E o quanto elas foram – ainda são – importantes.
Eu não gosto nem gostava do Waldick, sua voz de aguda e, para mim, desagradável. Nunca decorei o “cachorro não” – já não ouvia tanto os alto-falantes. Mas “Quem eu quero não me quer” – impossível não repetir mentalmente a música enquanto escrevo este texto.
Uma outra música, gravada pelo Waldick, chega até mim na voz de outro cantor, este latino: “Perfume de Gardênia”. Eu nunca vi uma gardênia, e acredito que a maioria das pessoas desta Belém do Pará, também não. A gardênia era mexicana, não sei o cantor, mas o perfume de gardênia me adverte sobre a poderosa influência da música hispânica nesta região – da salsa ao bolero, e letras inteiras em espanhol me afluem, como “cierta vez un ruiseñor”, ou vereda tropical.
Mas, neste mesmo momento, estou ouvindo música sertaneja, exatamente da mesma maneira com que ouvia Waldick. À revelia, porque ninguém obedece a posturas públicas nesta cidade e os bares, casas noturnas e que tais fazem o barulho que querem, do jeito que entendem, e acabo de descobrir que era assim quando eu era menina, também. A música entra ouvidos a dentro, chateia, mas fica. Mais dia, menos dia, acaba-se decorando uma letra indesejada.
Há que tolerar? Ou tenho direito de não ouvir? Se eu colocasse meu som, com toda a potência do subwoofer, com o dueto de Siegfried, seriam os apreciadores da música sertaneja obrigados a tolerar? Ou não?
E até onde isso contamina o gosto e a estética? Meus filhos riem-se quando olham alguns de meus discos: Nelson Gonçalves, Jamelão, Gregorio Barrios... E, exceto Jamelão, cuja voz, quando jovem, era de uma pureza excepcional, nem eu mesma sei porque às vezes ainda ouço. Creio que um vírus antigo, inoculado pelos alto-falantes e pelos rádios, quando eu era menina. Sei as letras, e isso é algo íntimo, conhecido, terreno seguro – mas essas letras sempre me levam a um conflito, porque, em sua maioria, são horrorosas, em suas músicas em duas escalas e harmonias simples. Muitas, eu gostaria de esquecer – mas não posso. Afinal, durante anos e anos e anos eu ouvi “Minha mãezinha querida / mãezinha do coração”, coisa que detestava mesmo aos dez anos de idade, mas que ficou em minha memória como uma marca, mas de que?
Agora o Waldick morreu, e eu sou obrigada a reconhecer que ele esteve presente em minha vida, sem que eu percebesse sequer, mais do que eu supunha, e muito, muito mais, do que eu gostaria que tivesse estado. Muito mais do que esteve o outro ilustre morto do mês, o Fernando Torres.
A morte dele me leva a constatar que Chitãozinho e Xororó, Leandro (ou Leonardo?), Daniel e outros semelhantes hoje estão presentes na minha vida muito mais que os cantores que eu curto de verdade. Eu ouço as imitações destas figuras quatro vezes por semana, algumas horas por dia, graças ao desgoverno desta cidade – enquanto só pude ouvir “St. James Infirmery” uma única vez, nos últimos dois meses...
Porque também este som descarado impede que a gente ouça o que gosta. Ópera e jazz são como champanha, dificilmente alguém, por mais tiete que seja, aguenta uma dose às dez da manhã; a música romântica, clássica ou popular, pede o frescor noturno – 35 graus de calor são incompatíveis com Pixinguinha; e a alucinação do rock – Hendrix, Floyd, Malmsteen – exige que você já tenha acabado o trabalho do dia, para poder mergulhar na emoção.
Waldick, o cabotino, me marcou e eu nem sabia. Estou danada com isso.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Ser mulher...

... não foi empecilho para duas imperatrizes orientais que conseguiram vencer o pior machismo: o institucional. Ambas se viram em situações muito difíceis: mães viúvas de herdeiros de trono com três e cinco anos de idade. Uma na China, outra em Bizâncio.
É bom dizer que ambas tinham uma coisa em comum: eram alfabetizadas, sabiam ler e escrever, o que, nas épocas em que viveram, era muito raro entre mulheres.
Elas se chamavam Wu – a chinesa – e Teófano – a grega. Diga-se de passagem que esta última não nasceu com este nome. Nasceu Anastacia. Quando o imperador bizantino a escolheu para esposa, trocou-lhe o nome. Teofania quer dizer momento de presença divina – e dá pra sentir por aí o quanto era apaixonado este imperador por sua mulher.
Wu era simplesmente a primeira esposa, a mãe do herdeiro. Era inteligente o bastante para aconselhar o imperador, e foi isso o que fez enquanto ele viveu. E o fez tão bem que, quando ele morreu, ela conhecia a fundo os negócios do império.
Ambas também tiveram outro ponto em comum. Souberam escolher alguns eunucos.
Aqui, um parênteses: eunucos eram castrados que podiam ter contato com as mulheres. Esse trânsito, e mais a isenção do serviço militar, a que eram obrigados os homens todos, tanto por cultura como por necessidade, os conduzia naturalmente à administração. Todos os grandes impérios orientais – o persa, o chinês, o bizantino, o otomano – foram administrados por gays. Wu e Teófano souberam escolher os seus. Ficaram com os melhores.
Voltamos agora ao começo. Wu, viúva, com um filho de cinco anos, imperador do sol e filho do céu, não podia ser regente. Era mulher. O primeiro problema era manter vivo o imperador-criança; o segundo era deter a corrida ao poder por parte dos nobres. Wu fugiu da briga. Informou que, enquanto não decidissem a regência, a criança ocuparia o trono. Todos pensaram que era apenas formalidade, e concordaram. Wu mandou colocar um biombo atrás do trono – afinal, o imperador era muito pequeno, podia cometer uma impropriedade protocolar. Todos também acharam isso natural. Atrás do biombo sentou-se Wu, e guardando o biombo, ficou seu principal eunuco. E ela assumiu o poder. Durante vinte anos ela governou atrás de um biombo, no início pela boca do eunuco, mais tarde pessoalmente, e, depois, à medida que o imperador vencia a adolescência, ela foi se afastando progressivamente, até ser ele pai, e uma primeira esposa reinvindicar o lugar de imperatriz. Wu morreu de morte natural; diz-se que foi dos mais cruéis imperadores chineses. Mas diz-se também que, enquanto governou, não houve fome na China.
Quanto a Teófano, o seu pequenino tinha três anos. Ela sofreu um golpe de Estado logo após a morte do marido. Casou-se com o golpista, e, usando com extrema habilidade a coroa do filho, convenceu o novo imperador a coroar o menino como co-imperador, para sossegar os descontentes. O novo imperador era um guerreiro, e, enquanto ele se distraia com artes marciais, ela passava de conselheira a governante. Em seis anos, conseguiu despachar o marido para os confins do império, tirou-lhe a coroa e fez coroar, como co-imperador do filho, o amante – a pessoa que escolhera para casar-se novamente, e não pudera. O menino tinha onze anos, ela assumiu a regência da metade imperial dele. Quando deixou o poder, e retirou-se para uma casa religiosa que mandara construir, fez com que dois filhos que tivera depois de regente fossem também coroados co-imperadores, para evitar uma disputa sangrenta pelo poder. Diz-se que Teófano foi uma das piores sogras que alguém possa ter na vida. Mas também que não se passava fome em Bizâncio, porque, nas épocas difíceis, ela socorria os famintos.
Agora você pergunta porque é que eu fui desencavar estas mulheres tão antigas e contar essas histórias. E eu lhe digo: para mostrar que nossas dificuldades, como mulheres do século XXI, são pequeninas diante das que elas souberam vencer, para manter as cabeças em cima dos respectivos pescoços, e as coroas em cima das cabeças dos filhos. Nós só estamos prosseguindo um caminho.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Olimpíadas

Vejo a manchete do jornal: Fiasco!

Mas fiasco é a manchete: se o jornalista se desse ao trabalho de olhar o histórico do Brasil nas Olimpíadas ia verificar que o resultado desta não foi nem mais nem menos que os anteriores – exceto em Atenas, onde ficou em 15º. lugar.

A manchete poderia refletir uma frustração – por causa do futebol – mas é uma frustração injusta. Afinal de contas, o desempenho esportivo deve decorrer de uma qualidade de vida. Isso geralmente ocorre, exceto quando se torna razão política, o que está fora do ideais olímpicos, mas bem dentro dos objetivos de governo tirânicos ou ditatoriais, que usam o esporte para disfarçar seus defeitos.

A China, por exemplo. Talvez a Olimpíada ali signifique uma ferramenta de abertura política. Talvez. Antigos impérios raramente prescindem de imperadores, chamem-se reis, presidentes ou primeiros-ministros. Mas as 50 medalhas de ouro chinesas foram produzidas por uma supermáquina estatal. Elas estão calcadas numa enormidade de sofrimento de milhares e milhares de crianças, obrigadas desde cedo a exercícios extremamente penosos. O termo é exatamente esse: obrigadas. Elas são selecionadas e formatadas, digamos, para isto ou aquilo.

Em 50 medalhas chinesas, foram raras as explosões de alegria. Enquanto Phelps gritava e Cielo chorava, Wei Yang, o melhor ginasta do mundo, limitava-se a uns olhos brilhantes e nenhum sorriso.

