Estado temos de sobra. Rico, riquíssimo. Tanto, que a maior desigualdade
da renda brasileira não está, como insistem cronistas e analistas, entre as
regiões ou entre as classes sociais. Está entre a União Federal e a nação
brasileira. O Estado é rico, o Brasil é pobre. A União toma de cada brasileiro
três meses de trabalho. Entre a nação brasileira e seu Estado existe um abismo cruzado
por uma única e frágil ponte chamada Congresso Nacional. O que nos falta é
aterrar esse buraco, reduzir esse abismo, de forma que essa ponte se transforme
numa estrada. Sólida, segura e no chão plano.
Recursos naturais temos, e isto nunca é demais. O que nos
falta é usá-los com cuidado. Porque nós também temos predadores demais. Do
empresário que desmata ao lavrador que queima. Da empresa de navegação que
derrama óleo na água ao passageiro que joga lixo no mar ou no rio. Da
autoridade que permite o lixão ao morador que joga lixo na rua. Do pescador que
usa rede de malha fina à empresa que usa boto como isca de pesca. Do garimpeiro
à grande mineradora, contaminando tudo em volta da jazida.
Religião temos, um leque diverso e variado de ismos e
divindades. O que nos falta é cumprir seus princípios. Vivemos barganhando com
a divindade da vez. Ou o seu intermediário. Há promessas, despachos, oferendas
até demais. O que nos falta é caridade, solidariedade, bondade e compaixão.
Menos egoísmo e mais partilha. Menos julgamentos e mais misericórdia.
Grades temos, tantas e diversas que até a antiga profissão
de ferreiro, que se acreditava arquivada com a chegada do aço e do alumínio,
ressuscitou seus foles e fornalhas, agora na forma de maçaricos. O que nos
faltam são as chaves para abri-las: o respeito com a coisa alheia, com o bem
público, o controle da tentação.
Leis temos, até demais. O que nos falta é o cumprimento
delas. Nossas leis são compridas e não cumpridas – exceto a lei geral da Copa,
que permite a concessão de 180 patentes para a Fifa (até da palavra “pagode”,
vejam só!) sem passar pela burocracia que atormenta os inventores e empresas
brasileiras.
Polícia temos, até demais. O que nos falta é eficiência.
Nossa polícia é a do depois: os inquéritos se abrem, mas em sua maioria não
fecham. Não se previne, se reprime. Depois do crime cometido. Depois do
sofrimento da vítima.
Judiciário temos, e bastante. As cortes da Justiça em
Brasília são, realmente, cortes. É só olhar as marmorizadas e granitadas sedes
dos tribunais superiores, que a maioria da população nem sabe quantos são. Falta
vergonha para eles, sobra dela para nós: hão de convir que ter três
desembargadores afastados por suspeita de corrupção é demais. Isto é o Tribunal
de Justiça do Pará.
Música e ritmo, temos de montão. Faz parte do nosso dia a
dia. O que nos falta é reduzir o volume do som posto na porta da casa, no
carro, no bar ou na boate.
De tudo temos, e muito. Mas vivemos mal, porque tudo nos
falta.
2 comentários:
Óóótima crônica, Don'Ana.
Sei que foi para não alongar a crônica, mas à lista ainda se poderiam acrescentar diversas "faltas" do que muito temos.
De modo que a última oração da crônica resume fielmente o sentimento de muitos brasileiros, porque tudo nos falta, mesmo.
Já ouvi europeu dizer que o quê nos falta é uma guerra.
Para valorizarmos nossos recursos (hídricos, florestais); para aprendermos o que é violência (e não a vulgarizarmos); para faltar tudo e, assim, darmos o devido valor às nossas riquezas.
A idéia faz estremecer, mas quando me deparo com o desperdício, admito que há uma certa razão.
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