Uma pergunta martelando na cabeça – porque o povo elege
determinadas pessoas mesmo sabendo que são corruptas – levou a outras
perguntas, estas feitas diretamente a eleitores que me declararam seu voto
nessas pessoas. As respostas tinham poucas variações: para alguns, o voto era
de gratidão por diversos tipos de ajuda recebidos (furar uma fila no sistema de
saúde, telhas para a casa ou bolsa de estudos para o filho) e, para muitos
outros, o voto se justificava pela expectativa dessa ajuda. Uma resposta,
entretanto, sintetizou tudo:
- Todos eles roubam. Esse daí, pelo menos, dá um pedacinho
pra gente.
O que está claramente definido nesta frase é que o problema
principal para esses eleitores não é o furto da coisa pública, mas estar fora
da partilha desse furto. Secundariamente, a avaliação de que todos roubam é
apresentada como uma premissa, uma verdade inquestionável: quem não se
aproveita dos cofres públicos é tido como tolo e otário. Finalmente, a consideração
de que o voto é um bem de valor econômico definido na expressão “pedacinho”: é
um valor pequeno, flutuante, mas que pode ser perfeitamente negociado a fio de
bigode, isto é, na base da palavra dada.
Este raciocínio é o mesmo que preside a planilha apreendida
na Queiroz Galvão, instrumento mais sofisticado, mas que igualmente transforma
a atividade política em bem de valor econômico. O “ProfPart”, que é a
disponibilidade de recursos, dentro da margem de lucro admitida para a
contratação de obra pública, para a doação a ser feita na próxima campanha
eleitoral para partido ou político, é o mesmo pedacinho, aqui transformado em
pedação matematicamente calculado, negociado a fio de bigode.
Entre o eleitor e a grande empreiteira está um enorme
espectro de governos municipais e estaduais, pequenas e médias empresas,
servidores públicos de muitos níveis. Neles pode ser encontrada com frequência “a
cota do deputado (ou do vereador)”, na contratação de obras; o “está sobrando
aqui, vou levar pra casa”, no material de escritório; o “use a merenda escolar
na confraternização”; o “vou asfaltar primeiro a minha rua, afinal sou
autoridade”; ou “o partido exige esta outra Secretaria; essa oferecida é
irrelevante, não tem dinheiro”; “os deputados estão insatisfeitos, isso aí não
dá para empregar os cabos eleitorais” – e assim por diante.
Parece-me claro que não é possível dissociar a atividade
política da atividade econômica, embora as Universidades façam isso sem nenhum
questionamento (por exemplo, ninguém trata de sindicalismo nos cursos de
economia e nem de macroeconomia nos cursos de direito constitucional). Mas o
Brasil não enfrenta o problema: prefere o caixa 2. Punhados de leis ditas
rigorosas, mas fora da realidade, são burladas diariamente, gerando uma cultura
que nos leva a conviver com a corrupção de forma natural.
Convivemos com dois preços: o “com recibo”, que inclui o
pagamento dos impostos, para toda a atividade profissional liberal; o “com nota
fiscal” e o “sem nota fiscal”, no comércio em todos os níveis, da padaria da
esquina à loja de luxo. A pesada tributação brasileira responde por uma parte
desse espírito sonegador, que é apenas um aspecto do caixa 2. Sim, porque é
preciso um pouco de habilidade para movimentar recursos sonegados. Eles são tão
produtos de roubo como quaisquer outros – o celular tomado no assalto ou os
centavos a mais cobrados pela operadora de telefonia. Mas essa tributação
exagerada não responde sozinha pela situação: a ela se alia a impunidade. A
Justiça brasileira é tão ruim que pune a vítima antes de punir o réu. O país
inteiro está vendo a diferença que faz um juiz – primeiro, Barbosa, e, agora,
Moro – quando ele resolve agir. Mas a infinidade de tempo usada nos julgamentos
anula boa parte do esforço e a existência de pesos e medidas diferentes,
conforme o réu, torna o Judiciário inconfiável. Os réus do mensalão já estão
fora da cadeia enquanto ainda penam, entre grades do Brasil inteiro, milhares
de presos sem julgamento. E, entre eles, quantos inocentes haverá? Dinheiro
(nem que seja para comprar a dedicação de um advogado) e prestígio político
(para pressões, naturalmente), fazem diferença, sim, no Judiciário. E, quando
isto acontece, está feita a terceira perna de sustentação da cleptocracia, o
governo baseado no furto.
Geralmente as cleptocracias funcionam na contramão da democracia:
com poucas exceções, tiranos e ditadores se apropriam da coisa pública com
naturalidade e reprimem duramente quaisquer discordantes. Mas parece que se
está gerando no Brasil uma outra forma de cleptocracia, a democleptocracia, em
que há um pedacinho, ou pedação, para cada um no caixa 2, com valor de mercado
sem o rigor matemático da Queiroz Galvão, mas perfeitamente definido. Em vez de
repressão, corrupção miúda – é menos traumático e sai mais barato.
O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência
Internacional no colocou, em 2013, numa grande zona vermelha de corrupção, no
lugar 72 entre 177. Realmente é difícil perceber corrupção numa cleptocracia em
que o povo participa.
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