A medalha olímpica é, no fundo, uma afirmação nacional, e é nisso que se fundamenta a frustração brasileira. Mas somos mais que os vigésimos do mundo? Apesar da propaganda ufanista oficial (meu Deus, como eu me lembro da ditadura, com o “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”) não somos mais que isso, mesmo. Não é pouco – afinal, há entre duzentos e trezentos países no mundo todo. Estar no primeiro pelotão deve significar alguma coisa, não sei bem o que, se não temos pretensões a hegemonias ou novos impérios. Ou temos?

A manchete do jornal talvez se deva, também, a essa sensação de balão furado entre a realidade e a propaganda oficial, esta reforçada por ribombantes afirmações de gente como Galvão Bueno ou Sílvio Luís, em torno da pátria de chuteiras, sapatilhas, tênis ou sungas, quimonos e maiôs. Esperar apenas pelo desempenho máximo, no entanto, é perder o melhor dos jogos olímpicos: o lado bom da natureza humana, que nos faz compensar, de alguma forma, o festival de violências e tragédias de que se farta a imprensa.

Por exemplo: o gesto dos croatas cedendo seu barco para os suecos desmastreados por um temporal. Os suecos foram prata. Quanto aos croatas, milhões de pessoas passaram a olhar de outra maneira o pequeno e instável país balcânico, com gente tão gente assim.

Ou os argentinos aplaudindo o Brasil. Tão inesperado que pareceu irônico; mas los hermanitos estavam falando sério, agradecendo a presença brasileira no pódio. Desportividade verdadeira, o lado bom do encontro dos povos.

E, no fundo do fundão, haveria muita diferença para aquele povo que encheu os estádios com olas, acenando para o telão como qualquer um de nós, se tinha ou não o máximo de medalhas para comemorar? As aclamações para Lang Ping, a chinesa treinadora do vôlei americano, mesmo no jogo contra a China, mostram que a diferença não é suficiente para amargar a festa.

Ou seja: o fiasco é não participar.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

História pré-olímpica


Yasmin é uma brasileirinha de dez anos, pequenina e de corpo flexível. Um dia se encantou com a ginástica rítmica. A mãe, empregada doméstica, andou de seca a meca e conseguiu encaixá-la numa turma, num desses programas de esporte-educação.

Yasmim treina sozinha, em casa. Até passou a fazer os deveres escolares sem ninguém mandar, para garantir sua vaga. Três vezes por semana, passa as tardes na ginástica.

Eu fui lá, duas ou três vezes.

É um galpão, ex-depósito de cerveja, com piso de cimento, telha de brasilit, quente e escuro. As cerca de 50 crianças sentam em roda, e as três professoras programam a atividade aos poucos, algumas de cada vez, ou aquecimento geral.

Volta e meia Yasmim vem com uma rifa. Para comprar material: o arco, a malha, a sapatilha. Dez bilhetes para cada família – mas algumas meninas não levam. “Se não vender, tem que pagar, e minha mãe não vai poder”, explicam, envergonhadas. Todas elas são muito pobres. Todas elas têm os corpos flexíveis e muita esperança.

Um dia destes Yasmim chegou feliz. Havia conseguido ser selecionada entre as melhores, para participar de uma apresentação. Foi ao tablado, saiu-se bem, e foi para uma segunda seleção: agora, para viajar, para uma apresentação do nordeste.

Duas semanas antes da viagem, a lista de providências necessárias: documento de identidade e laudo médico.

A família de Yasmim se movimentou. O documento de identidade até que foi rápido, mas o laudo... A mãe foi ao posto de saúde, a consulta só sairia com quinze dias. No final da semana Yasmim chorou um dia inteiro. O laudo parecia impossível, a viagem cancelada. A mãe, a irmã e a tia partiram para enfrentar o SUS. Dois dias antes do final do prazo conseguiram um médico caridoso que examinou a menina fora da fila interminável, e expediu o laudo, dizendo que ela tem condições boas de saúde.

Yasmim foi competir. Os que ficaram, mergulharam na internet, a pedido da mãe: Yasmim precisa da bola, a bola da ginástica rítmica.

Onde se compra essa bola? O mercado livre foi vasculhado, o mercado formal também. Só por encomenda. Os organizadores do programa não sabem informar? Não vão encomendar para todas as meninas? Não, não tem dinheiro suficiente, até agora só se conseguiu o arco. Nem bola, nem maça, nem fita.

Nem avaliação correta de condições físicas – dentes, ossos, dieta. Yasmim freqüenta emergências e campanhas de vacinação. E é só.

Eu não posso deixar de pensar no dinheiro das loterias, que deveria estar financiando essas coisas, mas fica dentro da caixa preta do sistema educacional, e só Deus sabe o que acontece com ele. Na melhor das hipóteses, provavelmente transformado em quadras polivalentes, para diversão comunitária, porque os lobbies da construção civil não dão moleza...

Nos próximos dias, Yasmim e suas coleguinhas vão encher os olhos com as ginastas que jogarão para o alto, bolas, maças, fitas e arcos, deslizando suas acrobacias e sorrindo. Elas sonharão, menos em estar na numa olimpíada, mas em simplesmente participar de tanta beleza. Para elas, que ralam os joelhos nas mantas que atenuam o cimento cru, subir num simples tablado já seria maravilhoso - mais ainda empunhar as impossíveis maças e bolas oficiais.

E autoridades e cartolas ainda fazem cara de decepção com o desempenho olímpico brasileiro...

Cínicos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Medicina de massa


Eu pago convênio. Caro. Minha empregada paga convênio. Barato.

Eu fui para uma consulta médica, pré-agendada. O médico trabalha num espaço que divide com cerca de outros vinte. Três atendentes. O rapaz olha para mim, com cara de cansaço, e me diz para pegar uma senha. Pego, é a 905. No painel, aponta para 885. Constato que estou numa fila apenas para ter acesso à fila do atendimento médico. Digo-lhe que agendei a consulta, ele faz que não ouve – deve ouvir a mesma coisa milhares de vezes. Vou embora e aviso à médica que lá não volto.

Minha empregada marcou sua consulta. Ao chegar, foi informada que o médico não fora trabalhar. Ela agendou de novo. Madrugou na porta do consultório. Pegou a senha número sete. O médico chegou às 9, ela foi atendida às onze. Perdeu a manhã toda.

Lá como cá, o mesmo desleixo. Ou seja, não é questão de pagar caro ou não.

Reclamam do atendimento gratuito. É igual. Apenas, no gratuito, só dói no corpo, não dói no bolso também. E o SUS ainda fornece o remédio.

Falo para outra médica essa situação. Ele me diz que a demanda é grande demais, fila de um ou dois meses em algumas especialidades. Mas a gente paga convênio porque doença não tem hora, não é mesmo?

E também porque convênio é uma espécie de seguro. Seguros, todos sabem, trabalham com probabilidades e faixas de risco. O Brasil tem boas estatísticas de saúde: elas informam, com razoável segurança, que quantidades de população são afetadas por quase todas as doenças. São as estatísticas de morbidade. Mas, apesar de serem estruturados como seguros, os planos de saúde não usam essas estatísticas, não dimensionam o serviço que deverão prestar. E ninguém os obriga a isso – então eles não fazem. O que eles fazem – tanto o que eu pago, que é caro, como o que paga minha empregada, que é barato – é o seguinte: credenciam os médicos que se dispuserem e dão o atendimento como resolvido. O cliente que sofra todas as dores que tiver que sofrer – inclusive a do bolso.

E fazem pior. Instituíram uma burocracia estúpida, tanto no sentido de grande, como no sentido de absurda. Todos os exames de imagem precisam de um carimbo. Esses exames precisam de uma autorização do que eles chamam de “auditoria médica”. Como o volume é enorme, geralmente, e é impossível para três ou quatro médicos auditarem milhares de exames, tudo se reduz a você ficar duas horas numa fila e receber um carimbo num formulário do qual se preenche apenas duas ou três linhas. Aliás, boa parte do tempo de um médico, hoje, é ocupado preenchendo formulário. Às vezes, a maior parte da consulta, também – quando se trata, por exemplo, de exames periódicos de controle.

O quotidiano de um médico, hoje, inclui um punhado de clientes verdadeiros – aqueles a quem ele acompanha de fato – e dezenas de clientes ocasionais. Nestas últimas consultas, a relação é difícil: pacientes, cada vez mais impacientes e informados, desconfiam e se defendem, e o médico, por seu turno, desconfia e se defende também. Esse desfilar de rostos desconhecidos, de um lado e de outro, leva a medicina a um buraco negro: não há médico que não solicite exames complementares para fundamentar um diagnóstico, não há paciente que deixe de desconfiar de um médico que não peça esses exames. E aí, a burocracia põe seu dedinho: são duas consultas para fazer uma, porque o retorno, o plano não paga, embora obrigue. Porque precisa do carimbo...

Essa consulta partida ao meio, no sistema público, leva a situações dramáticas. O paciente precisa de rapidez no tratamento, mas ele só poderá fazer o exame dentro de trinta dias, e terá mais trinta para remarcar a consulta. Alguns médicos simplesmente internam o paciente; outros, se limitam ao vai-da-valsa, e, sessenta dias depois, quando o paciente volta, pior, naturalmente, fazem a prescrição.

