domingo, 8 de junho de 2014

Porque só agora?


O decreto 8.243 seria mais um entre muitos que a presidente assina diariamente se não fosse esquisito. Num resumo de três linhas, esse decreto cria uma estrutura federal de conselhos deliberativos e uma ouvidoria geral da União, destinadas a organizar e controlar políticas públicas, sob o pomposo título de Sistema Nacional de Participação Social.

O decreto é esquisito por várias razões. A primeira delas é a incoerência. Quando na oposição, uma das principais bandeiras da esquerda e, como o PT era de esquerda, desse partido também, era justamente a criação de conselhos deliberativos em todas as estruturas de Estado. Ao chegar ao poder, o PT não criou conselhos deliberativos, criou fóruns. A razão é muito simples: o conselho deliberativo tem poder de mando, determina onde e como deve ser gasto o dinheiro público. O que entra em conflito com tudo: a legislação, que, em muitos casos, é detalhista quanto aos gastos públicos; o poder legislativo, a quem compete a definição de gastos por meio do orçamento; e o próprio executivo, frequentemente travado por uma oposição caseira e intestina, nem sempre bem intencionada. O fórum é consultor. As pessoas opinam, mas a competência da decisão é preservada para quem de direito.

Agora, em fim de governo, Dilma resolve ressuscitar os conselhos deliberativos.

A segunda esquisitice vem da participação social. O uso desta expressão é estranha. Pois, afinal, a maior participação social, a essência democrática, o eixo onde repousam os valores de um país não autoritário é o voto universal. Ao votar, o eleitor delega ao escolhido – seja o executivo, seja o seu representante no parlamento – a tarefa de se informar, avaliar, aprovar ou desaprovar todas as propostas que envolvem o viver em sociedade. O eleitor não terá tempo de se debruçar sobre uma proposta de usina nuclear, por exemplo, e nem conhecimento técnico para aprová-la ou desaprová-la. Seu representante é pago para procurar opiniões, assessorias, informações, avaliar o benefício da energia gerada e o custo ambiental e, finalmente, tomar uma decisão. O país inteiro se envolveu na discussão em torno dos campos de petróleo do pré-sal. Milhares de pessoas deram opinião, usando o seguro canal do Congresso. Isso é participação social num país continental como o nosso; a decisão sobre o pré-sal foi tomada e executada com consciência democrática. Ademais, as pessoas realmente querem sair de seus cuidados para dar palpites na coisa pública? O vazio das audiências públicas, hoje obrigatórias para vários temas, particularmente o licenciamento ambiental; e as eleições para os conselhos tutelares mostram que não (aposto que a maioria das pessoas que estão lendo esta crônica nem sabe que existem eleições para a escolha de membros dos conselhos tutelares). O exercício político é a verdadeira participação social. Tentar reduzir esse exercício a um sistema é demonstrar um desconhecimento profundo do funcionamento da democracia. Ou coisa pior – negá-la.

Às vésperas de uma eleição, o que Dilma quer com isso? Acalmar setores de esquerda para viabilizar alianças ou esvaziar discursos, ou talvez garantir espaços no próximo governo que não seja seu?

A terceira esquisitice vem do instrumento legal utilizado. Um decreto. Parece até que voltamos ao tempo do decreto-lei, esta aberração da ditadura. Para fazer caber o tal sistema num decreto, ele foi restringido aos órgãos do governo federal. E, aí, ignorando solenemente as instâncias parlamentares, cria-se, paralelamente a cada órgão federal, conferências, conselhos, comissões, mesas de negociação e que tais – uma superestrutura formidável de despesas. Essa superestrutura já funciona em dois setores do governo: os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. Comissões, conferência nacional e audiências públicas. O resultado prático e objetivo? Toneladas de papel, milhões de horas de reunião e uma ou outra norma realmente importante no meio de muita enrolação. Porque há limites administrativos que não podem ser ultrapassados, e o principal deles é financeiro: qualquer um de nós, governantes inclusive, adoraria que o país estivesse interligado por ótimas estradas, portos, terminais, aeroportos, fibra ótica, navegação segura. Mas o paciente é grande e o lençol é curto. Não dá para todos de uma só vez.

Um decreto estabelecer participação social? Excluindo da discussão, de cara, a representação legítima da sociedade, que é o Congresso Nacional? Excluindo da discussão, de cara, aquilo que o próprio decreto define como sociedade civil: “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. (Aliás, uma outra esquisitice: a palavra “coletivos”, que há não muito tempo apelidava ônibus, e, agora, pelo visto, designa outra coisa que não sei o que é).

Há mais um bocado de esquisitices de conteúdo nesse decreto; mas não vou entrar nesse conteúdo, porque é assunto para juristas. Só volto a perguntar: porque agora? Porque só agora?
 
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Há uma petição para o Senado pedindo a aprovação de projeto do senador Álvaro Dias para que o Congresso declare nulo o decreto. Para assinar, o link é: http://www.citizengo.org.



4 comentários:

benedito Carvalho disse...

