quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Crônica de quaresma

Desculpem-me a ausência, mas tive motivos fortes.
Tentarei ter uma freqüência mais regular; mas quarenta anos de trabalho assalariado deixam a sua marca – e a minha, é olhar com um tédio enorme tudo o que me lembra emprego. No entanto, escrever é minha paixão, e dela não escapo. Por isso, sempre acabo voltando ao teclado, e, de um jeito ou de outro, mantendo-me ligada ao que foi meu trabalho de toda a vida.
Não que eu goste disso. Olho espantada pessoas de minha geração que me afirmam que não podem parar de trabalhar. Dizem com orgulho que continuam trabalhando. Conheço professores que dão aulas quase de graça para continuar no magistério, e profissionais que aceitam empregos que não pagam a eles a metade do que valem.
Às vezes imagino que essas pessoas restringiram seu universo ao trabalho. Ignoram o prazer de simplesmente ouvir uma boa música – ouvir bem uma música é desligar-se e deixar-se penetrar por ela, o que demanda pelo menos cinco minutos de total alheamento do que está em torno. Ou de contemplar um quadro, uma escultura, deixar-se levar pelas curvas e pelos contrastes, pela expressão que emana das tintas e formas.
Há tanto o que ver, tanto o que ouvir! Todo o tempo de uma vida seria insuficiente para embalar-se nos delicados traços dos miniaturistas, ou nas explosões modernistas, ou apenas no capítulo “cordas” da música.
Depois de quarenta anos trabalhando, inserida na máquina produtiva contemporânea, continuar porque? Para sentir-se no contexto? Para contribuir? Mas contribuir com o que, para quem? Para acreditar-se partícipe do todo social?
Ora, há muitos meandros e desvãos no todo social – não apenas o trabalho, tornado hoje uma engrenagem formidável onde você, faça o que fizer, será apenas uma peça pequena. Se você precisa de dinheiro, é diferente – então não é uma questão de orgulho, mas de necessidade. Aí, é de lamentar, não de se orgulhar.
Escrever estas crônicas é um pouco diferente – deixar as idéias escorrerem através dos dedos e se espalharem no visor, procurar as palavras certas, organizá-las, retirar as que são excessivas e acrescentar as indispensáveis – é um delicado prazer, embora traga o laivo do trabalho diuturno do jornalismo. Mesmo assim, ao abrir uma página assume-se um compromisso – e é isto, que lembra emprego, que lembra prazo, que me enche de tédio. Às vezes, tédio suficiente para que a idéia morra no nascedouro.
Além disso, estou escrevendo depois do carnaval. Aliás, depois de cinco dias de chuva marcados como carnaval no calendário. Sem-graça. Blocos de sujos, mascarados ou não, caminhando – quem tem coragem de sair aos pulos nas poças d’água, se já deixou de ser criança faz tempo? Ou levar seu cavaquinho, seu tarol ou seu pandeiro para a rua? Nem a danada da cachaça conseguiu vencer as toneladas de água que desabaram sobre Belém nestes dias. Nos desfiles, fantasias se desmancharam sob a força da chuva, as alegorias murchas, ensopadas.
Mesmo que os desfiles tivessem acontecido pela manhã – o que defendo, porque é impossível que não chova nas noites de fevereiro em Belém – teriam sido sob chuva.
Por tudo isso, esta é uma crônica de quaresma. Mas, pelo menos, não saiu rabugenta.