Não, eu não vou comentar o que todo mundo já sabe: que a
presidente Dilma está fazendo tudo o que na campanha disse que não faria. Mas
vou partir daí, desse fato, para, conjugando-o com outro – a natureza das
despesas de 4,92 bilhões de reais gastos nas campanhas eleitorais das eleições
de 2014 – abordar a pergunta que está no título desta crônica.
Na utopia brasileira, em grande parte expressa em
ordenamentos legais dissociados da realidade, a campanha deveria servir para
discutir as propostas dos candidatos. Deveria também ser um instrumento de
visibilidade dos candidatos, de forma a proteger as candidaturas de partidos
minoritários e levar ao cidadão o máximo possível de informação para que faça
sua escolha livremente. No caso de candidatos ao Executivo, deveria espelhar o
programa de governo dos candidatos que, apresentado à Justiça Eleitoral, baliza
a proposta do candidato.
No entanto, a realidade é outra. Os programas de governo
depositados na Justiça não servem para nada – talvez como razão de impugnação
de candidatura se, por acaso, houver propostas contra as cláusulas pétreas da
Constituição, como divisão do país, por exemplo. No mais, são peças literárias,
desconhecidas até da equipe mais próxima do candidato. E não obrigam a nada.
Os conteúdos da campanha giram em torno do que Miguel
Wiñazki chama de “notícia desejada”, ou seja, diz-se o que o eleitor quer
ouvir, pouco importa seja real ou não. Os recursos cinematográficos permitem a
criação de um mundo de ilusões, onde o que é feio é trabalhado para ficar horrível
e o bonito, lindo. Nesse mundo ilusório, em que o horário eleitoral se
assemelha à novela das seis, com trama superficial e mudanças abruptas do rumo
da história, o tempo a ser usado se torna crucial, e, aí, a distribuição de
tempo na tevê (ferramenta criada, aliás, para proteger as candidaturas de
partidos minoritários) provoca o primeiro movimento para as coalisões
majoritárias: não é o ajuste temático que reúne os partidos nesta ou naquela
chapa, mas o agregado de tempo na tevê. Então, considera-se natural que um
partido como o Democratas, que defende muitas bandeiras que o PT repudia, se
junte a este numa coalisão eleitoral. É nessas coalisões que começa a
verdadeira campanha eleitoral que, ao contrário do que quer a lei, passa bem
longe do programa apresentado. Na realidade, na organização do tempo de tevê
monta-se um time. Esse time vai disputar um campeonato, cujo troféu é o governo
e sua base legislativa. E daí em diante, joga-se – para a torcida, que, sem
ela, não há renda no campo de futebol nem votos na urna.
Quem ganha, leva. Se trapaceia, ou se, como aconteceu com
Vanderlei Lima nas Olimpíadas, um fato estranho impediu alguém de ganhar, não
interessa.
Mas, entre a composição do tempo da tevê e o final do
campeonato há um bocado de dinheiro fluindo dos bolsos de uns para os bolsos de
outros. Esse dinheiro vem dos impostos,
por via do chamado Fundo Partidário; e de particulares, quer sejam empresas,
quer pessoas físicas. Os R$4,92 bilhões que circularam este ano, foram parar
aonde?
Diz reportagem do portal UOL, da “Folha de São Paulo”:
A disputa eleitoral que teve a maior quantia de gastos foi
ao cargo de deputado estadual (1,2 bilhão), da qual participaram 17 mil
candidatos. Na sequência, as que tiveram mais despesas foram para os cargos de
governador (R$ 1,1 bilhão) e de deputado federal (R$ 1 bilhão). Os gastos em
publicidade representaram metade do total investido pelos candidatos na disputa
eleitoral deste ano, seguidos por despesas com pagamento de pessoal e com
custos de transporte.
O que são os “gastos em publicidade”? Na campanha padrão, cujo
espelho está nas prestações de contas feitas à Justiça Eleitoral, são as despesas
com produção de materiais impressos (cartazes, santinhos, banners, panfletos, jornais),
peças para eventos (bottons, crachás, camisas, coletes, bandeiras) e,
sobretudo, para a criação de marketing e a produção de programas de tevê (se o
candidato tem uma produtora, ele vai ficar com a parte de leão do dinheiro da
campanha; não sai no prejuízo, em nenhum caso). Essas unidades empresariais
(agências de publicidade, marketing e relações públicas e as produtoras de tevê)
é que dispuseram dos quase R$2,5 bilhões usados este ano para os gastos em
publicidade, retendo consigo uma fatia que, segundo a tabela da Associação
Brasileira de Agências de Publicidade varia de 10 mil reais (para verbas
publicitárias empresariais de até 2,5 milhões) a 70 mil reais (para verbas
superiores a 25 milhões) mas que, numa campanha, é acertada levando em conta a
quantidade de candidaturas a ser atendida, o que deixa essa tabela como mera
referência. Ou seja: se a agência vai atender uma legenda partidária com 60
candidatos a cargos proporcionais e dois a cargos majoritários, ela pode cobrar
200 mil reais (60 mil correspondentes às verbas publicitárias considerando cada
candidato proporcional e 70 mil para cada candidato majoritário). O custo das
produtoras varia. Segundo a Cinemátika, empresa especializada na produção de
vídeos institucionais, um bom vídeo institucional custa de 15 mil a 40 mil
reais. Como a produção de vídeos de campanha envolve atores, filmagens
externas, uso de material cinematográfico e deslocamentos, vamos usar o máximo
valor para uma estimativa, embora, com certeza, sejam mais caros que isso.