Pois é, Ana, o Brasil é cheio de esquisitice e não só essa da Dilma, a grande vilã do momento. Por que só agora o Aécio, "o menino maluquinho de Minas, resolveu que, se eleito, ressuscitaria a lei da maioridade penal, quando tu sabes, (porque escreveste muitos sobre crianças maltratadas) o as implicações de agora sociais que isso acarretaria. Por que as malversações (que são enormes) do PSDB são escondidas e proteladas? Por que FHC, na época em que foi presidente comprou parlamentares para sua reeleição? POr que vendeu vergonhosamente a Vale do Rio Doce, quando ela estava dando lucro? Por que a mídia diaboliza tanto o Lula como a Dilma? Existe tantos por quês na vida. Talvez o PT que você diz ser se ex-esquerda, tenha, como se diz "traído". Tudo agora que o PT faz é traição, uma "aberração da ditadura", como se a direita fosse uma santa. Direita, Ana é o que temos ainda nesse Brasil que deseja por todos os meios desbancar o PT, mais precisamente o chamado governo de coalizão, pois o PT não tem força para governar sozinho. Tem muitos por quês, Ana, mas prefiro a Dilma do que a volta do PSDB et caterva no poder. Quem ignorou solenemente as instância parlamentares - repito - foi teu companheiro de partido, o FHC que COMPROU A REELEIÇÃO, vendeu empresas como a Vale e, se ficasse mais, venderia tudo que pudesse. Isso porque, queria (?) a modernidade dos americanos. Por que? Na vida, mesmo quem aparece neutro, tem lado.Isso não tenho dúvida. O Jatene que o diga, não é Ana? Vamos às urnas, pois é lá que a sociedade civil vai optar pelo que quer. E assim caminha a humanidade, para o desgosto de muitos.

Jornalista disse...

É exatamente isso, Benddito: as urnas precisam ser respeitadas, e não só quando se manifestam do nosso lado. FHC governou quase 20 atrás; o PT não modificou nada do que ele fez, antes, ampliou as privatizações, e sabe porque? porque é a política correta nestes tempos. A Dilma e o Lula não são demonizados pela mídia e isso é possível de provar: as medições de clipping apontam um volume maior de comentários a favor do que contra. Ou você acha que o PMDB se alia com demônios condenados?
Meu companheiro - e com que orgulho digo isso! - FHC nunca envergonhou o Brasil com a incompetência corrupta que este governo está exibindo.
Desculpe, mas você veio com a mão pesada. Não dá para não retribuir.

Jornalista disse...

E esqueci uma coisa: quando falo em PT ex-esquerda, me baseio em fatos: é o PT que, aliado ao DEM, está tentando trazer de volta o Jáder Barbalho, via Hélder, para o governo do Pará. Esquisito, não? PT e DEM em torno do Jáder! Este diria que isso é que é democracia, conciliar divergências!

Anônimo disse...

Pois é, Benedito, eu concordo consigo.
Quem estragou o Brasil, não foi o Lula nem a Dilma, mas FHC.
Esse demônio do FHC é que é culpado, por exemplo, do trânsito horrível que enfrentamos hoje. E por que afirmo isso? Porque criou o tal Real, e agora todo o pobre tem motocicleta, carro, vans, infernizando a vida dos motoristas.
Outra coisa... se for ver, não sei se o sr. viaja, mas agora os vôos são tristes, cheios de gente sem educação. E por que? Por causa do tal do Real. De quem? Do FHC.
Até mesmo, como disse Danuza Leão, não tem graça mais ir para NY, porque todo o porteiro (acho que falou porteiro) agora pode ir para a Big Apple.
É triste. O pobre se endivida e faz e compra coisas desnecessárias, coitados...
Eu lembro que antes, por conta da dedicação de um médico comigo, trouxe de presente um celular dos USA, era presente caro, chique. Mas pro senhor ver, hoje, pobre nem fala direito o português, mas fala o inglês: Iphone, Ipad, Tablet, modem, mouse, explorer...e tem internet e celular! Vê se pode...?! Perdeu a graça ser bilíngue... E de quem é a culpa? FHC!

Eu sempre digo que FHC nunca deveria ter sido presidente do país porque ele não tem nada a ver com o Brasil, é fake. Ele tem cara de Sourbonne, fala francês e é sociológo. O Lula que é a cara do Brasil, fala mal o português e é 'curinthiano'. Um lê e escreve, o outro, bem o outro é cara do nosso índice de alfabetismo... Aliás, fizeram até um filme, com recurso público, para nos homenagear: "Lula, o filho do Brasil".
O senhor imagina o FHC protagonizando um filme com esse título e dinheiro público? Não, nada a ver com os brasileiros.
Outro ponto que é certo é esse negócio de genérico, que o tal do FHC e o chato do Serra fizeram, e o SUS. P´ra que, me diga?
O pobre gosta de marca, e a gente vê no celular, no carro, na moto e nas roupas - chinesas, mas de marca. E tanto que conheci uma moça cheia de filhos que me disse que teve o sexto para ganhar mais 30 reais da bolsa-do-Lula. Tá vendo!? Eles não pensam em remédios, cuidados; querem é os trinta reais para comprar o celular. E quem foi que criou a tal bolsa que a moça se referiu, a primeira, a bolsa-escola? O FHC!!! Não sei se o senhor lembra, porque o PT gosta de dizer que foi ele, mas não foi, foi o FHC; o PT só continuou... não, o PT mudou um pouquinho: retirou a obrigatoriedade da criança na escola... Não precisa mais estar na escola - e isso, sim, demonstra uma grande virtude do Lula, sua autenticidade: se ler é igual fazer esteira e dá preguiça (palavras dele), como obrigar o povo a ir à escola?
Melhor tentar ser jogador de futebol ou...presidente da república!!!
Só numa coisa o senhor se equivoca: dizer que FHC vendeu a Vale. Ele não vendeu a Vale, ele salvou a Vale.
Já imaginou como estaria essa empresa agora? A Petrobrás nos indica...