quarta-feira, 30 de maio de 2007

O livreiro e a navalha

Acabo de ler “O livreiro de Cabul”, aliás bem depois que ele foi sensação.

É um livro de muitas leituras. Nem é muito bom – enquanto livro-reportagem está muito longe do mestre Trumann Capote; e, enquanto literatura, segue simplesmente a receita estrutural de uma obra. No entanto, é multifacetado: suscita vários ângulos de apreciação e discussão. A primeira delas, um tema que ultimamente anda pelas ruas da Venezuela e pelos tribunais brasileiros: os limites da ação de um repórter.

Diz a autora que falou com o livreiro, morou na casa dele, onde todos receberam ordens de atendê-la e dizer-lhe tudo o que queria saber. Depois, no livro, o crucifica perante o mundo – e, com isso, deve ter tornado sua vida insuportável na sociedade onde ele vive.

Ela usa qualificativos, coisa que o objetivo Capote não faria. Torna o livro uma crítica à pessoa do livreiro, ou seja, reduz o que seria a revelação de uma sociedade fechada e fundamentalista, a uma crítica individual. Do ponto de vista ético, é tão sujo como escutar atrás da porta a conversa do vizinho para ter poder sobre ele. O lendário Poirot de Agatha Christie afirmava que escutaria atrás da porta quantas vezes fosse necessário para impedir que um assassino ficasse solto – era uma questão de avaliar o mal maior. A autora do “Livreiro” também pode dizer que denunciar a situação da mulher na sociedade afegã justifica o comportamento pouco ético. Mas havia alternativa de procedimento, no caso dela – bastava que sua ambição fosse menor, bastava manter-se como repórter e reproduzir as histórias que lhe foram contadas, narrar as que vivera. Se o qualificativo ficasse por conta do leitor, o livreiro não ficaria exposto na sociedade onde vive, e, provavelmente, a repercussão do livro no próprio Afeganistão seria maior.

Ela teria feito um livro melhor e eticamente correto.

Esta questão me lembra um incidente que testemunhei há alguns anos, na apresentação de uma pesquisa. O pesquisador, crente que estava sendo magnânimo, havia trazido os pesquisados para avaliarem o resultado. Ele fez a apresentação, e um dos comunitários reagiu: ele não gostou nem um pouquinho de se ver retratado daquela maneira, e questionou o fato de ter a comunidade acolhido e cooperado com o pesquisador para ser depois tão duramente criticada. Complicou um pouco o fato de que a pesquisa estava muito acima da capacidade de entendimento do comunitário; mas o que ele entendeu foi suficiente para acusar o pesquisador de má-fé, de usar a comunidade em proveito próprio. Ele tinha razão: o pesquisador deveria ter mantido a distância social, levado a própria comida e morado numa casa alugada. Ou, então, explicar desde o início que não tinha compromissos com as pessoas daquela comunidade.

Jornalistas, policiais, médicos e, algumas vezes, pesquisadores, usam sua condição excepcional para chegar a lugares onde não entrariam em sua condição de cidadãos. É por isso que divulgar grampos pela televisão é uma atitude discutível. “Para pressionar o Judiciário”, dizem alguns policiais. “A população tem o direito de saber”, dizem alguns repórteres. Mas direito de saber o que? Respondo: geralmente, aquilo que o jornalista decide que deve saber, porque o volume de informações é superior aos espaços disponíveis para veiculação.

E aí, o direito de saber pode ser um belo de um escândalo proporcionado por outra pessoa com acesso privilegiado, o policial. E aí, também, a exposição pública do suspeito, acusado, seja lá o título que tenha um não-condenado já vale por um julgamento – vai acompanhá-lo pela vida toda, como uma sombra.

A ética profissional – qualquer profissão que seja – manda que não se use o privilégio profissional em proveito próprio ou de terceiros; manda que se respeite o cliente (no caso do jornalista e do policial, a sociedade toda); manda que se cumpra a lei vigente. Revelar o que está em segredo pode ser necessário e louvável, quando a causa é grande e a alma não é pequena. Mas revelar apenas pelo escândalo não é correto. Trechos de conversa fora de contexto, grampos legais ou ilegais prematuramente divulgados, só complicam: tumultuam julgamentos e podem levar pessoas a uma execração pública injusta, pelo simples fato de que elas não se defenderam.

De Cabul a Brasília, a distância geográfica é enorme. Mas a ética humana é uma só: aqui como lá, vale o mesmo. Para operações navalha ou para livreiros.