segunda-feira, 21 de maio de 2007

Heranças malditas

Já se passaram quarenta anos do golpe de 64, e dezoito desde a Constituição que repolitizou o país. No entanto, os efeitos funestos de vinte anos de governos discricionários ainda não cessaram.
Algumas heranças dos governos militares são boas – o crescimento econômico é uma delas. Mas mesmo essas boas heranças não são suficientes para compensar o mal causado pela censura e pela organização policial em moldes militares. Estas duas respondem por grande parte dos dramáticos problemas que o Brasil enfrenta hoje. Elas geraram efeitos perversos na mente das pessoas: no primeiro caso, entre outras razões, pela perda de parâmetros de julgamentos públicos, entre o que era um país governado pela força, e um país onde o debate é livre; no segundo caso, pelo tratamento dos criminosos – que, queiramos ou não, são cidadãos “iguais perante a lei” – como inimigos de guerra.
Foi nos governos militares que as guardas civis e as polícias dos Estados foram militarizadas. O aparelho de segurança pública confundiu-se com o aparelho de segurança de Estado; as Polícias Militares surgiram como uma espécie de sub-Exército, e a elas se aplicou o conhecimento militar.
O aparato militar é voltado para a guerra; o conhecimento é voltado para a defesa nacional e para a destruição do inimigo. Ao se aplicar nas polícias o conhecimento militar, elas passaram a ser preparadas para vencer, esmagar, destruir. Isto é muito diferente do trabalho policial, que consiste basicamente em pacificar, investigar, encontrar culpados e detê-los. O trabalho militar é, por natureza, rápido e violento; o trabalho policial é paciente e só se torna violento quando há resistência. O soldado cumpre ordens e age em conjuntos, maiores ou menores, sempre sob liderança; o policial tem que tomar decisões todos os dias, e na maioria das vezes trabalha sozinho.
Há uma faceta militar no trabalho policial; mas ela não significa nem um décimo do que é demandado pela atividade.
Ao mesmo tempo, ao uniformizar os procedimentos, a formação, o armamento e a carreira dos policiais militares, em todo o Brasil, os governantes criaram um espírito corporativo nacional. Hoje, a polícia militar tem vinte e oito cabeças, uma em cada Estado da Federação, mas é uma só hidra: nenhuma mudança, nenhuma reforma, nenhuma alteração mais profunda pode ser feita se não for consensual entre os comandantes, que sabem perfeitamente que têm sob suas ordens mais de trezentos mil homens armados e condicionados à corporação. Os resultados da primeira reforma radical realizada, no Rio Grande do Sul, estão aí para quem quiser analisar, e revelam, por inteiro, que a corporação só é múltipla na aparência.
A visão de guerra permeia a atividade das polícias militares. Desde 1990 que centenas de experiências foram realizadas no Brasil, em todos os Estados da Federação: conselhos de segurança e justiça, ações de policiamento comunitário, ações de inteligência policial – nenhuma delas conseguiu alterar significativamente a forma de agir dos policiais militares, nenhuma conseguiu reduzir a importância dos quartéis, nenhuma conseguiu reduzir a violência nas ações policiais.
Desde essa época discute-se amplamente segurança pública. Mas não se discute a revisão das polícias militares: é como se devessem ser militares, e ponto final. Sequer se discute o que é um policial militar; são militares. Fim.
Essa visão leva para que se faça guerra, disfarçada com vários nomes, dentro de casa. Mas a bala perdida que mata, tem um disparador histórico, ainda não revisto. E, enquanto essa herança não for inventariada, partilhada e transferida para quem de direito, o espólio mau permanecerá, como um tumor extremamente doloroso.

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