domingo, 19 de dezembro de 2010

Natal, 2010

Mais uma vez é Natal, e barbudos fantasiados preenchem de concretude a imaginação das crianças. Os sininhos tocam, neve de mentirinha cai nos cartões eletrônicos, chegam as listas, ah, as listas: gêneros para as cestas católicas, protestantes, espíritas, filantrópicas e nem tanto; dinheiro para as caixinhas dos porteiros, dos lixeiros, dos empregados do açougue e da padaria; brinquedos para as promoções das ongs, e você não vai ver a apresentação das crianças do balé?

Mais uma vez é Natal, e tenho a impressão que a caridade, ela também, foi industrializada, massificada, despersonalizada: chamam isso de redes sociais, essa coisa de anônimos para anônimos, o horror dos eventos de entrega de brinquedos – uma boneca para a menina, um carrinho para o menino – e o pai ou a mãe na fila com a criança, e pessoas de boa vontade, com sorrisos de beatitude organizando a fila e repreendendo, e cadê o olho brilhante da criança abrindo seu pacote na manhãzinha, com o cheiro do café e o sorriso terno da mãe anunciando o Natal?

Mais uma vez é Natal, e no correio eletrônico as caprichadas apresentações recheadas de pensamentos nobres sobre Amizade, Amor, Agradecimento, Prece, Jesus, se sucedem ao som inevitável da Ave Maria, Gounod ou Schubert, em megabaites e megabaites de bons sentimentos e erros gramaticais, e no correio comum cartões recortados em forma de presentes oferecem juros estratosféricos e objetos desnecessários, com mensagens otimistas disfarçando a rapina.

Mais uma vez é Natal e os bazares se abrem, mas os bordados e rendas cederam espaço para as pinturas em tons fortes, cítricos, rápidos e baratos, e a beleza vai buscar refúgio nas joalherias, mais e mais inacessível, ensurdecida pelas músicas em duas escalas e duas vozes, três notas acima, três notas abaixo, a percussão fingindo qualidade e animação, purpurina sonora que desaparece no primeiro movimento, deixando somente feias marcas na memória.

Mais uma vez é Natal e os olhos dos ladrões com e sem gravata se arregalam diante do rio de dinheiro que corre, jorrando dos bancos e espraiando-se nas lojas, nas bancas de camelôs, nas barracas de feira e nas sorveterias, e é preciso participar, ir buscar, tomar e levar, não importa como, pode ser com um buraco de bala e pode ser com um buraco no bolso do cliente, tem que ser agora porque logo, logo, este rio voltará ao seu leito e então será a dureza de sempre.

Mais uma vez é Natal e os espaços se enchem de estórias de boas ações e também das boas ações com que as pessoas se absolvem dos malfeitos do ano todo, e nos olhamos uns aos outros admirando a espécie humana, tão generosa e tão nobre, tão rica de bem dizeres, ah, sim, podemos até considerar pitoresco o fato de que as luzes coloridas se refletem nas ruas inundadas de água represada e suja pelo descaso com o saneamento básico, e podemos olhar com beatitude corais cantando doces músicas de confraternização.

Mais uma vez é Natal e colegas de trabalho trocam seus ressentimentos junto com presentinhos de baixo valor, com tapinhas nas costas e murmúrios por detrás delas, alguém fazendo karaokê e os brindes dos fornecedores, em pacotes fechados, acendendo desejos entre as mesas.

Mais uma vez o Natal chegou com seu cortejo sentimental e sua crueldade difusa, risos e lágrimas entre luzes e ceias, entre orações e cânticos, entre incensos e velas, entre saudades e alegrias.

E se não chegasse, nós seríamos, com certeza, muito, muito piores do que somos. Por isso, armemos árvores e presépios e façamos esta noite feliz.

E em paz.

São meus votos, leitor.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Está certo, isso?

“A mídia é afrodisíaca”, disse um dia destes o deputado Jáder Barbalho, que já experimentou mídias de todos os quilates e de todos os matizes.

A frase me veio a cabeça ao acompanhar, como o país todo, aliás, as operações do morro do Alemão, no Rio de Janeiro.

Quem foi o Alemão? Um traficante.

Terra esquisita, em que traficante dá nome a um... bairro? Cidade? Na falta de denominação, chama-se complexo. Geralmente os topônimos surgem em decorrência de homenagens, tradição; no caso, o poderio do Alemão foi tanto que batizou a cidade.

Porque é uma cidade, com 400 mil habitantes, segundo disseram.

Mas, voltando à mídia. As poses para fotos ocuparam boa parte dos espaços. O aparato mobilizado ecoou longe, mas que coisa esquisita: usam-se tanques, geralmente, em guerras. Guerras pressupõem inimigos. Brasileiros, inimigos de brasileiros? Inimigos?

