Eu não tenho complexo de vira-lata. Eu sou um vira-lata. Indivíduo mestiço, sem qualidades especiais e sem
dotes refinados. Um entre milhares, centenas de milhares, milhões. Tenho um
nome pelo qual me chamam e ao qual atendo. Meu lugar no mundo é circunscrito e
sonho frequentemente com não me preocupar com o que vou comer amanhã, depois
que resolvi o alimento de hoje. Às vezes consigo sair, por pouco tempo, dos
limites geográficos onde estou radicado: uma escapada de uns poucos dias,
porque não dá para ir mais adiante.
Nós, os vira-latas, somos conhecidos pela enorme capacidade
de sobrevivência: nós nos contentamos com pouco, migalhas de mesas opulentas,
uma sobra de carne num osso, uma água mais ou menos limpa, e, num dia qualquer
de muita sorte, aquela ração reforçada. E resistimos, meio doentes, meio
sarnentos às vezes, mas vivemos.
Também somos conhecidos pelo barulho. Mas, veja você: sem
grandes presas ou força bruta de ataque; sem beleza ou exotismo que nos ponham
num pet shop ou num colinho confortável; sem porte que impressione, o que nos
resta é o alarme. Latimos de alegria, às vezes, mas, quase sempre, é para
avisar que alguma coisa está errada, que alguma coisa nos assusta, nos fere,
nos adverte do ruim. Latimos para nos defender, para alertar os demais, para
que nos vejam. Porque individualmente somos insignificantes, perdidos na
multidão: se não latirmos, não ganharemos afagos, ou os elefantes não nos verão
e podemos ser esmagados.
Mesmo assim, latimos menos que alguns cães de pedigree: os
terriers, ou os pequineses, por exemplo. Esses latem por nada, para ouvir a
própria voz, creio eu. São nervosos, correm para lá e para cá sem motivo. E
latem até para as formigas.
Somos capazes de ações heroicas, de fidelidades até
insensatas, de seduzir com o olhar, de inspirar amor e ódio e também de
engodos, covardias e traições. Também somos capazes de ultrapassar o sofrimento
com rapidez e de nos ajustar ao terror que possam nos causar. Diante do mais
forte, geralmente nos encolhemos e esperamos. Aprendemos da forma mais dura que
atirar-se à luta em desvantagem só se justifica quando a ameaça é mortal. Vejam
o que está acontecendo com os pitbulls, rottweiler e os dobermanns, que atacam
qualquer coisa de qualquer jeito: querem até exterminá-los!
Essa paciência em esperar o momento certo é uma de nossas
características mais importantes. Com ela, nós vigiamos os descuidos e
conseguimos nacos melhores. Com ela, escapamos de armadilhas. Com ela,
conseguimos até ficar silenciosos por algum tempo. E é por ela, também, que
latimos e latimos e latimos quando sentimos que as coisas estão mal para o
nosso lado. Precisamos latir para ter paciência.
Porque, quando as migalhas desaparecem e a necessidade
aperta, nós, os vira-latas, exercemos uma outra das nossa capacidade, herdada
dos tempos de selva: nós nos agrupamos e nossas matilhas conseguem instilar o
medo que nós, individualmente, não conseguimos provocar. Não é uma coisa que
gostemos de fazer. Preferimos o caminho pessoal e livre, competindo entre nós
pelo pão de cada dia, mas fazendo o que nos dá na telha. Nossa longa história
de sobrevivências nos ensinou que as matilhas costumam agir numa espécie de
embriaguez desesperada, e isso não é bom. Costuma ser mortal para muitos. A matilha
é nosso recurso extremo, mas ela está lá, guardada em nossa memória ancestral.
Sabemos formá-la e a consciência dessa sabedoria nos deixa mais prudentes ainda.
Porque pesamos as consequências dela.
Muitos torcem o nariz para nós, porque nos consideram
insignificantes e porque pensam eles que nossos latidos são insensatos e não
têm razão de ser. Mas isso, que deveria nos diminuir perante nossos próprios olhos,
acaba sendo para nós outro recurso de sobrevivência: por ignorar nossos
latidos, nossa viralatice, a caravana passa – e segue para o precipício. Ou
para a boca da matilha.
Um comentário:
Bem oportuno. Os cães são tidos como melhores amigos e hoje é...Dia do Amigo!!!
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