A medicina se tornou de massa, não há como voltar atrás nisso. Mas ela pode ser de massa e pode ser decente: muitos países, desenvolvidos ou não, já apontaram o caminho certo, que pode ser resumido numa frase: o paciente deve ser atendido e respeitado.

Coisa que os encarregados públicos de regular o setor parecem não entender, e com que os dirigentes de planos de saúde nem sonham. Para eles, o paciente é só um fator de custo - ou lucro.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Meta número um


Leio nos jornais que a Previdência está-se aparelhando, há oito anos, para cumprir sua meta número um: combater as fraudes e a corrupção.

A noite caiu na minha’alma. / Fiquei triste sem querer./ Uma sombra veio vindo/ veio vindo e me abraçou... – como disse uma vez Carlos Drummond de Andrade.

Pois que a meta número um não pode, não deve ser essa. E porque essa meta está descolada do resto, não entendem essas pessoas que mandam há tanto tempo na Previdência que fraude e corrupção são derivadas, não são premissas. São consequência do mau serviço, da ideologia de Estado, que não vê o cliente, mas apenas a si mesmo.

Por exemplo: todas as empresas são obrigadas a entregar ao empregado o contracheque, a discriminação dos valores que compõem a remuneração. A Previdência não entrega. Você recebe, quando recebe, um tal de “extrato” de benefício. Nem tente reclamar – não há resposta. A Previdência confessa dívidas e não paga, manda para a Justiça porque sabe que, qualquer que seja o valor, vai durar anos para decidir, e ela não pagará a atualização monetária integral; não disponibiliza perícias, principalmente para os incapacitados por Alzheimer e Parkinson; não verifica absolutamente nada.

Imersos na enorme papelada, submersos na burocracia, os funcionários trabalham, na verdade, num enorme cartório. Pensa que o computador eliminou o carimbo? Engano seu. Ele continua lá, firme e forte. Mas o cliente pode receber tiras de impresso automático, impossíveis de serem lidas e entendidas.

Além disso, o grande golpe previdenciário é dado pela remuneração paga aos bancos para que eles controlem o dinheiro do aposentado. É aí o maior vazamento da Previdência – pagamentos por pessoa atendida, com a vantagem do crédito consignado, que não tem riscos mas tem juros altos, que, agora, os bancos estão achando pouco.

Mas a Previdência não está isolada. A ideologia de Estado preside o Brasil. A evolução salarial dos servidores públicos mostra isso: são as categorias repressivas as que ganham mais. Fiscalização, polícia, tribunais e derivados: Procuradoria, Advocacia, Ouvidoria, Controladoria... Compare a remuneração de um professor ou médico com a de um desses togados ou fardados. E depois vêm-me dizer que saúde e educação é que interessam...

O escandaloso, na Previdência, é que ela não cumpre absolutamente nada dos deveres exigidos para qualquer mortal neste país. Está acima do bem e do mal, paira acima da lei (e por isso está fora dela). Como pode falar em combater fraude e corrupção, se é a primeira a descumprir tudo o que propõe?

Eu gostaria muito de saber quantos foram eliminados injustamente no último recadastramento, e voltaram a receber. Desconfio que são a maioria dos cadastros cancelados, porque há milhares de pessoas que vivem em locais remotos ou cujos documentos não estão em dia. Mas essa informação eu jamais conseguirei: a Previdência só diz o que quer, e isso ela não quer dizer.

É uma sombra – que nos rouba a alegria.

terça-feira, 22 de julho de 2008

A ficha suja

Uma discussão nacional nos arraiais jurídicos: deve ou não deve ser publicada a lista dos candidatos com ficha suja, que respondem a processos ainda sem conclusão? De um lado está o direito de informação do eleitor através da publicidade eleitoral. De outro, a presunção de inocência que deve proteger todo aquele que não foi condenado.

O debate repete, em âmbito eleitoral, a discussão penal, em torno daqueles presos “para interrogatório” ou “para averiguações”, principalmente nos casos de crime de colarinho branco, o crime financeiro, em que a arma é o dinheiro.

Que me perdoe a paixão pública, mas o debate é de uma hipocrisia sem par.

Porque o verdadeiro problema não é este: é a falta de justiça.

Perdoem-me também os juízes da Associação dos Magistrados Brasileiros, que assumiram a divulgação da ficha suja, mas eles deveriam começar pelo dever de casa, e botar o Judiciário para funcionar: pensar e resolver os gargalos de prazos e cumprimentos de mandados; reduzir as férias e recessos; condenar, por litigância de má-fé, todos os que apresentaram agravos desertos, recursos absurdos, medidas protelatórias; prender as falsas testemunhas, e punir os advogados que largam o cliente preso na cadeia, porque o dinheiro dele acabou...

Que me perdoem os entusiasmados membros do Ministério Público: comecem também pelo dever de casa, procedendo às denúncias no tempo certo, cumprindo os prazos que manda a lei, e evitando tanta gente presa sem julgamento, com ou sem colarinho branco. Entendam-se com a polícia, ajustem o controle processual, desobstruam o cível, parem de apresentar denúncias ambientais insensatas. E, sobretudo, estejam, se possível, residam nas comarcas do interior deste Brasil, porque sertanejo pode ser um forte, mas há limites e sua fortaleza e no que pode de injustiça suportar.

Ainda me perdoem todos os meus colegas jornalistas, ardorosos defensores do escândalo. Sei eu e sabem vocês que, particularmente nos pequenos municípios, onde existe um cacique de um lado e outro do outro (simplesmente porque há pouca gente para permitir mais opções) a agressão legal, por via da denúncia infundada e da calúnia é extremamente comum. A espada é a de Dâmocles, não é aquela empunhada pela dama vendada: pende por décadas sobre a cabeça do indigitado que, muitas vezes, apenas ousou divergir do chefe de ocasião. Culpados e inocentes estão misturados nesta lista suja: e, só para lembrar, Roma, que exigia reputação impoluta para a mulher de César, admitiu Messalina. Ou seja, política é uma questão de poder – e, por via de conseqüência, deve faltar muita gente nesta lista.

Ora, a Justiça não funciona, dizem vocês. É verdade, e o Estado brasileiro – União, Estados e Municípios – se beneficiam diretamente disso. Tente receber de volta imposto retido indevidamente, ou as diferenças que a União confessou dever, na Previdência. São anos a fio. E disso não foge nenhuma das Justiças ditas “rápidas”: os processos nos juizados especiais duram, em média, cinco anos.

Ora, nós cumprimos a lei, dizem os juízes e procuradores públicos. Essa atitude, cômoda e liberal – “a culpa é dos outros” – está equivocada e ultrapassada. “Cumprir a lei” é, antes de tudo, dar-lhe eficiência; eficiência que o Judiciário não tem, e para a qual a lista suja é apenas um atestado de paralisia, modorra e indiferença para com os inocentes.

Porque o importante, mesmo, não é o culpado, é o inocente: é este que esteve nos porões da ditadura, é este que está nas celas imundas, é este que é apontado a dedo, é este que sofre a execração da opinião pública, o que mais paga pela hipocrisia. Paga com pedaços de vida – e este é um preço alto demais por uma lista.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Mortandade natalina

A história de um dos mortos na hora de nascer na Santa Casa de Belém:

Há cinco anos, Célia (vamos chamá-la assim, está bem?) teve um bebê, e, em seguida, eclâmpsia. Parece mentira que uma mulher ainda possa ter eclâmpsia numa cidade de 1,4 milhão de habitantes, e depois de ter feito o que se chamou de pré-natal. Pois Célia teve, seguida de cegueira temporária. Ela só foi ver o rosto da filha dois meses depois do parto.

Os médicos disseram para Célia: você não pode mais ter filhos!

É, foi isso mesmo. Célia, por conta da eclâmpsia, não podia mais ter filhos, e tomou seus cuidados. Um descuido, e, neste ano, Célia engravidou.

Teve medo. Foi ao médico, ouviu advertências e, desta vez, fez dieta. Aos seis meses de gravidez, estava num aniversário com o marido quando sentiu dor. Ambos acharam que era um probleminha, porque estava tudo em ordem. Mas Célia ficou na Santa Casa, foi direto para a sala de parto. Diagnóstico: descolamento da placenta – e o feto já estava morto quando foi feita a cirurgia.

A mãe de Célia me disse que encarou tudo com um pouco de alívio, porque Célia, afinal, está viva e os médicos disseram para ela que ela não podia ter mais filhos...

São dois pré-natais, na mesma pessoa, ambos com mau desfecho. A culpa é da Célia? O que a Célia sabe de gravidez e parto? O que lhe informaram? Ela comenta agora: bem que o médico disse... e se resigna ao que considera uma fatalidade.

Houve um escândalo em torno da UTI neo-natal da Santa Casa, a direção do hospital foi dispensada – e daí? A UTI neo-natal é só o final da linha tracejada – porque cheia de interrupções e desvios – de um sistema que poderia ser bom e é capenga, por muitas razões.

A primeira, a maior de todas, a fundamental é salário.

É escandaloso um médico ganhar menos que um motorista de ônibus ou – para ficar na mesma fonte pagadora – que um investigador de polícia ou um cabo da polícia militar. Dezenas de médicos já me disseram que trabalham em hospitais públicos “para resgatar o diploma”, porque estudaram em escolas públicas. É a única forma de aguentar o baixo salário, vestir com alguma nobreza o trabalho. Além disso, é preciso sobreviver, manter a família e crescer profissionalmente. Daí, algumas horas por dia resgatam o diploma e deixam a consciência em paz; o resto do tempo, é trabalhar por si e pelos seus.

