Cria corvos e eles te arrancarão os olhos
(provérbio
espanhol)
Há um punhado de obras de arte que detesto. Nem por isso
lhes nego a condição de arte ou a liberdade de seus autores em produzi-las.
Nego-me eu a ler, ver, assistir, comentar. Há milhares de pessoas que, como eu,
também não gostam e há milhares que pensam de forma diferente. Mas liberdade é
isso: poder escolher.
Raramente aprecio uma sátira. Para mim, ela está perto
demais da grosseria. Também, pela mesma razão, não gosto do “Zorra Total”. Então,
desligo a tevê, fecho a revista, desconecto o assunto. O humor nu – nos
sentidos literal e figurado – não é a praia para onde eu vou.
A sátira frequentemente transborda do terreno do humor para
entrar no da ofensa pura e simples. Esse limite é cinzento: o que eu considero
limite não é o mesmo que o outro considera. O deboche muitas vezes beira a
crueldade. Discutir a intenção do autor é bobagem: o dano causado geralmente é
irremediável para o atingido.
Mesmo assim, ser ofendido não gera um direito de vida ou
morte sobre o ofensor. Não depois que se estabeleceram princípios mundiais de
convivência e direitos humanos.
E aqui chegamos ao cerne da questão: o que fazer quando um
grupo humano decide não aceitar esses princípios e, pior, tenta estabelecer o
seu ponto de vista sobre todos os demais?
Em termos de arte, chamamos isso de censura. Em termos
políticos, de extremismo. Em termos sociais, de radicalismo. Sabemos como
combater a censura, o extremismo, o radicalismo: pactuamos os limites na forma
de leis que todos devem respeitar. E discutimos esses limites o tempo todo, para
alterá-los por meio de novos pactos. Usamos para isso ferramentas legais: o
processo contra o autor de algo que nos ofende gera decisões que muitas vezes fixam
novos limites para o que se pode tolerar.
Mas, em termos religiosos, não há pactos: há dogmas. Dogmas
não se discutem: acredita-se neles ou não. Em clima de liberdade, um dogma não
deve se sobrepor a outro, e se um cidadão decide acreditar neste, e não
naquele, ou simplesmente não acreditar em nenhum, o religioso pode tentar
convertê-lo e, se não o conseguir, rezar pela sua alma. Não pode coagi-lo e,
muito menos, matá-lo. E esse é o problema do fundamentalismo religioso, que
matou Jesus Cristo porque negou a divindade de César, que dizimara, antes de
Cristo, os zoroastristas e, depois dele, continua matando até hoje. O
fundamentalismo é mortal. E é tentador: o nome de Deus é um formidável instrumento
de poder. Alguns milhões de mártires, de todas as religiões, atestam até onde
pode ir um crente desafiado.
Hoje, um grupo humano está retomando o fundamentalismo
extremo.
O atentado de Paris é café pequeno perto do que esse grupo
está fazendo na Nigéria, na Somália, no Iraque e na Síria, nestes dois últimos
países sob a fachada de Estado Islâmico. O massacre sobre muçulmanos xiitas,
assírios, cristãos armênios e yazidis (estes estão sendo exterminados) já conta
milhares e milhares de mortos. Centenas de milhares de mulheres de todas as
idades estão sendo transformadas em servas ou, pior, coisas: não dispõem nem de
seu corpo, nem de seu espírito.
E nós? Nós, olhamos horrorizados, assinamos petições,
passamos a conta para as potências senhoras da guerra e nos sentimos a salvo.
Mas – estamos realmente a salvo?
Dos jihadistas, provavelmente sim. Mas estamos nos
esquecendo de olhar em torno e ver aqueles que, de paletó e gravata, constroem os
ninhos dos corvos que nos arrancarão os olhos. Porque o fundamentalismo não
nasce da noite para o dia, nem de uma iluminação profética. Ele se alimenta da
intolerância cotidiana, do dia a dia da ofensa, da falta de limites, fermenta
no ódio e na ambição. E toma forma nas pessoas que usam o nome de Deus para
canalizar a intolerância contra os demais, demonizando os adversários – e o
demônio deve ser combatido, não é mesmo? E seus servos eliminados ou reduzidos
à sujeição total.
Tem-se falado em segunda guerra fria e coisa e tal. Mas a
História não anda em círculos, ela traça espirais ascendentes ou descendentes, cujas
curvas são semelhantes entre si, mas nunca iguais. O drama do século XX foi o
antagonismo entre diferentes ideologias; o do século XXI será o religioso, se
permitirmos que os corvos se criem.
Um comentário:
Muito bom esse artigo. Correto quando mostra como a intolerância está crescendo. Seria interessante que pensássemos no que acontece no dia a dia da gente. Perceberíamos como vem se aguçando a intolerância. Há as intolerâncias "justificadas", mas existem aquelas, também, corrosivas, letais. Não sabemos mais conviver com as diferenças. O desejo de morte é grande. Quando te refere aos Cristo isso é verdadeiro. Ele foi vítima dessa intolerância. Bastou dizer que meu Reino não é desse para ser morto. Nós matamos Cristo, como dizia, Reich no seu livro O Assassinato de Cristo" mostra como clareza isso. Os corvos estão soltos.
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