segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os filhos d'algo

A expressão portuguesa é antiga, medieval. Era usada como meio prático de designar a nobreza sem título. E, também, como alerta pra um tratamento específico para aquela pessoa – afinal, era um filho d’algo, amanhã poderia ser algo.

Depois, esta expressão virou palavra – fidalgo – que foi incorporada aos almanaques da nobreza e, mais tarde, com a extinção gradativa da aristocracia, ganhou outro significado, o de pessoa gentil, educada, cortês. E gerou outro substantivo: fidalguia, aquela virtude que consiste em se ter tanta atenção com os outros que se é capaz de até antecipar seus desejos.

E porque estou eu falando de coisa tão antiga?

É que me veio a cabeça que a alta burguesia repete em muitas coisas a velha aristocracia quando vejo um jovem engenheiro recém formado responsável por um edifício de 34 andares na firma de construção do pai. É um filho d’algo, sem dúvida. Jamais seu pai entregaria a responsabilidade de uma obra desse porte a qualquer outro engenheiro com um ano de formatura.

Nas publicações oficiais e nos relatórios empresariais encontrou outros filhos d’algo, facilmente identificáveis pelos sobrenomes. Jovens, inexperientes, assumem cargos e diretorias saídos quase que diretamente das Universidades. “Tem o pai por trás”, me dizem, ou, mais raramente, “a mãe”, querendo com isso significar que a consultoria grátis, ou o acesso a quem manda de fato é uma solução.

Pois é, mas, hoje como na Idade Média, um dia a casa pode cair.

O edifício de que o jovem engenheiro era responsável, ruiu.

Na Idade Média, quando um filho d’algo caía prisioneiro do inimigo – lembrem-se que a guerra era a principal atividade deles – havia que esperar que a família providenciasse o resgate. Eram prisioneiros em locais especiais: castelos, geralmente, com direito a tratamento nobre (não há certa analogia com as prisões especiais de hoje, para quem tem patente ou nível superior?). Chegar ao resgate levava muito tempo: às vezes mais de dez anos. Muitas vezes, quando as negociações se concluíam, o resgatado já era só a sombra de si mesmo, até porque, naquela época, o tempo de vida era pouco.

Mais ou menos o que vai acontecer com o jovem engenheiro. A família terá que resgatá-lo: vai gastar muito com a defesa, porque o processo aberto para apurar responsabilidades durará, com certeza, mais de década. Talvez consiga recuperar seu filho d’algo; talvez não. Mas o sistema, que concede essas vantagens também faz seu preço. E ai de quem não paga!

Nada tenho contra jovens executivos, pelo contrário. Mas tomo como referência o exemplo de Júlio de Mesquita, o fundador do “Estadão”. Seus filhos, seus herdeiros, assumiram as diretorias do jornal, cada qual por sua vez – mas depois de percorrer todos os setores, trabalhando como quase qualquer um, sujeitos a horários, disciplina e chefes. Fizeram o percurso da carreira: podiam entender o valor de uma diretoria.

Jovens que se destacam pelo talento, pela criatividade, pela inteligência, pela ousadia, abrem suas próprias portas. Ser filho d’algo às vezes facilita, às vezes atrapalha: não é o essencial para seu sucesso ou desempenho. Eles formam a verdadeira elite, aquela que soma inspiração com transpiração para chegar a resultados.

Como antigamente: D. Henrique, o navegador, era um filho d’algo, quinto filho do rei de Portugal. De seus cinco outros irmãos que chegaram à idade adulta, um morreu refém do inimigo, porque o resgate não chegou a tempo, e outro foi rei. Mas foi ele quem inscreveu seu nome em maiúsculas na História, no capítulo dos grandes descobrimentos.