Há quarenta anos, quando comecei no jornalismo, a cidade era tão religiosa que devíamos publicar o Evangelho da Paixão no jornal. Quase toda a edição era dedicada às solenidades. Por outro lado, não havia muito mais notícias para publicar naqueles dias. Belém tinha entre duzentos mil e trezentos mil habitantes, então. O poder católico era formidável. Gente não-católica, havia; que me lembre, judeus, protestantes, espíritas e maçons. Discretíssimos – a paixão religiosa era muito forte, e também aqui havia excitadíssimos personagens tentando erradicar o pecado do mundo. Todo mundo se fechava em casa, ou participava de procissões e missas. De opção, o cinema exibindo a Paixão de Cristo (o filme mudo, no Poeira) ou os Dez Mandamentos.
Meu tempo de jornalismo diário alcançou mais de vinte anos. Devo ter escrito milhares de linhas sobre a Páscoa, a Semana Santa, e, sobretudo, o que o povo faz nesse período, porque essa é a notícia. Por isso, sou sempre curiosa em saber o que faz a cidade, o povo da cidade, nesse período.
Bem, ontem, quinta, rolou quantidade de festas. O bar da quadra onde moro martelou música até à madrugada. Teve o bom-senso de silenciar o cantor desafinado às oito da noite, por meia hora, quando passou a cantoria estridente e arrastada da procissão da paróquia. Gente na rua, aos montes: uma véspera de feriado qualquer. Hoje, sexta, vizinhos montaram uma roda de canto coletivo à base de Ney Matogrosso no karaokê da tevê. Pelo menos é sem alto-falante.
Montanhas de chocolate, que parece hoje resumir a Páscoa. Pergunto para uma pessoa jovem se celebra a Páscoa. Ela me diz que não. Insisto: é importante? Responde, pressentindo uma armadilha: N-n-ã-ã-o... Então eu digo que o feriado deveria ser cancelado, porque sua razão de ser é religiosa; se não há religião, não há porque ter feriado. A reação é arrasadora: ora, mas o feriado é o feriado, já é tradição, não tem porque acabar com ela, nada a ver se a gente não vai à igreja, se a gente não curte a religião! O ovo de chocolate já foi comido até à metade. Porque esperar até domingo?
De fato, não há necessidade de expectativa, porque não há celebração. A festa é do Judas. No sábado, e com aleluia apenas para justificar a data.
A cidade de dois milhões de habitantes cumpre as formalidades, mas a data se tornou apenas uma celebração de cristãos militantes – que, pelo visto, são minoria, hoje. Pelo tamanho do noticiário, cerca de 20% do total.
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2 comentários:
Ana: quem bom te ler.
Descobri teu blog através do link do quaradouro.
Tu és uma referência jornalística, intelectual e política na minha vida.
Meu primeiro texto na Província, o desfile do Dia da Raça, 7 de setembro de 1970, aos 17 anos, foi copidescado por ti.
Belas escumbalhações recebi.
Que bom.
Com afeto.
Afonso Klautau
Afonso,
muito obrigada - e mande-me seu e-mail.
abraço, ana
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