Cartas aos amigos
Belém, Pará, 23 de abril de 2020.
Queridos amigos e amigas,
Dois motivos me levam a quebrar o silêncio que me impus
desde quando os pequenos cronistas saíram de moda e eu com eles. Sem leitores e
sem disposição para me tornar um brainstar,
de vez que prezo profundamente minha privacidade, decidi parar por ali mesmo,
alguns anos atrás.
Eu acreditava que a minha geração, aquela que lutou nos anos
de chumbo e, depois, nas diretas já, tinha cumprido seu tempo e que a hora de
agora é a de nossos filhos. Mas há momentos em que não é possível esperar pelos
outros. Há momentos em que os velhos como eu, depositários do que não deve ser
esquecido, precisam voltar para exercer sua função de transmissores: postar-se
em frente aos mais jovens e dizer-lhes, mesmo que não sejam ouvidos, o que deve
ser dito. Esta é a primeira razão.
A segunda, ao contrário do que afirmam aqueles precipitados
senhores, de que as palavras não movem montanhas e não mudam realidades, a
humanidade tem raízes exatamente nela: no princípio era o verbo e no final será
o mesmo verbo, passando por Gilgamesh e abracadabra, por evangelhos e alcorões,
por ilusões e verdades. E eis a segunda razão: as palavras estão erguendo
muralhas odientas; são necessárias outras palavras para combatê-las.
O primeiro discurso vem do século passado, meados do século
passado.
Um dia destes alguém me dizia que o abandono dos velhos na
pandemia do corona é fruto do neoliberalismo ou do capitalismo selvagem: quem
não produz, morre. Mas quem dera que essa fosse ideia nova! Milhares de pessoas
não teriam morrido nos anos 30 e 40 do século passado... Pois foram essas as
razões que guiaram o programa de eutanásia desenvolvido pelo governo Hitler na
Alemanha, iniciado em 1939 com... bebês. Esse programa não foi executado pela
Gestapo ou por outra organização da SS nazista. Foi executado por médicos. A
crueldade vinha revestida de misericórdia. Em nome da misericórdia, pois, foram
esvaziados os hospitais psiquiátricos diretamente nas câmaras de gás. Em nome
da misericórdia, milhares de crianças com deficiência física ou mental foram
mortas, a princípio por overdoses de remédio ou simplesmente de fome, mais
tarde, por asfixia. A mesma asfixia do coronavírus. Até agosto de 1941, 70.273
pessoas tinham sido assassinadas. Praticamente a capacidade máxima do Maracanã.
Até o final da guerra, em 1945, tiveram “morte misericordiosa” 230 mil pessoas.
Esse programa foi o embrião do holocausto.
O abandono dos velhos se inspira, pois, em puro nazismo. Que
não era capitalista, mas autocrático e escravagista. Tão autocrático e
escravagista quanto o regime stalinista.
Esse abandono já está crescendo e multiplicando-se: nenhuma
medida foi tomada para proteger as tribos indígenas, para as quais a simples
gripe é mortal, e um vírus como esse, genocida; nem as pessoas amontoadas nos
presídios. Himmler disse uma vez que, no interesse do país, “tirar a vida de um
homem não significará mais que tirar a vida de um boi” – ou seja, bandido bom é
bandido morto. Como um boi, ou pior que isso.
“Quando um moleque de
9 ou 10 anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí: 'trabalho
escravo, não sei o quê, trabalho infantil...'. Agora, quando tá fumando um
paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então, o trabalho não atrapalha a
vida de ninguém.” Isto é Bolsonaro, março de 2020. Arbeit macht frei (o trabalho liberta). Isto é a inscrição na
entrada do maior campo de extermínio nazista, 1941. Onde pessoas morriam
(também) de tanto trabalhar.
Coincidência ou consequência? A linha sutil da palavra
estabelece um cinismo comum de dois.
Obrigada pela atenção, da
Ana Diniz.
3 comentários:
Memória que se apaga é conhecimento que se descarta , que se despreza como se lixo fosse, quando é o ouro que reluz nas acumulativas reflexões que vão sendo construidas a partir das experiências vividas através dos tempos, iluminando nossa compreensão do mundo
Parabéns pelo artigo!!!👏👏👏
Um excelente artigo
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