Cena 1
(Interior de um
templo. Multidão e um pastor)
Pastor: Não podemos admitir que esse antro de
perdição fique maior!
Multidão: Não podemos!
Pastor: Essa enviada de Satanás destrói nossos lares
e atira os homens no caminho do inferno! Todos vocês, fiéis seguidores do
Senhor, lancem o nome do Cabaré na fogueira santa!
(uma chuva de pequenos
pedaços de papel é atirada para o centro do templo pela multidão. Uma mulher
corre rapidamente para um homem que vai atirar uma cédula de dinheiro, fala no
ouvido dele, pega o dinheiro e mete discretamente no bolso do pastor, que
continua falando. A multidão acompanha a prece.)
Pastor: Rezem comigo! Senhor, não permita que o
Cabaré aumente de tamanho! Senhor, não permita que o Cabaré aumente de tamanho!
Senhor, não permita que o Cabaré aumente de tamanho! Senhor...
(um grande ruído de
trovão silencia a assembleia e ouve-se um grito de mulher)
Mulher: O Cabaré está pegando fogo! Um raio incendiou
o cabaré!
(o Pastor e a multidão
dão graças, abraçam-se, louvam, enquanto a mulher corre de um lado para o outro
recolhendo dinheiro. Cai o pano lentamente).
Cena 2
(sala do tribunal.
Juiz e escrivão. O Pastor está à direita do juiz. À esquerda uma mulher
maquiada e vestida como exige a profissão de dona de um cabaré. Há ainda um
escrivão, um advogado para cada parte e, ao fundo, um oficial de justiça e um
policial).
Pastor: Senhor juiz, eu insisto: nossas orações não
provocam raios. Só Deus, que castiga o pecado, como castigou, pode fazer isso!
Mulher (interrompendo):
Se o senhor não tivesse pedido, Deus não haveria de fazer!
Juiz: Senhora, ele fala, a senhora se cala. Depois a
senhora fala, ele se cala.
Mulher: Mas... (leva
um cutucão do advogado na perna) Que é isso, agora? O senhor agora me
chuta?
Pastor: Como posso chutar a senhora se estou do outro
lado da mesa?
Juiz: Chega! Agora falo eu! (para o pastor) O senhor diz que suas orações não valem nada?
Pastor: Não é bem assim...
Juiz (irritado):
Responda sim ou não! O senhor diz que suas orações não valem nada?
Pastor: Mas... (o
advogado cochicha no ouvido dele)
Juiz: Sim ou não?
Pastor (murmurando):
Sim.
Juiz (para a
mulher): A senhora diz que as orações dele provocaram o raio que incendiou
seu estabelecimento?
Mulher (com
vivacidade): Sim!
Juiz (para o
pastor): É verdade que depois que o cabaré pegou fogo o senhor recebeu
tantas doações que está pretendendo aumentar o templo?
Pastor: Não sei o que tem a ver... (olha para o advogado que está de cara feia)
Sim, senhor juiz.
Juiz (para a
mulher): A senhora é religiosa?
(todos escondem um
risinho. A mulher corre os olhos em volta, primeiro surpresa, depois rindo
abertamente).
Mulher: Não, senhor juiz, eu...
Juiz (interrompendo):
Não preciso de suas explicações. Senhor oficial de justiça!
Oficial de justiça (adiantando-se): Pronto, senhor!
Juiz: Prenda os dois, autora e réu, por mentirem em
juízo! Pois onde já se viu uma profissional do sexo que não é religiosa
acreditar na força das orações e um pastor, profissional da religião, descrer
delas! Dois dias de cadeia, à disposição deste juízo, para aprenderem que, se
brincam com Deus, com a Justiça não podem brincar!
(Os advogados começam
a argumentar, o pastor e a mulher protestam e o pano cai).
Fim.
(No ano passado, em
Aquiraz, no Ceará, a justiça foi requisitada para dirimir o fato: um pastor fez
uma campanha de orações contra um prostíbulo que se expandia, e este foi
destruído por um raio. A dona do prostíbulo processou a igreja para indenizá-la.
Eu não sei em que deu o processo estranho. Mas é um episódio na medida para a
pena de Ariano Suassuna. E, como ele morreu na semana passada, presto desta
forma a minha homenagem a esse autor extraordinário: sigo seu exemplo em
contribuir para o teatro brasileiro com este mini-esquete de duas cenas,
totalmente imaginado e que, com certeza, ele escreveria muito melhor).
Um comentário:
Muito bom! Por coincidência estava lendo Psicologia das massas e análise do eu, do Freud. É um estudo que não podemos deixar de ler. Bela homenagem ao Ariano Suassuna que soube captar o comportamento das massas nos rincões desse país.
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