O decreto 8.243 seria mais um entre muitos que a presidente
assina diariamente se não fosse esquisito. Num resumo de três linhas, esse
decreto cria uma estrutura federal de conselhos deliberativos e uma ouvidoria
geral da União, destinadas a organizar e controlar políticas públicas, sob o
pomposo título de Sistema Nacional de Participação Social.
O decreto é esquisito por várias razões. A primeira delas é
a incoerência. Quando na oposição, uma das principais bandeiras da esquerda e,
como o PT era de esquerda, desse partido também, era justamente a criação de
conselhos deliberativos em todas as estruturas de Estado. Ao chegar ao poder, o
PT não criou conselhos deliberativos, criou fóruns. A razão é muito simples: o
conselho deliberativo tem poder de mando, determina onde e como deve ser gasto
o dinheiro público. O que entra em conflito com tudo: a legislação, que, em
muitos casos, é detalhista quanto aos gastos públicos; o poder legislativo, a
quem compete a definição de gastos por meio do orçamento; e o próprio
executivo, frequentemente travado por uma oposição caseira e intestina, nem
sempre bem intencionada. O fórum é consultor. As pessoas opinam, mas a
competência da decisão é preservada para quem de direito.
Agora, em fim de governo, Dilma resolve ressuscitar os
conselhos deliberativos.
A segunda esquisitice vem da participação social. O uso desta expressão é estranha. Pois,
afinal, a maior participação social, a essência democrática, o eixo onde
repousam os valores de um país não autoritário é o voto universal. Ao votar, o
eleitor delega ao escolhido – seja o executivo, seja o seu representante no
parlamento – a tarefa de se informar, avaliar, aprovar ou desaprovar todas as
propostas que envolvem o viver em sociedade. O eleitor não terá tempo de se
debruçar sobre uma proposta de usina nuclear, por exemplo, e nem conhecimento
técnico para aprová-la ou desaprová-la. Seu representante é pago para procurar
opiniões, assessorias, informações, avaliar o benefício da energia gerada e o
custo ambiental e, finalmente, tomar uma decisão. O país inteiro se envolveu na
discussão em torno dos campos de petróleo do pré-sal. Milhares de pessoas deram
opinião, usando o seguro canal do Congresso. Isso é participação social num
país continental como o nosso; a decisão sobre o pré-sal foi tomada e executada
com consciência democrática. Ademais, as pessoas realmente querem sair de seus
cuidados para dar palpites na coisa pública? O vazio das audiências públicas,
hoje obrigatórias para vários temas, particularmente o licenciamento ambiental;
e as eleições para os conselhos tutelares mostram que não (aposto que a maioria
das pessoas que estão lendo esta crônica nem sabe que existem eleições para a
escolha de membros dos conselhos tutelares). O exercício político é a verdadeira
participação social. Tentar reduzir esse exercício a um sistema é demonstrar um desconhecimento profundo do funcionamento
da democracia. Ou coisa pior – negá-la.
Às vésperas de uma eleição, o que Dilma quer com isso?
Acalmar setores de esquerda para viabilizar alianças ou esvaziar discursos, ou
talvez garantir espaços no próximo governo que não seja seu?
A terceira esquisitice vem do instrumento legal utilizado.
Um decreto. Parece até que voltamos ao tempo do decreto-lei, esta aberração da
ditadura. Para fazer caber o tal sistema num decreto, ele foi restringido aos
órgãos do governo federal. E, aí, ignorando solenemente as instâncias parlamentares,
cria-se, paralelamente a cada órgão federal, conferências, conselhos,
comissões, mesas de negociação e que tais – uma superestrutura formidável de
despesas. Essa superestrutura já funciona em dois setores do governo: os
ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. Comissões, conferência nacional e
audiências públicas. O resultado prático e objetivo? Toneladas de papel,
milhões de horas de reunião e uma ou outra norma realmente importante no meio
de muita enrolação. Porque há limites administrativos que não podem ser
ultrapassados, e o principal deles é financeiro: qualquer um de nós,
governantes inclusive, adoraria que o país estivesse interligado por ótimas
estradas, portos, terminais, aeroportos, fibra ótica, navegação segura. Mas o
paciente é grande e o lençol é curto. Não dá para todos de uma só vez.
Um decreto estabelecer participação social? Excluindo da
discussão, de cara, a representação legítima da sociedade, que é o Congresso
Nacional? Excluindo da discussão, de cara, aquilo que o próprio decreto define
como sociedade civil: “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais
institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”.
(Aliás, uma outra esquisitice: a palavra “coletivos”, que há não muito tempo apelidava
ônibus, e, agora, pelo visto, designa outra coisa que não sei o que é).
Há mais um bocado de esquisitices de conteúdo nesse decreto;
mas não vou entrar nesse conteúdo, porque é assunto para juristas. Só volto a
perguntar: porque agora? Porque só agora?
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Há uma petição para o Senado pedindo a aprovação de projeto do senador Álvaro Dias para que o Congresso declare nulo o decreto. Para assinar, o link é: http://www.citizengo.org.