Circula no Judiciário uma boa quantidade de processos
movidos por pessoas que querem tirar dos sites
de busca informações sobre si. Geralmente deslizes, devida ou indevidamente
gravados; ataques pessoais; críticas e até calúnias. Alguns têm obtido medidas
favoráveis. Mas elas são puro paliativo.
Porque as pessoas não esquecem. Esquecer é morrer: a humanidade
é o que é porque tem memória, aprende e transmite, mantém um processo contínuo
de acumulação de experiência que lhe permite a sobrevivência e a vida cada vez
mais longa.
Na Roma dos imperadores havia uma disposição chamada damnatio memoriae, a condenação da
lembrança, aplicada a todos os que eram considerados supercriminosos. Depois de
sua morte, geralmente por execução, apagava-se tudo o que se referia a eles:
raspavam-se moedas, quebravam-se estátuas, repintavam-se os quadros, riscava-se
o nome dos documentos, fossem estes de papiro, de pedra ou de bronze. Mas
controlar a memória é impossível: a imperatriz Messalina, sobre quem foi
aplicada a condenação, é ainda, dois mil anos após sua morte em 47, o
símbolo da sexualidade descontrolada. Três bustos feitos em pedaços e
recompostos por diligentes arqueólogos restauram seu rosto, com razoável grau
de certeza. O esquecimento póstumo talvez fosse até benéfico para ela e imagino
que, se essa adolescente mãe de dois filhos tivesse vivido mais duas décadas,
tentaria apagar o seu passado. Se vivesse hoje, tentaria tirar da internet no
mínimo a encenação de casamento que foi a causa próxima de sua morte.
Trago este assunto hoje porque volta à discussão e às pautas
de noticiário mais uma tentativa de controle dos conteúdos da internet, uma
nova roupagem para a antiquíssima luta entre a liberdade de expressão e a
censura, ou, como querem os mais moderados, entre o dizer e seus limites. Não
adianta. A China fez isso e gradativamente está perdendo a batalha.
O boato, que circulava ao pé do ouvido, hoje trafega em alta
velocidade pelo whatsapp. Continua
sendo um boato, com as consequências de qualquer boato, que podem ser resumidas
em dois ditados: “onde tem fumaça tem fogo” e “em tempo de guerra boato é
fato”. Claro que a fumaça pode ser de gelo seco, não de fogo; e que a maioria
dos boatos não se torna fato, sequer cria fatos novos. Mas em tempo de guerra, com
a censura atuando a pleno, boato é fato, mesmo: quando ninguém sabe com certeza
do que está acontecendo, é melhor se prevenir...
Há pessoas que, despreocupadas como o foi Messalina,
revelam-se completamente para os usuários dos canais de comunicação. Nudez de
corpo e nudez de alma. Muitas delas estão na justiça, agora, tentando conseguir
para si o esquecimento que os imperadores romanos impunham aos que consideravam
de exemplo danoso ao império. Melhor fariam se fossem contidos em seus atos e
dizeres. O Estado não é instância adequada para proteger imprudentes: basta um
pezinho para ele, e ele ocupa o corpo inteiro, ou seja, um simples precedente é
suficiente para instaurar censura. E a censura é o mal maior.
Quanto à calúnia, existem medidas legais contra ela desde
que sistemas jurídicos foram instituídos. Mas na raiz da calúnia está a
maledicência e esta nada nem ninguém seguram: acredito que os hominídeos já
grunhiam condenações entre si e processos do que hoje se chama “desconstrução
de imagem”, eufemismo para a maledicência objetivamente aplicada, que desdobra
falhas alheias até o ponto do insuportável, induzindo a calúnia, podem ser
encontrados na Bíblia, entre outras memórias humanas.
O curioso disso tudo é que a maioria das pessoas é esquecida
sumariamente duas gerações após sua morte. Pedir para ser esquecido antes de
morrer apenas antecipa o que fatalmente acontecerá – e dos atos e dizeres
praticados restará apenas o que a humanidade julgar necessário para seu
aprendizado.
2 comentários:
Gostei!
Mas depois desta eleição, tenho minhas dúvidas se não é conveniente termos um código de conduta para postagens na internet.
Bjs,
Cristina
Gostei. Infelizmente uma parcela de humanos desconstroi muitas vezes apenas por prazer.
Adenauer Góes.
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