O nome foi bem escolhido. Salomão, o sábio, foi também um
rei voraz. Diz a Bíblia que ele tinha 700 mulheres e 300 concubinas, de
diversos povos. Diz ainda que, para abastecer sua casa, recebia diariamente de
seus oficiais-governadores, encarregados de cobrar a parte do rei, 10 mil
litros de flor de farinha e 20 mil litros de farinha (30 e 60 coros,
respectivamente) além de “10 bois cevados, 20 bois de pasto e 100 carneiros”,
afora caça e aves de criação. Ou seja, algumas toneladas de trigo e, em um ano,
um imenso rebanho.
Reduziu à servidão “o que restou dos amorreus, heteus,
perizeus, heveus e jebuseus”, derrotados em guerras de conquista. Construiu o
grande templo mas, também, altares para deuses diversos, das religiões que
algumas de suas mulheres confessavam.
Revendo essas informações antigas e os estudos que se
fizeram sobre elas, e contemplando as fotos do recém-erigido templo de Salomão,
não posso deixar de pensar que os milhares de anos que distam entre essas informações
ainda são poucos para que a essência do fazer humano seja mudado. Lá, como cá,
em nome de Deus se recolhem donativos, geralmente moralmente obrigatórios. Lá,
como cá, em nome de Deus se fazem grandes edifícios: se no templo de Salomão
cabem dez mil pessoas, na grande mesquita de Dubai, inaugurada em 2007, cabem 40
mil. Note-se que a cidade de São Paulo tem cinco vezes mais a população de
Dubai - e uma proporção bem menor de favelas e miseráveis.
Salomão ocupou o trono de Israel depois de forçar a
preterição do irmão mais velho (que depois mandou matar), casou-se com a filha
do faraó do Egito e era fruto de um adultério sangrento. No entanto, lá, como
cá, tudo se perdoa ao homem bem sucedido: o livro dos provérbios integra a Bíblia,
novamente em nome de Deus, e o templo de Salomão é apresentado, tanto antes
como agora, como produto da fé de um povo.
A enorme coleção de grandiosos monumentos religiosos que a
humanidade abriga, reunindo templos, pagodes, esculturas e afins, não parou de
crescer. Lamentavelmente, e em que pese a beleza da maioria deles – algumas
joias de Ouro Preto, por exemplo - eu
não consigo olhar para essas realizações sem lembrar de escravos, de servos
(como os sobreviventes dos povos que Salomão dizimou) ou de trabalhadores miseráveis
(como os de Dubai ou os imigrantes ilegais de São Paulo) dando cotas de
trabalho gratuito, todos assentando mármores. Talvez eu esteja nadando contra a corrente:
mas eu não acredito que a glória de Deus precise disso, ou que isso seja
necessário para glorificar Deus. Mais me parece uma forma de disfarçar o mau
cumprimento dos preceitos religiosos – tal como fez Salomão em sua dubiedade. O
problema é que religião mal cumprida conduz ao fanatismo, quando a letra
substitui a essência. E o fanatismo leva à intolerância e, muitas vezes, à
guerra, como acontece há milhares de anos: entre budistas e zoroastristas,
entre cristãos e muçulmanos, e, na Palestina, hoje como nos tempos de Salomão,
entre israelitas e outros povos. Sem falar nas limpezas internas periódicas
levadas a efeito pelos fanáticos de todos os credos...
Uma vez li um conto de ficção científica em que o mundo era
dividido em três grandes zonas: uma de ateus, outra de cristãos, outra de
muçulmanos, envolvidas numa corrida espacial de colonização de planetas. Na
época, achei forçada essa divisão. Hoje, com a expansão religiosa que se
exprime, também, em templos e monumentos, penso que talvez seja o rumo que a
humanidade está tomando: como a milhares de anos atrás, o nome de Deus continua
mágico para justificar o injustificável.
Um comentário:
A verdade é que se em conhecimento e tecnologia demos um salto, na moral estamos patinando há milênios.
Se o ser humano não fosse bicho tão egoísta, o conhecimento seria mais partilhado, a educação universal. Para o bem e segurança de todos.
E então, verdades como "o reino dos céus está no meio de vós", ou na consciência, que um coração pacificado é fruto de uma consciência reta, seriam ensinadas nas escolas, com a ciência demonstrando através dos estudos do cérebro, além da correspondência disso com a saúde.
Há estudos que comprovam que o trabalho altruísta, voluntário, faz verdadeiros milagres no psiquismo humano. E novamente comprovado pela saúde.
Mas há muita gente, no mundo todo, lucrando com a ignorância.
A começar pelos nossos políticos e aqueles que tem insenção de impostos por causa da religião, esquecendo o "dai a César o que é de César".
Muito bom o texto. Parabéns,
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