Então, nos quinze minutos de consulta dedicados à Célia, basta dizer para ela que não pode ter mais filhos. Acabou o tempo, a Célia que se vire. De mais a mais, no sistema de medicina de massa é pouco provável que esse médico vá ver a Célia de novo; assim, a sorte estava lançada para o quase-bebê de Célia muito antes que ele chegasse na Santa Casa.

A segunda, também fundamental, é o governo federal achar que dinheiro resolve tudo. O Ministério da Saúde comporta-se como fundo financeiro, e não passa disso. Agora mesmo, anunciou o que rotula de investimentos para resolver a crise. Mais UTIs neo-natais – e isso, sem um governo, de fato, das condições de prestação de serviço, equivale apenas a desconcentrar a mortandade natalina. Não há intensivistas pediátricos suficientes, porque não há salário, e como não há salário, os médicos recém-formados não vão fazer residência nisso, porque não são heróis nem missionários, são apenas trabalhadores iguais a qualquer outro. Um especialista não brota do chão, nem é feito por mágica. Então, novas UTIs não vão resolver. Um governo da saúde verificaria se há condições de manter funcionando essas UTIs antes de autorizá-las, o que, aliás, qualquer pessoa de bom-senso faria. Mas é demasiado cobrar bom-senso do Ministério da Saúde, que dança ao som do zumbido do aedes há quase dez anos...

Um terceiro fator é a massificação da medicina, que obriga o paciente a ser impaciente e a se defender como puder – mas isso é assunto para outra crônica.

Salário, desgoverno e cultura de massa são uma combinação perversa que atinge em cheio os mais frágeis – a parturiente e seu filho, entre outros. Atinge no pré-natal, atinge na hora do parto e atinge no pós-parto. Trezentos mortos em seis meses não são de espantar – o espanto é que sejam contados, o que geralmente não se faz na ilusória base das estatística de saúde no Brasil.

Espanto maior ainda é anunciarem-se investimentos para resolver uma crise de serviços, e comportarem-se as autoridades como se uma simples promessa espantasse os trezentos fantasmas que rondam a Santa Casa de Belém, e como se elas não conhecessem, tão bem como qualquer técnico de saúde, a razão da crise.

Pobre Célia, que não entende nada disso, e, há duas semanas, sepultou com seu quase-bebê todas as esperanças da filha em ter um irmãozinho... Porque agora, mãe e marido, apavorados, estão juntando economias para Célia ligar as trompas – no médico particular.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Dantas, Nahas e nós

Nada contra um sujeito que sai do nada para ser milionário, construindo sua fortuna na regra da lei.


Nada conta um sujeito que manobra finanças como o Lars Grael manobra o seu barco – se ele está na regra da lei.


Mas é vexante que o cidadão de classe média pague, depois dos abatimentos, 24% de imposto de renda cobrado sobre o salário – que é remuneração de trabalho, e não ganho adicional, e Dantas e Nahas não paguem nem um décimo disso. Não pagam. Dez para o Silvio Santos, o maior contribuinte individual do imposto de renda no Brasil. Silvio não discute. Paga. Chegou à conclusão que é melhor para ele e para todos. É tão milionário como Dantas. E Silvio é argentino...


Eike Batista é financista como Nahas, e mais rico que este. E também paga. Seu primeiro bilhão teve mais 24%, correspondente à gorda fatia do Tesouro. Pode-se dizer que Eike é um filhote dos tempos da ditadura, em que os grandes negócios eram fechados às escuras. Há dezenas de filhos d’algo iguais a ele por aí – mas só ele conseguiu ser bilionário. E pagando imposto, normal, igual a nós.


Dantas e Nahas cospem na nossa cara. Dantas embarcou na canoa petista desde o início; era o homem que “resolvia as coisas”, fazia aparecer o dinheiro eleitoral. A corrupção de Nahas vem de mais longe, é fruto direto da inflação descontrolada, quando as pessoas convertiam cruzeiros e cruzados em dólar para tentar manter o valor do seu dinheiro. Nahas arranjava os dólares, no mercado negro que todos toleravam porque todos usavam, inclusive as autoridades. De onde vinham? De vez em quando um brasileiro se encrencava nos EUA com os dólares do Nahas... Mas dentro do Brasil eles resolviam, e ponto. Ele é, portanto, um desses seres cinzentos, que servem de ponte entre o legal e o ilegal, no gueto entre a lei e a realidade. Muito houve como ele, que, estabilizada a economia, pegaram seus ganhos e abriram financeiras, empresas de turismo, capitalizaram as relações que haviam construído com os dólares em negócios legais. Nahas manteve-se à margem, e, agora, a tolerância acabou para ele.


Dantas e Nahas são produtos da violenta distorção provocada pela concentração de renda no país, pela discrepância entre as leis e os costumes, pelo cipoal burocrático que envolve os processos judiciais, que evita soluções simples e diretas, e exige quatro, cinco anos, de investigação para que se consiga blindar como prova o que todo mundo sabe há muito tempo. Sua atuação reforça as distorções e discrepâncias. Beneficiam-se do cipoal, e, cada vez mais ricos, nos vêem como uns fracassados, só porque não colocamos o dinheiro como o foco principal de nossas vidas.


Mas Dantas e Nahas são também aquelas pessoas cujo dinheiro move a máquina do crime – e não estou falando de crime de colarinho branco, sofisticado e de computador. Estou falando é do garoto executado pela polícia no Rio de Janeiro, dos rapazes mortos pelo tráfico. Pois afinal, de onde vêm os dólares do mercado negro, a praia de Nahas onde desagua o banco de Dantas? Esses dólares são ondas criminosas que vão e vem, deixando os lucros na praia. Eles vêm da arma clandestina, do crack, dos assassinatos de encomenda, do preço, enfim, da violência, que leva boa parte dos 24% que descontamos de nossos salários. Seus piores crimes não são os elencados no processo: são a geração de mais violência, de mais tráfico, de mais crimes.


E nós – nós, pagamos.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

A falência da escola

Belém foi abalada por um assassinato em sala de aula, envolvendo duas jovens. Não é fato único, nem incomum no mundo – basta lembrar algumas chacinas nos Estados Unidos, e homicídios semelhantes em outros países, mais ou menos desenvolvidos que o Brasil.

A reação das autoridades escolares tem sido chamar a polícia. Belém não fugiu à regra que tem precedentes no Rio de Janeiro e em outras capitais. Mas a polícia não pode substituir, nem esconder um fato terrível, cada vez mais claramente exposto: a total perda da autoridade escolar, a perda das rédeas disciplinares por parte do magistério.

Um ex-reitor me disse uma vez que o professor, hoje, trabalha acuado, principalmente nas classes de adolescentes e de jovens adultos. Revistas policiais são feitas dentro das escolas; e as próprias Universidades, que eram tão ciosas de sua capacidade auto-disciplinadora, hoje recorrem à polícia para resolver seus problemas com alunos.

Eu não tenho receitas nem soluções para esta situação; estou apenas constatando um fato. Muitos estudos já foram feitos para saber das causas, e algumas iniciativas têm sido tomadas para encontrar uma solução. Mas a violência varre as escolas, em graus cada vez maiores, como curto-circuitos contínuos. E esta figura, a do curto-circuito, é correta, porque as faíscas estão em todos os lugares, com diversas e variadas causas, dando a entender que é a inserção da escola na sociedade que hoje se faz de forma inadequada e deficiente. O plugue entra na tomada, mas com voltagem errada.

As escolas são depredadas com frequência; mas ninguém depreda o que lhe é útil, o que lhe serve; ninguém quebra o que ama, exceto alguns tipos de doentes mentais, e não são doentes mentais os que depredam as escolas.

Qualquer professor pode testemunhar – qualquer um, mesmo, em qualquer lugar – sobre ameaças de morte e agressões, atingindo professores, alunos, funcionários administrativos, diretores, todos os membros da comunidade escolar. Policiais militares podem contar o quanto são chamados para intervir nos ferozes choques de turmas, tribos e gangues – no pátio do recreio. Ou seja: o ambiente escolar tornou-se hostil, inóspito. Para qualquer um e para todos. O que quer dizer que o modelo passou do tempo. A escola, hierarquizada e vertical, formatadora de pessoas, está desajustada com a sociedade.

No modelo atual, milhões de jovens são impelidos para a escola em busca de um diploma. E é nisso que a escola – a maioria das Universidades, também – se transformou: numa máquina de fornecer certificados e diplomas. Pouco importa o grau de ajustamento do jovem à máquina: ele deverá passar por ela de alguma forma, e de alguma forma sair formatado. Máquinas não pensam, agem. São lubrificadas pelos cálculos econômicos, pelas relações de modelo produtivo. Dia destes vi uma relação destas numa Universidade pública: a pouca demanda para determinado curso fazia com que o custo/aluno estivesse muito acima da média. Solução: fechar o curso e aumentar as vagas de maior demanda. Não se considerava sequer a necessidade estratégica, ou o fato de ser o curso basilar para o conhecimento. Levou-se em conta somente o mercado.