Entre primeiro e segundo turnos, a campanha foi de 19 de agosto a 24 de
outubro, com um intervalo de dois dias, ou seja, 75 dias. A 40 mil reais por
dia, são 3 milhões de reais só para um candidato majoritário, só para uma
produtora de tevê.
Bem, então temos a primeira resposta para a pergunta do
título: a campanha serve para engordar as contas (ou fortalecer o setor, como
preferirem) das agências de publicidade, gráficas e produtoras de tevê. De si
mesmo, pagar as contas do mundo da mídia é justo e necessário. O problema está
no que esse mundo da mídia está oferecendo.
Porque sem os vídeos a campanha seria quase inexistente, de
tão chata. O Brasil já fez essa experiência, no tempo da ditadura, quando a
campanha foi tão censurada que se limitava a um listão: foto, nome e número do
candidato. As audiências das tevês da Câmara, do Senado e da própria TV Cultura
mostram que o público não está interessado em debates, profundos ou não, sobre
o seu destino ou sobre as questões nacionais, regionais ou locais. Até porque
não entende a maior parte dessas questões - o jornalismo existe justo para
decodificar linguagens e conceitos e torná-los acessíveis ao cidadão comum. Nos
debates proporcionados pelas redes de tevê o jornalismo é engessado pelos
marqueteiros nas reuniões prévias (tempo igual, temas) transformando tudo numa
encenação casada com a ilusão produzida nos vídeos. O jornalismo impresso está,
da mesma forma, cerceado, algumas vezes por si mesmo, outras pelo entendimento
judicial sobre os crimes de opinião (escrever que um grileiro é grileiro pode condenar
um jornalista, que o diga o Lúcio Flávio Pinto).
Então, o que sobra? Motivação,
diriam os marqueteiros. A campanha serve para motivar o eleitor.
Sinceramente, é muito dinheiro para tão pouca coisa. Afinal,
na forma como está, a campanha eleitoral não serve nem para que se identifique
quem é candidato a deputado. Quem quiser esta informação que consulte as listas
da Justiça Eleitoral. A campanha não compromete o candidato, não informa quem
são os candidatos, não se ancora na realidade e se limita a dizer o que o
eleitor quer ouvir, o que pode ser resumido numa única frase: meu time é melhor
que o teu.
Ainda sinceramente, acho que quem defende que o Tesouro
Nacional pague as campanhas eleitorais não sabe do que está falando ou está
falando de má fé. Eu, pelo menos, não quero que minha cota de impostos vá
financiar um mercado de ilusões eleitorais. Também não resolve proibir as
empresas de contribuir para a campanha – o que é normal em todas as democracias
– porque será inócuo. Elas o farão de forma indireta; há milhares de meios de
fazer isso.
Para que as campanhas eleitorais sirvam para algo mais que
gerar um mundo de ilusão destinado a um campeonato, o caminho é outro. Passa
pela mudança na distribuição do tempo na tevê, na liberação do jornalismo das
peias em que está hoje, na substituição da exigência de um programa de governo
pela identificação de princípios e diretrizes programáticos obrigatórios, cujo
descumprimento possibilitasse a responsabilização do candidato. E passa pela
liberação da propaganda de rua. Por acaso, o povo também tem o direito de se
manifestar.
2 comentários:
Ana, muito bom seu comentário sobre o financiamento de campanhas. Tem um momento de te comentário em que falas de ilusão. Eu diria, "a ilusão de estar participando". Nesse mundo mediático-pós-moderno", com todas as impropriedades da expressão, um processo eleitoral vira um espetáculo, como dizia Debord. Eu diria, uma espécie de Big Brother onde tudo está montado e o telespectador, que imagina estar participando, na verdade está sendo pavlovianamente condicionado. Uma democracia com a que vivemos, que cria essa ilusão de que estamos participando, criar isso que você relatou. É possível pensar nos tempos em que vivemos em outros formas de participação dos cidadãos? As pessoas nos tempos de hoje "escolhem" seus candidatos ou tem a ilusão que escolhem. Mas é uma condicionado (e muito bem condicionada) pelo "Grande irmão" Infelizmente. Tem saída? Não a vejo...
Se há saída, está longe. Não dá para ver. Mas deve-se prosseguir atrás dela. Mesmo que, antes, haja muitas pedras pelo caminho. Um abraço. Lúcio Flávio Pinto
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