segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Paixões: o orgulho
Venho acompanhando, como muita gente, o debate sobre a proibição de publicarem-se biografias não autorizadas. E me espanta ler e ouvir declarações de pessoas públicas defendendo um certo direito de imagem que é, no fundo, o espelho de Narciso.
Muita gente encomenda ou escreve suas próprias biografias. Costumo ler esses livros, que geralmente são de memórias selecionadas pelo autor ou pelo biografado, porque encontro neles uma enorme riqueza de informações que, de outra forma, não teriam registro: o cotidiano das pessoas na época, o que pensavam e como agiam. Essas biografias às vezes são um legado para a família (de onde você veio, garoto, e como foi duro deixar para você tudo o que recebeu); uma versão pessoal de fatos socialmente importantes (isso é o que eu sei e vivi e contraponho ao que sabem e viveram outros); uma desesperada tentativa de não ser esquecido depois da morte (pelo menos deixo um registro de que existi); ou, ainda, ver-se importante, num livro (os amigos geralmente insistem em que o biografado tem muito a dizer e mostrar).
Vaidosamente humano, eu diria, porque à consciência de sua pequenez e quase nulidade histórica, a pessoa humana agrega a consciência da sua individualidade: é pequeno, é quase nulo, mas é único. Perpetuar essa unicidade é o sonho que está por trás de toda autobiografia ou da biografia autorizada.
Mas a imagem que uma pessoa tem de seu próprio rosto não é aquela refletida no espelho do banheiro e, muito menos, no espelho social. Foi por isso que Narciso se apaixonou pelo seu rosto: era mais belo que a imagem que ele fazia de si mesmo. O espelho social, no entanto, não é inteiriço e nem límpido: feito de pequenos pedaços, do cristalino de milhões de olhos, reflete o que se compreende daquela pessoa. Mas é ele que mantém a memória, é ele que mantém o indivíduo para além da própria morte. A imagem social de uma pessoa é construída de opiniões diversas e retalhos multifacetados. Uma biografia autorizada é só mais um desses retalhos. Uma biografia independente, pesquisada, aprofundada, tenta reunir esses retalhos numa única imagem. Raramente consegue: torna-se, também, mais um retalho.
Pessoas com vida pública têm uma imagem social construída ao longo de toda a sua vida e do exercício de sua atividade nos palcos, nas tribunas, nos pódios. Deixam à sua passagem milhares, milhões de impressões – no contato pessoal, no contato através dos meios de massa, no comportamento público e, às vezes, no comportamento privado. Haverá sempre um barbeiro ou um cabeleireiro para dizer alguma coisa delas, do mesmo modo que um crítico de arte ou um analista político ou um comentarista esportivo. Pessoas com vida pública que sejam realmente importantes não têm uma só, mas várias biografias, escritas por pessoas diferentes e em diferentes tempos, também.
Mas, como disse Bill Gates uma vez, “o sucesso é um mau professor”. Ele conduz ao orgulho, a paixão por si mesmo, ou melhor, a paixão pelo que a pessoa julga ser, e este, à perda da noção crítica de si mesmo, uma das formas da arrogância, do julgar-se superior. É por orgulho – a vã tentativa de imprimir, no espelho social, seu rosto narcisado – que esses artistas estão tentando manter a obrigatoriedade de autorização para biografias. Como em todas as coisas movidas pelo orgulho, pelo pequeno colocam em risco coisas maiores: abrem uma brecha para a censura ostensiva e direta, uma das maiores pragas de qualquer comunidade humana, em qualquer campo que seja exercida.
Eu digo que a tentativa é vã por que qualquer um pode fazer facilmente a biografia picareta, que eles dizem combater, de qualquer desses artistas, sem escrever uma linha sequer: é só ter tempo e paciência de folhear revistas e jornais, conseguir as autorizações devidas dos autores das reportagens e notas, dar-lhes o crédito, fazer uma coletânea e publicar. A biografia englobará, com certeza, o lado sombrio e o lado risonho de cada um. E nem precisa pedir licença para o biografado: tudo já foi publicado. É de domínio público.
Eles dão declarações e fazem artigos, sem nem saberem se alguém, algum dia, vai escrever uma biografia de qualquer um deles. Porque verdadeiro valor só será conhecido muito tempo depois de sua morte, quando o tempo filtrar sua arte. E o tempo não pede licença nem autorização.
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Um comentário:
Gostei, copiei e enviei para um monte de gente, indicando a fonte, claro.
Biografias são necessárias até porque as histórias oficiais são bem deturpadas...
Os fãs de Roberto Carlos que me desculpe, mas precisamos mais de biografias do que dele, da sua biografia autorizada e do que ele pensa que devemos aceitar.
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