A máquina escolar transformou os professores em peças, e os está desumanizando rapidamente. A presença de um professor do fundamental maior diante da turma adolescente é só de passagem. Ele esquecerá rapidamente aqueles rostos, enquanto os donos dos rostos tentarão se livrar dele o mais rápido que possam. Nessa passagem pela turma, trava-se um duelo. E todo o cuidado é pouco para que o duelo seja apenas intelectual. Volta e meia, desborda: o professor tenta ser mais rigoroso e esbarra na própria máquina. Como o que interessa é a quantidade do produto-padrão, os alunos reagem à alteração da regra do jogo e contam, para isso, com o apoio do sistema escolar. O professor tem que recuar rapidamente, para escapar de agressões e ameaças.

É preciso recriar a escola, transformar o modelo clássico para que o plugue se ligue na tomada. Para isso, há necessidade de uma vontade política, que a maior parte dos envolvidos, infelizmente, não tempo, e de competência arejada, isto é: gente que saiba imaginar, criar e sonhar. Sem modelos prévios.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Tempo de cruzada

Lula compra mais dois aviões e decide que tem a solução para os problemas do mundo. Sua equipe aproveita: desenha a cruzada do etanol, para consumo interno, naturalmente, que lá fora os senhores do mundo se limitam a recebê-lo educadamente, de olho no quintal que mais rende dinheiro para quem já tem, e marcar a próxima conferência.

Celso Amorim reforça a cruzada marqueteira, afirmando que ninguém pode ensinar o Lula a combater a fome. Tem razão duas vezes: primeiro, porque ninguém pode ensinar nada ao Lula, visto que o aprendizado é uma decisão do aluno. Segundo, porque Lula soube como ninguém matar a própria fome de poder – e, pelo que se diz, sua família está em condições de passar a caviar até à quinta geração.

Isto é a mão direita, e Lula é religioso: como diz a Bíblia que a mão direita não deve saber o que faz a esquerda, a outra mão de Lula desenha uma Previdência literalmente nivelada por baixo, pelo mínimo, e acena generosamente para os bancos e seus planos. Estes, gratíssimos, dão nota 10 para o Brasil: no mundo inteiro, em todo o mundo, nenhum banco ganha tanto dinheiro e tem tanta folga de controle. Afinal de contas, quando um banco brasileiro está prestes a falir, o banco central paga, o dono vai para a Europa e some, ou então fica desfilando por aí, respondendo a processos intermináveis até que morra ou passe da idade de ser preso.

Os xeques árabes devem babar de inveja: o Corão proíbe juros, ou melhor, proíbe a manipulação do dinheiro. Eles têm que usar artifícios para ter rendimentos de capital, ou jogar o dinheiro nas bolsas infiéis. Recentemente, num desses emirados, o xeque foi despachado para casa, devidamente desafortunado, porque cometeu crimes semelhantes aos do Delúbio e do Zé Dirceu. E ele era um dos donos do dinheiro...

Mas os xeques salgam os preços do petróleo, enquanto montam usinas de dessalinização da água e previnem o futuro. Os Estados Unidos já iniciaram as pesquisas da qualidade da água, prevendo que usarão brevemente suas reservas. O leviano Brasil não se importa: a maior bacia hidrográfica do planeta está sendo contaminada de forma atroz, e ninguém nem toma conhecimento. Literalmente: não há qualquer pesquisa a respeito.

E toma cruzada marqueteira repetindo o Grande Brasil da ditadura, que repete a França Profunda francesa, que repete o New Deal americano, que repete o Império onde o sol nunca se põe, da Inglaterra, que repete um livrinho amaldiçoado, mas seguido à risca, desde que foi escrito: o Príncipe.

Pois que deve o príncipe buscar motivos externos quando a situação interna piora, fazer uma guerra para se desviar das crises intestinas, montar uma cruzada se o governo estiver difícil. Mesmo que seja a cruzada das crianças para libertar Jerusalém, ou a do etanol para salvar o mundo.


quarta-feira, 7 de maio de 2008

Pasmem!

A alma se renova quando a gente se depara com um escritor como Ohan Pamuk. Foi preciso que ele recebesse o Nobel, em 2006, para que traduzissem seus livros e a gente o descobrisse, dois anos depois. “Meu nome em vermelho” é um arabesco: “...essas formas em conjunto, (que) constituem um padrão infinto que se estende para além do mundo visível e material”. É pura arte islâmica, com as técnicas do século XX, o que nos torna mais compreensível o que diz. Ao mesmo tempo, é a arte atemporal da literatura, a arte universal das letras:

“... o tremor nervoso dos caracteres traçados com cólera por minha amada, a progressão das curvas que, da direita para a esquerda, se contorcem e se ligam para melhor urdir seus enganos.”

“É o mais longe a que se pode chegar na pintura, é ver o que aparece na própria escuridão de Alá”.

“... o homem, qualquer que seja o seu amor, sempre acaba esquecendo um rosto que fica muito tempo sem ver.”

“Ao tentar pintar o cavalo perfeito (o pintor) revela seu amor à riqueza deste mundo e a seu criador, utilizando as cores da paixão pela vida. Somente isso e nada mais.”

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Mas Pamuk se torna um oásis secreto, quando a gente entra no Banco do Brasil. Agora, uma máquina distribui as senhas: você é classificado pelo saldo médio. Baixa renda: suba escadas e entre na fila. Aos poucos, que o espaço é pequeno. Dois atendentes, que você tem mais é que esperar. Alta renda: quatro atendentes, conforto e rapidez. Pior: na senha do baixa-renda está escrito: “atendimento preferencial”...

E mais distante fica ainda este oásis quando você assiste um júri absolver o mandante de um assassinato, que obviamente fez um acordo com o pistoleiro para se safar da condenação. Onde colocar a revolta? Em baixo do tapete, principalmente agora que uma medida provisória legaliza praticamente toda a grilagem de terras na Região Norte, aumentando para 1.500 hectares a legalização de posses ocupadas. Sojeiros, sudanzeiros, madeireiros, festejai! E os demais, que pasmem!

terça-feira, 29 de abril de 2008

República sindical

Uma vez nós tivemos um imperador que perdeu o trono por ter libertado os escravos.

Ele poderia ter usado a máquina do Estado à sua discrição. O regime assim o permitia.

Mas seu governo foi austero e sua discrição pessoal se tornou lendária.

Ele enfrentou guerras na fronteira sul, mas a inflação ficou sob controle.

Depois dele, não quisemos mais imperadores. Criou-se a república militar, e, depois dessa, criaram-se mais três, apenas uma delas totalmente civil.

A quinta república, lançada por Tancredo Neves e inaugurada por José Sarney corre o risco de terminar agora, ainda viva a geração que lutou por ela, e dar lugar à sexta, a República Sindical.

Nos sindicatos, os dirigentes apóiam-se na inércia da maioria e podem eternizar-se mediante o simples expediente de manter as pessoas em casa mediante a distribuição de vantagens – bons negócios, no caso de empresários, aumentos anuais, no caso de empregados.

Assembléias ditas gerais, em sindicatos de milhares de associados, reúnem cem ou duzentas pessoas. Geralmente belicosas, geralmente agressivas, geralmente corruptas.

A história dos sindicatos é uma história de corrupção. Alguns filmes tratam do assunto (o mais recente, “A Invasão dos Bárbaros”, é canadense) e muitos trabalhos acadêmicos, convenientemente “esquecidos” pela maioria, também.

Sindicatos, no Brasil, têm seus recursos desviados para campanhas eleitorais – e foi por isso que empregados e empregadores se uniram para impedir que prestem contas do dinheiro que recebem. Lula disse que é a defesa da autonomia sindical. Mas prestar contas não quebra autonomia de ninguém: quebra a corrupção.

Dirigentes sindicais se apóiam no populismo. No irresponsável populismo que tornou o emprego extremamente difícil, graças à enorme burocracia pendurada nele: Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho, Ministério da Previdência, Sistema S, e mais de mil sindicatos. Para manter cem empregos abertos, um desses terá que ser dedicado exclusivamente à papelada do emprego.

E eis que, agora, o modelo chega ao Planalto: vamos para o terceiro mandato?

Lula repete Floriano e Getúlio: “o povo me quer”.

Ele vendeu a alma da mãe ao diabo para chegar à Presidência: fez o acordo com os banqueiros, do jeitinho mesmo que eles queriam: eles financiaram a campanha dele, por via dos sindicatos. Agora, vai vender a própria alma a Satanás, para manter-se nela. Está rompendo todos os limites da dignidade, da ética, da consciência política, da coerência pessoal. Está sendo mais um caudilho, figura que se pensava tivesse o Brasil excluído de sua vida política.

A corrupção grassa solta, os meios e modos mais sórdidos para eternizar-se no poder são usados de maneira escancarada. A autorização de roubar é dada pelo próprio presidente: condena-se o governador do Ceará por ter levado a sogra para a Europa, mas Lula levou antes o filho para o Chile e para Antártida. De fato, não há proibição expressa em lei nenhuma, como alega o governador. Mas é preciso?

O país inteiro sabe dos meios escusos da camarilha presidencial. E é isso, mais que tudo, o que enfraquece as ações de segurança pública. Mas, afinal, quem se importa? Da mesma maneira como ninguém se importa com o que acontece com o dinheiro do imposto sindical. Porque não houve um só protesto quando Lula impediu que os sindicatos prestassem contas do dinheiro que recebem.

