quarta-feira, 15 de junho de 2011

As contas públicas

Numa passagem pela telinha, ouço o presidente da Transparência Brasil dizer que o Tribunal de Contas da União melhorou um pouco os controles, mas os tribunais de contas dos Estados e dos Municípios são inoperantes e a serviço de ex-governadores.

Eu não sei se o TCU “melhorou os controles” porque nunca antes, neste país, houve tanta corrupção. O que eu sei é que também nunca antes, neste país, houve tanta controlaria sobre a administração pública. Há, hoje, auditorias, ouvidorias, controladorias – mas controle, mesmo, neca. Tudo isso surfa nas montanhas de papel produzidas a partir de uma legislação que, desconfio, deve estar entre as mais burocráticas do mundo. Ir ao local, conferir o que foi feito do dinheiro – quem está fazendo isso é o jornalismo, global ou não. Sem consequências, naturalmente, porque não tem autoridade para tanto, e nem deve ter.

São toneladas de papel que arrimam as contas públicas – e, não sei quem disse com sabedoria, uma vez, acho que foi o Hélio Beltrão – quanto mais papel, mais corrupção. A infinita papelada cria desvãos e esconderijos, áreas de embarque e desembarque para todo tipo de golpe. Todos os tribunais de contas trabalham por amostragem, cujos critérios são, ora aleatórios, ora denuncistas. Simplesmente porque é humanamente impossível conferir toda a papelada – são alguns milhões de documentos a cada mês administrativo.

Produz-se papel para uma hipotética fiscalização – e a hipotética fiscalização é exigente com o papel. Falta uma assinatura: multa; publicou atrasado: multa; mas o buraco que não foi tapado, mas teve o serviço pago, passa tranquilo, tranquilo: a papelada está em ordem, ponto final.

Na base disso está um ordenamento legal que parece ter sido feito com a assessoria de Macunaíma: a sacrossanta, para os tribunais de contas, lei 8666/93, a lei de licitações. Ao contrário do que muitos alegam, eu não acho essa lei dura. Ela é falha, incompleta, não se ajusta para muito dos procedimentos administrativos públicos e, sobretudo, está ultrapassada. Foi necessário editar uma lei especial para informática e uma outra norma – que jamais foi discutida no Congresso Nacional, mas hoje tem força de lei em todo o país graças aos Tribunais de Contas – a Instrução Normativa 001, da Secretaria do Tesouro Nacional, com todos os seus remendos posteriores.

Eu não sei, porque ele não explicou, o que o presidente da Transparência Brasil considera “melhores controles”. O cipoal legislativo brasileiro semeia armadilhas em toda a administração pública: há atos que são regidos por diversas leis, um pedacinho em cada uma. E exige papel: há um dispositivo legal, por exemplo, que exige parecer jurídico para todo e qualquer ato administrativo que envolva recursos ou bens. Isto gerou um exército de bacharéis em Direito que não redigem contratos, não minutam convênios, não fazem audiências, não administram e não resolvem problemas: apenas dão pareceres. Como se trata de um parecer eles também não assumem responsabilidades: quem responde é quem assina o ato. E ai do administrador que não instruir o ato com um parecer! Tudo pode estar corretíssimo, mas faltou o papel, então...

Em toda a administração criou-se um número mágico: é o número três. Eu não sei porque duas propostas são piores que três: mas em todos os procedimentos licitatórios de pequeno valor há que ter três propostas, três cotações. Os múltiplos de três permeiam todas as instâncias: o limite máximo de contratos é de sessenta meses, o valor máximo de nota fiscal para compras com suprimentos de fundos é trezentos reais, são de trinta dias a maioria dos prazos de edital... Eu não sei se isto deriva de Brahma, Vishnu e Shiva ou do Pai, Filho e Espírito Santo. Mas o resultado não é nem um pouco espiritual: é papel, papel e papel engasgando todo e qualquer serviço público.

Eu sonho com o dia em que esta República vai deixar de ser cartorial, em que os controladores poderão ser encontrados nos canteiros de obras ou nas cozinhas das escolas, nos depósitos de medicamentos e nos almoxarifados de informática. O dia em que uma assinatura no verso de um empenho não será mais importante que uma obra feita e acabada. Em que a lei seja simples, clara e dura. Em que a experiência administrativa seja condição preliminar para a nomeação de um auditor. Em que transparência não seja uma simples página eletrônica ininteligível para o cidadão comum.

Aí, sim, os controles terão melhorado de fato.

2 comentários:

Edna Frazão disse...

Sua pontaria continua perfeita: acertou na mosca pousada no centro do alvo. Quem trabalha ou passa pelo serviço público sabe muito bem do que vc reclama com sabedoria.
Beijo grande

Anônimo disse...

Portal da transparência de verdade é o WikiLeaks. Seu fundador Julian Assange prega que "a transparência é a arma política de melhor relação custo benefício". E eu já acredito nisso porque o site não pede licença ou permissão para mostrar os bastidores da política dos governos de varios países . O que não dá para acreditar é num portal cujo endereço termina em ".gov.br", não deixando dúvida quanto a quem está bancando o serviço e tambem misturando as figuras do investigador e do investigado. A mistura de funções é, alias, um fator negativo para qualquer democracia, mas no Brasil isso parece ser intencional e desenhado para esconder no meio dos papeis a transparência que tanto se apregoa ser importante. A separação dos poderes, que deveria colocar todos no mesmo patamar de igualdade e autoriza um poder público a fiscalizar as ações do outro, fica embrulhada nas leis controversas e conflitantes patrocinadas pelo executivo com ou a partir do aval do Congresso Nacional e dos políticos rabudos que lá se escondem. Leis são criadas para conturbar o ambiente jurídico ou para aliviar a prisão de alguem pego com a boca na botija. Enquanto isso leis que serviriam para limpar o cenario jurídico ou para jogar luz em fatos obscuros, são renegadas e não aprovadas. Basta ver a discussão a respeito do que chamam "sigilo eterno". Veja quem esta a favor de mante-lo: Sarney, Color, ... etc. Por que será?
Eli