Se ficarmos quietos, teremos que chamar Lula de Pai dos Pobres, como a Perón, ou Pai da Pátria como a Stálin. Ou talvez tenhamos uma caricatura de imperador: o que não quisemos há mais de século, agora feito no Paraguai. Ou na China.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Efeito bolsa

Nos dados divulgados pelo Banco Central, na oportunidade do aumento da taxa básica de juros – festejada, aliás, pelos maiores beneficiários do desgoverno brasileiro, os bancos – há uma informação que, embora apenas parcial, traz maus prenúncios: a defasagem entre o crescimento do consumo e o crescimento da produção, na ordem de três pontos percentuais negativos para a produção.

Digo que a informação é parcial porque o número divulgado é relativo: não se disse sobre que valores absolutos incidem os oito por cento do aumento do consumo, ou os cinco por cento do aumento da produção. (É como aquela história de que a economia que mais cresce no país é a do Pará: 1% de crescimento da economia paulista é duas vezes mais que 100% de crescimento da economia paraense). A diferença, nos números absolutos, parece ser grande, ou não se justificaria a tentativa de freio no consumo.

Ainda bem que o efeito da distribuição de dinheiro, sem compromisso de produção, feita pelo governo Lula, começou no mandato do próprio. Mais alguns meses, e os demagogos de plantão vão ver o povo sentir que a “distribuição de renda através das bolsas”, como gosta de dizer a propaganda oficial, é um engodo. A pressão de consumo sem produto novo anula o dinheiro doado, simplesmente porque os preços sobem. E não adianta aumentar os juros – a chuva de bolsas atira no mercado, todos os meses, uma demanda regida pela lei mais básica da economia: a da oferta e da procura. O preço sobe, com ou sem taxa de juros.

Lula recebeu o país organizado e cultivado, depois de oito anos de trabalho duro e austero. Na ânsia de colher os frutos, pisoteou a plantação, encheu a lavoura com os gafanhotos da corrupção e a praga da demagogia. Essa ânsia, somada ao seu despreparo, vai levá-lo mais longe, e não tenho receio algum que o que vou escrever não vá acontecer: ele acaba de declarar, enfático como em todas as vezes que fala bobagens fora do país, que não dá teco nem piteco no controle econômico. Vai se desdizer logo, logo, quando a alta do custo de vida reduzir-lhe a popularidade a níveis alarmantes - porque a única coisa que altera, no Brasil, a apreciação positiva de qualquer governante é a carestia de vida, a alta de preços. Ele poderá até tentar – como fizeram e fazem seus pares, governantes sem solução e, portanto, sem saída – jogar a população contra o empresariado. Poderá tentar tabelamento, racionamento, tudo o que já se experimentou contra a inflação. Nada disso resolverá, porque a raiz do problema está no cerne da sua política social. Dinheiro a fundo perdido para você gastar como quiser – sem nem querer saber de onde vem o feijão ou o radinho de pilha.

E este é só o primeiro efeito dessa política. O segundo virá logo, logo: a pressão pelo aumento do valor das bolsas, vinculadas ao salário mínimo, visto que parte do poder aquisitivo está comprometido. O terceiro é o aumento da carga fiscal, para sustentar o poço sem fundo. É a seqüência do kit sem-vergonhice que circula na internet...

O “partido que sabe governar” – cujos governos, aliás, registraram as mais altas taxas de inflação da História do Brasil – está nervoso. O poder vermelho está raivoso. A trombada com a realidade é dura: dinheiro fácil, diz o ditado, facilmente acaba.

Nossa sorte é que o Brasil é mais vigoroso que qualquer governo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Pronto, chefia!

Ocupante de geral não fala “chefe”, fala “chefia”. E o “pronto”, herdado do serviço militar ou imitado do mais próximo militar conhecido, quer dizer boa vontade.

Depois do liquidificador, essa expressão é a que mais simboliza, para mim, os tempos que vivemos. Porque o liquidificador? porque é doméstico e transforma tudo, absolutamente tudo, num caldo? gororoba? vitamina? suco? homogêneo. Igual ao processo de globalização: casas iguais, roupas iguais, na África ou no Japão, na Dinamarca ou no Paquistão, no Brasil ou no Butão. O que sobra é exótico folclore.

O “pronto, chefia!” já é o indivíduo nessa história. O poder de fogo do mundo globalizado exige: pronto! Então acorde cedo, corra, nade, pule, vá malhar: pronto! Então coma alho cru e tome suco de couve de manhã cedo: pronto! Faça plástica, compre celular, um forno de microondas mesmo sem luz elétrica: pronto, chefia, pronto! E por aí afora. “Não balance o barco”, antevia Arthur Clarke há quatro décadas, como o lema principal da civilização globalizada.

Pouco a pouco, as decisões vêm prontas e empacotadas. Vejo-me de repente na saída de um colégio, cercada de adolescentes: todos trazem mochilas nas costas, tênis nos pés, cabelos displicentes e celulares nas mãos. A camisa do uniforme é mero detalhe: já são iguais antes mesmo de vesti-la.

A lista de despesas é igual em todas as casas – o que varia é ter ou não o dinheiro para atendê-las: residência (aluguel, imposto ou manutenção), luz, água, telefone, supermercado, plano de saúde, dentista, salão de beleza, prestação das outras coisas (dentro ou fora da fatura do cartão de crédito). A brecha para escapar do conjunto é mínima. Às vezes, nem existe.

A tevê irradia ordens: não deixe a água empoçar, compre motocicleta, pague sua última morada enquanto está vivo, não perca o show de amanhã, tome injeção e coma abacate.

Pronto, chefia!

Fiquei impressionada com um programa de tevê norte-americano que trata de livros. Uma simples citação no programa vale mais de três milhões de exemplares vendidos. Impossível não pensar no pior.

Huxley, em 1932, quando descreveu o seu admirável mundo novo deu também a receita para escapar: deixem alguns cérebros de fora desse barco. Ou viraremos colônias de formigas, com enorme capacidade de resistência e sem futuro algum.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Páscoa

Há quarenta anos, quando comecei no jornalismo, a cidade era tão religiosa que devíamos publicar o Evangelho da Paixão no jornal. Quase toda a edição era dedicada às solenidades. Por outro lado, não havia muito mais notícias para publicar naqueles dias. Belém tinha entre duzentos mil e trezentos mil habitantes, então. O poder católico era formidável. Gente não-católica, havia; que me lembre, judeus, protestantes, espíritas e maçons. Discretíssimos – a paixão religiosa era muito forte, e também aqui havia excitadíssimos personagens tentando erradicar o pecado do mundo. Todo mundo se fechava em casa, ou participava de procissões e missas. De opção, o cinema exibindo a Paixão de Cristo (o filme mudo, no Poeira) ou os Dez Mandamentos.

Meu tempo de jornalismo diário alcançou mais de vinte anos. Devo ter escrito milhares de linhas sobre a Páscoa, a Semana Santa, e, sobretudo, o que o povo faz nesse período, porque essa é a notícia. Por isso, sou sempre curiosa em saber o que faz a cidade, o povo da cidade, nesse período.

Bem, ontem, quinta, rolou quantidade de festas. O bar da quadra onde moro martelou música até à madrugada. Teve o bom-senso de silenciar o cantor desafinado às oito da noite, por meia hora, quando passou a cantoria estridente e arrastada da procissão da paróquia. Gente na rua, aos montes: uma véspera de feriado qualquer. Hoje, sexta, vizinhos montaram uma roda de canto coletivo à base de Ney Matogrosso no karaokê da tevê. Pelo menos é sem alto-falante.

Montanhas de chocolate, que parece hoje resumir a Páscoa. Pergunto para uma pessoa jovem se celebra a Páscoa. Ela me diz que não. Insisto: é importante? Responde, pressentindo uma armadilha: N-n-ã-ã-o... Então eu digo que o feriado deveria ser cancelado, porque sua razão de ser é religiosa; se não há religião, não há porque ter feriado. A reação é arrasadora: ora, mas o feriado é o feriado, já é tradição, não tem porque acabar com ela, nada a ver se a gente não vai à igreja, se a gente não curte a religião! O ovo de chocolate já foi comido até à metade. Porque esperar até domingo?

De fato, não há necessidade de expectativa, porque não há celebração. A festa é do Judas. No sábado, e com aleluia apenas para justificar a data.

A cidade de dois milhões de habitantes cumpre as formalidades, mas a data se tornou apenas uma celebração de cristãos militantes – que, pelo visto, são minoria, hoje. Pelo tamanho do noticiário, cerca de 20% do total.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Alzheimer

Nos últimos meses, recebi vários textos sobre o mal de Alzheimer.

A demência é um terror ancestral e atávico. Ela ameaça mais que o indivíduo, ameaça a espécie, e o sofrimento que provoca em quem está próximo, atinge para além da superfície emocional e das ligações individuais mais profundas: chega aos medos elementares. Humanos que somos, nossa diferença com os demais animais é o cérebro, que nos garantiu ser espécie dominadora e até fazer com que nos consideremos nobres. A perda progressiva das capacidades geradas pelo cérebro nos atira cara a cara com o inumano. E isso dói.

O último texto que recebi fala em exercitar o cérebro, de todas as maneiras possíveis, quebrando rotinas e isso e aquilo, como prevenção. Eu não acredito muito em pesquisas isoladas; elas são fragmentos pequenos de conhecimento, pequenos demais até para serem interpretadas corretamente. São grãos de areia: o conjunto é poderoso, enfrenta o mar. Sozinhas, sucumbem de roldão. Mas o texto que li fez saltar uma pergunta, decorrente, creio, diretamente do fato de ter ouvido o discurso de Pedro Bial no BBB de anteontem: tevê provoca Alzheimer?

Ouvir aquela lenga-lenga depois de ler uma página de Calvin & Haroldo me fez pensar também em abismos de desigualdades. E em emergentes, daqueles que colocam “Ulisses” debaixo do braço e vão ver “Os 300 de Esparta”. Essa desigualdade às vezes é dramática: não saber pode ser fatal para indivíduos de uma espécie que depende de saber. Fatal na forma do Alzheimer, fatal nas perdas quotidianas e fatal nas perdas coletivas. A ignorância coletiva impede, às vezes, a sobrevivência até. E nesta época de plenárias, consultas às bases, assembléias e orçamentos participativos, fico pensando que condições um votante do BBB tem para aprovar ou condenar uma usina de fissão nuclear.

Eu não sou pessimista, e nem vejo um mundo perdido e pior. Pelo contrário: milhões de pessoas vivem melhor hoje do que antes, mesmo na linha da pobreza ou abaixo dela. Mas nesta civilização há buracos negros, à semelhança do que o Alzheimer faz com o cérebro, e esses buracos precisam ser reconhecidos, para que possam ser tratados.

É preciso lembrar, ainda, que a humanidade não seria tão bem sucedida se não tivesse a enorme capacidade de superação, e, de alguma maneira, conseguir evitar a demência. Uma civilização substitui outra, tem sido assim desde o início dos tempos. A questão é: chegou a nossa vez de sermos substituídos?

Assistir a tevê brasileira aumenta as probabilidades do Alzheimer individual? Induz o Alzheimer coletivo? Ou é apenas mais uma droga para sossegar as massas, como diriam alguns combativos companheiros que acabam de votar a favor da tevê pública e burocrática?

sábado, 1 de março de 2008

Sampa

Desculpem-me a ausência, os que deram por falta. Estive por uma semana em São Paulo, melhor dizendo, em Sampa.

Não é das cidades que eu amo, ou que escolheria para viver. Há seis anos não ia lá, tanto que gosto dela. Mas fui surpreendida: as quaresmeiras e os lírios deixados por Martha Suplicy estão floridos; os camelôs e out-doors retirados por José Serra não voltaram; e Kasseb está mantendo o lixo longe das ruas. Sampa está menos agressiva. E, em conseqüência, quem mora lá, também. As administrações não se destruíram, e o resultado é de se festejar.

O metrô dobrou de tamanho e a população fiscaliza o recolhimento do ICMS. A idéia é simples, como qualquer boa idéia: cupom fiscal com o CPF do consumidor impresso nela. Você apresenta as notas na Secretaria de Finanças e recebe parte do ICMS recolhido naquela compra. Sonegadores históricos estão sendo enquadrados - sem grito, sem cobrança judicial e sem multa. Setores inteiros da economia. A receita subiu e o poder dos fiscais diminuiu, chegando mais perto do limite que a lei lhes faculta.

Mas... pela primeira vez na vida pude passear na Sampa aonde já fui dezenas de vezes. Para concluir que essa cidade absolutamente não consegue se ajustar com o turista. Há muito o que ver, o que visitar, o que aprender e o que fazer. Uma dúzia de parques (o do Ipiranga não deve nada aos famosíssimos do primeiro mundo), dezenas de museus, centenas de opções de espetáculos e milhares de alternativas de lazer. Quinhentos anos da melhor arquitetura latina- e do pior trash, também, se alguém quiser se divertir com isso. Tudo isso, entretanto, está escondido numa desarticulação gigantesca como a cidade. Você sabe que tem, mas não sabe onde está, ou sabe onde está mas não sabe chegar lá – e não há quem lhe informe. Nada contra os paulistanos, agora mais sociáveis: eles também não sabem.

Na verdade, eles imaginam que o interesse de quem vai a Sampa é fazer compras ou fechar negócios. Eles não conseguem ver a cidade como um bom local para ser visitado, para alguns dias de experiências novas. Também porque se imagina que o turista só quer praia, sol, bebida e outras coisinhas semelhantes. O resultado é que o turista tem a sensação de que está sobrando. Faz suas compras, quando faz – shoppings existem em toda parte –, vê o que foi ver e cai fora. Não é para ele, aquilo lá.

É pena. Amsterdã badala suas tribos – e, no entanto, a variedade encontrável na estação da Liberdade é maior. Nova Iorque e Londres propagandeiam seus parques – Sampa está em pé de igualdade com elas. Tóquio alardeia compras – nada a dever, até porque o real é mais barato que o iene. A vida noturna é mais intensa que em Paris. A questão toda é que, sem ajuda, ninguém consegue se localizar nisso tudo. Vai ter que cair na excursão, que, geralmente, é estereotipada: São Paulo, dia livre.

Eu não passei a gostar de São Paulo depois desta viagem. Mas não pude me conter. Porque, com apenas um ajuste de rumo, Sampa pode ser um belo destino.

Procuro

Alguém que esteja satisfeito com a Telemar; com a Telefônica; ou qualquer companhia de telefonia móvel. Preciso recarregar minha esperança...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O urso e a tropa

Fico embasbacada com a declaração do Lula, dizendo que a premiação de “Tropa de Elite” ajuda a mostrar um novo Brasil lá fora.

(A palavra “embasbacada” não está aí por pedantismo. Ela expressa exatamente como me sinto. Ela deriva de “basbaque”, que significa tolo, ou, em português coloquial, otário, babaca, imbecil.)

Mais embasbacada fico quando leio que um instituto de pesquisa constatou que a popularidade de Lula nunca esteve tão boa como agora. Sinto que devo repassar conceitos e aprendizados. E vamos lá.

Estará o Brasil rasgando a fantasia e assumindo sua uma condição de país violento, corrupto e amoral? Mais: será essa a verdadeira condição brasileira, a ponto das pessoas se sentirem bem num país cujo melhor produto cinematográfico pretende retratar uma terra de justiceiros sem lei, e onde você não pode ir a lugar algum sem temer o próximo passo? Num país onde o crime se institucionalizou?

Ou estará o Brasil passando por uma transformação social tão profunda que foge ao alcance do participante dela entender o que se passa? Tão profunda que derruba até os dez mandamentos, e torna legítimo matar, roubar, prestar falso testemunho e assim por diante? Diante do que se passa hoje, a violência sistemática do MST, que tanto assustava o país há dez anos, virou marola de lancha.

Ou, ainda, estará o Brasil rendendo-se às quadrilhas de colarinho preto, branco, marrom ou verde? Mas a violência generalizada indica que dela participa uma porcentagem da população grande demais para ser chamada de minoria. O que me traz à memória um diálogo travado por Charles de Blois, duque da Borgonha, ao tentar reconquistar uma cidade que lhe jurara fidelidade e vassalagem, e que fora capturada pelos ingleses. Charles contava com uma revolta na cidade e foi com surpresa que recebeu a notícia de que os habitantes lutariam com os ingleses. “Mas, porque?” – perguntou ele. E a resposta: - “Eles estão enriquecendo com o comércio...”

Será isso? Eles estão enriquecendo, e por isso estão ao lado de Lula. E, indica o instituto de pesquisa, eram 46%, agora são 52%. Enriquecendo, de qualquer maneira e a qualquer custo: se eu não ganhar bastante, eu tomo, e se resistir, eu mato. Perdão: para muitos, não há condicional. Tomo e mando alguém matar, pronto. E enriqueço.

Muito semelhante às guerras de todos os tipos, em todos os tempos. Mas não estamos numa guerra, ou estamos? A quantidade de mortos diz que sim. Mas o Brasil, país cordial, ainda diz que não. “Tropa de Elite” diz que sim. É guerra, aquilo que se faz no filme. Com todo o seu cortejo de corrupção e barbárie. A recepção ao filme também aponta para um estado de guerra: popular na massa, repugnante para grupos intelectualizados de elite. E Lula vai para a Antártica, levando mulher, filho e papagaio, às nossas custas – e sua popularidade sobe, porque não? Ele mostra o caminho, é assim que se vive – eu gasto o dinheiro dos outros, porque eu posso, eu tenho a força. E se ele faz, porque não toda a multidão que precisa enriquecer?

(Bill Clinton, depois que saiu da Casa Branca, deu uma entrevista digna: ele disse que tivera um caso com a estagiária pela razão pior, apenas porque podia, e se envergonhava disso. Não creio que Lula jamais se envergonhe dos cartões corporativos ou das viagens familiares às custas dos impostos- afinal, “eles” estão enriquecendo, não?).

E se não for isso, for um país mudando de rumo, pronto para assumir o apelido de imperialista, que lhe deram bolivianos, paraguaios, peruanos, argentinos e demais americanos do Sul? Porque esta sede de entrar no Conselho de Segurança da ONU, na assembléia dos ricos, o grupo dos oito?

O urso e a tropa apontam para um rumo assim. Não é o que eu gostaria que fosse.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Por amor

A curiosidade de repórter me leva por caminhos diversos, e costumo me interessar por coisas inusitadas ou simplesmente diferentes – e às vezes por perguntas, ou coisas não completamente entendidas, que ficaram, antigos, na memória, e que hoje, com a rede, descubro que posso eliminá-las.

Assim é que um dia destes entrei no blog da Preta Gil. Eu queria saber o que ela iria dizer das fotos perversas exibindo suas celulites e estrias. Do conteúdo do que li, gostei – uma apaixonada defesa da individualidade, contra a estética oficial padrão. “Eu me amo assim como sou”, diz Preta Gil.

Mas eu gostaria muito que ela amasse a língua portuguesa do jeito com que se ama. Com a mesma paixão. O texto, de conteúdo ardente, fazia arder também a gramática, mesmo para os mais tolerantes. Mesmo que se considere – como eu considero, aliás – que a língua portuguesa passa por um acelerado processo de transformação, e que o “você” há muito tempo deveria estar oficialmente incluído entre os pronomes pessoais do caso reto, entre outras mudanças. E que, mais cedo ou mais tarde, “menos” vai concordar com o substantivo...

O que me pasma é a absoluta despreocupação em relação a fazer-se entender. Para que duas ou mais pessoas se entendam, é preciso haver regras e significados comuns. Escrever corretamente, ou com o mínimo de correção, é essencial para que as pessoas compreendam com clareza o que se quer dizer. Essa despreocupação não é só da Preta Gil, mas de milhares de outras pessoas também. Vendedores, inclusive, que deveriam realizar, por força do ofício, um esforço para se fazer entender bem.

Um bom exemplo disso está no Mercado Livre, onde a linguagem também é livre, desde que sem ofensas e palavrões. Leio um anúncio escrito assim: “queicha na cor begê”. Trata-se de uma estatueta de uma gueixa, vestida na cor bege. Penso que o sujeito talvez até saiba o que está vendendo, mas com certeza não vende, ou vende mal.

No Mercado, oferecem-se “bandeijas”, “tijelas” “mantequeiras”, “leiteras”, “lampeões” e “traveças”. Isto até dá para entender. Mas “ganço” (será um gancho ou um ganso?), sacarolla (era um sacarrolhas) e “galeteiro” (galheteiro) – fica mais difícil. E é quase impossível entender o que se quer dizer com “louça ágata” e “santo sacro”. No primeiro caso, o produto era uma peça de metal esmaltada, que é conhecida como ágata; no segundo, imagens barrocas em medalhões de prata – presumo que “santo sacro” seja o tipo da antiguidade. A displicência permite, também, coisas estranhas como esta: “balança de pesar bebê de farmácia”.

O que pretendo dizer com tudo o que escrevi acima é que o amor pela língua materna é também um amor por si mesmo. Comunicar-se é trafegar num terreno comum de conceitos e convenções, para que as pessoas possam entender o que se diz, e para que a gente possa entender o que as pessoas dizem. Na escrita, em que a entonação da voz e a expressão corporal são omitidas, é vital conhecer esse terreno, ou o amor próprio vai para o espaço – tanto para a Preta Gil como para os vendedores do mercado livre. Não há quem resista ao desentendimento.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cinzas

Cinco dias de chuva incessante no carnaval de Belém do Pará. Alguns teimosos foliões foram às ruas, em blocos desanimados, e outros, mais teimosos ainda, foram assistir ao desfile das escolas de samba e blocos, molhados até os ossos, fantasias e alegorias sob um denso cortinado de água.

Belém insiste com um carnaval impossível. Fevereiro chove e chove; e há mais chuva em março, mais as marés do equinócio. Tom Jobim talvez jamais se deu conta, mas Águas de Março se aplica a Belém como uma luva – parece ter sido composta aqui, nesta época. As torrentes caem de imensas pirâmides de nuvens, ou brotam do chão no refluxo do mar doce, diante do salgado. Belém faz seu mergulho anual e sai para uma atmosfera absolutamente limpa de resíduos, purificada, sob um sol de doer, e um céu que não consegue ser azul, de tanta luz.

Mas as autoridades insistem no formato carnavalesco “dos outros”. A maioria das pessoas, mais sensata, ganha o mundo: vai para as águas frias dos igarapés no interior; para as praias amareladas pelo Amazonas no Marajó; para as praias cheias de ressaca no litoral atlântico, para a animação dos “sujos” de Óbidos, Cametá ou Vigia; ou para qualquer outro lugar do Brasil. Construiu-se um sambódromo a céu aberto, o que é uma incoerência: neste ano, no primeiro dia do desfile oficial, menos de cem pessoas ocupavam o espaço dimensionado para milhares...

E o resultado é que a temporada de carnaval de Belém está reduzida a dois extremos: grandes grupos religiosos rezando e meditando, numa ponta; grandes grupos de bebedeiras mortais, numa outra. Entre um e outro extremo, algumas escolas de samba conseguem sobreviver, outra despertam somente para gastar a verba oficial e, com as cinzas, voltar à sua inexistência, e a maioria silenciosa fica em casa vendo tevê, num tédio quebrado apenas pelas ocorrências policiais.

Alguém me fala de resgatar o espírito dos blocos, da irreverência e das fantasias, circulando pela cidade. A natureza, entretanto, determina o preço, e ele é impossível de pagar. Melhor seria procurar outra receita, e esta tem que considerar a chuva, sem apelação. Ou seja: tudo tem que acontecer a céu coberto. Tem que ser original...

Eu gosto de carnaval, da alegria solta e sem freios. Mas cada vez mais esse período é apenas um feriadão em Belém – debaixo d’água, o que quer dizer feriadão de trabalho. Seja doméstico, seja profissional. Sem nada de diferente.

domingo, 27 de janeiro de 2008

A mordomia da meia-idade

O assunto que prometi na crônica passada, é exatamente esse. O problema é que há quem não saiba reconhecer a mordomia que vem espontânea, carinhosa, às vezes desastrada, às vezes eficiente. Homens e mulheres que recusam o assento no ônibus ou a precedência na fila; que insistem em ser os primeiros a saber das más notícias; que riem das preocupações dos chegados.

Uma das artes da meia-idade é aceitar cuidados. A questão é que esses cuidados não são exatamente aqueles que se gostaria de ter, e, às vezes, colocam-nos face a face com a velhice – coisa que ninguém gosta de encarar. Ou seja: quando alguém vê uma cabeça branca no topo de uma escada e, de puro susto, reclama porque não lhe foi pedido para trocar a lâmpada (exatamente aquele que sempre enrolou e acabou não fazendo esse servicinho), o cérebro sob os cabelos brancos geralmente se irrita. Primeiro, porque se considera inteiramente capaz de fazer um serviço que sempre fez; segundo, pela incoerência do reclamador. Terceiro, porque sabe perfeitamente que o reclamador tem razão. Mas, levando com jeito, nunca mais o cabeça branca vai trocar lâmpadas, o que é um trabalho de menos com a vantagem de ter o direito de reclamar.

Recusar cuidados não vai esticar a vida nem melhorar sua qualidade, salvo se a pessoa se largar num canto sem fazer nada. Pelo contrário: permite mais tempo para as tarefas mais prazerosas, que demoram mais, agora que a vista não é a mesma e as mãos têm menor agilidade. Então, o assento no ônibus, a precedência na fila e deixar que as pessoas o preparem para a má notícia significam simplesmente aceitar seu tempo e jogar com as regras da idade.

Uma mordomia freqüentemente recusada, principalmente pelas mulheres acostumadas à submissão, é o direito de escolher. A pergunta: o que você quer? - torna-se mais freqüente. Reflete uma certa tolerância dos mais jovens (eu vou viver mais, posso abrir mão desta escolha) mas também uma preocupação, por parte deles, em compensar as perdas evidentes e sofridas que vêm acontecendo (poxa, para quem gostava tanto de fazer isso!). Pois não se deve deixar de escolher, dar-se esta escolha, correr o risco dela e, tranqüilamente, curti-la. E descobrir a atenção que existe por trás da pergunta.

Há uma mordomia que muita gente de meia-idade não sabe usar. É a do presente. Ganha-se mais presentes, até porque o círculo familiar e de amigos geralmente cresceu (e cresce a cada ano) e porque, na nossa cultura, esquecer o presente do cabeça branca é uma incorreção grave. Mas é difícil escolher o presente dos mais velhos. Assim, saber usar essa mordomia (em vez de reclamar dos intermináveis sabonetes, camisolas, pijamas ou chinelos) é deixar escapar necessidades e gostos, tornar-se mais transparente, digamos. Discretamente, para não acontecer o que vi, uma vez, com uma pessoa de largo círculo que, cansado de presentes indevidos disse que queria ganhar orquídeas – e ganhou, meu Deus, uma feira inteira, dúzias e dúzias de orquídeas iguais. Essa transparência também situa as pessoas nas alterações de gostos – porque nossos gostos mudam com a idade, como todos sabem.

E há outra mordomia que também poucos sabem usar, até porque é preciso ter contenção no uso e saber da oportunidade certa. Trata-se de dizer que se está incomodado por alguma coisa – barulho demais, por exemplo. Neste capítulo, reclamar demais irrita os outros, e, de menos, deixa todos com sentimento de culpa. Mas essa reclamação é importante, porque define espaços e condutas. E a reclamação do cabeça branca todo mundo espera – e acaba respeitando.