Tem-se falado de “ocupação de território”. Mas o território é Brasil! Ali também tremulam bandeiras verde-amarelas nas grandes festas! Se ao menos dissessem que era uma questão de depor um governo paralelo, estariam mais perto da verdade, e, ainda assim, bem longe dela. Porque o tráfico não governa, nem ocupa territórios. O tráfico ocupa espaços sociais, atualmente transnacionais.

Foram alguns dias de exibição midiática. Se deu certo, o tempo dirá. Espero, sinceramente, que tenha valido a pena, que a espinha dorsal do tráfico no Rio tenha sido quebrada. Falo isso porque o Rio é lindo, e, como qualquer um, eu amo essa cidade.

Mas o saldo da operação até agora é um bocado de sangue derramado e algumas toneladas de droga. Cadê os chefões? Cadê, sobretudo, os protetores dos chefões?
Trinta mulheres exaustas pintaram a cara de branco e tiveram coragem de reclamar, na porta da favela. Porque os dois ou três mil homens mobilizados estão revistando as casas, sem pedir licença. Não interessa quem é quem.

Ao que me conste, na plenitude de um estado de direito, isso se chama invasão de domicílio. Pode-se dizer: eles estão atrás dos bandidos escondidos. Sim, mas quem é bandido e quem não é? Eu me pergunto se ousariam fazer isso em Ipanema. Revistar os apartamentos, um a um, arrombando portas e encostando todo mundo na parede.

Porque não se estabeleceu estado de defesa, previsto na Constituição, para casos como este? O estado de defesa tem regras claras. Os governos, tanto o federal como o estadual, atropelaram a legalidade. Porque? Da mesma forma como se transferiram presos, a medida legal poderia ter sido tomada, da noite para o dia. Não foi. O que se testemunha é o afrodisíaco virando as cabeças. Uma população apanhada de surpresa num fogo cruzado real.

Olho a foto de um pai abraçado ao seu bebê, tentando proteger a criança dos tiros com as próprias costas e com as mãos. Se a criança foi morta, ela é baixa de guerra?

Mas que guerra? De brasileiros ditos bons contra brasileiros ditos maus? E quem é que separa o joio do trigo?

Alguns de vocês que me lêem vão criticar, por certo – afinal, há um delírio afrodisíaco da mídia. Mas o terror do banditismo não justifica o terror das assim chamadas forças de segurança, ocultado pelas explicações sofre o funcionamento de blindados e coisas semelhantes.

Em algum momento os dois ou três mil homens que ocuparam a favela irão para casa. E então, as centenas de traficantes, ou empregados do tráfico, que a televisão mostrou em fuga desabalada, voltarão para casa. Ou irão para outra favela, outra cidade, outro bairro. E o ciclo começará de novo, aqui ou ali...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Tiririca, boa sorte!

Ele é o legítimo representante de alguns milhões de brasileiros. Talvez nem dos que votaram nele, mas dos milhões de brasileiros semianalfabetos, ou, na linguagem politicamente correta atual, analfabetos funcionais.

Lembra-me o cacique Juruna, eleito pelo Rio de Janeiro politizado, para ser o primeiro índio no Congresso Nacional – seus representados eram os índios, que não votavam; então o Rio de Janeiro cedeu uma vaga para eles. Juruna andava com um gravador pendurado no pescoço para testemunhar suas audiências. Sua presença no Congresso – determinou uma alteração substancial na política indigenista. Principalmente porque os índios passaram a ser vistos pela população: aquelas imagens exóticas das revistas foram aos poucos substituídas pelas imagens dramáticas e contemporâneas. Ele conseguiu apoio suficiente no Congresso para trazer para as mesas de negociação a questão das terras indígenas.

Era um só índio, eleito por não-índios, cumpriu um só mandato e fez enorme diferença até ser politicamente devorado.

Se Tiririca vai fazer ou não diferença, não sei. Mas ele é um homem que batalha a vida, igual a milhões de outros espalhados pelo Brasil, que não votaram nele mas que vivem o drama das poucas letras.

Eu vi a cartilha que ele distribuiu, e gostei. Simples, fácil, pobre, direta e decente. Se essa vai ser sua marca, ótimo: o elitista Mercadante, que mandou tirar seu nome da propaganda dele, terá que enfrentá-lo.

Se o alcançasse, diria a Tiririca que marque o seu mandato em algumas coisas essenciais para esse povo de analfabetos funcionais: sinalização gráfica, por exemplo, nos transportes públicos (é terrível a dificuldade que um analfabeto desses tem para pegar um ônibus); prioridade para o combate ao analfabetismo, hoje chamado sofisticadamente de Programa EJA (Educação de Jovens e Adultos), relegado a segundo plano governo após governo; mídia de rádio em massa para prevenção de doenças; e muitas outras coisas pelas quais lutar. E mais: contrate um tradutor de vernáculo, ou seja, uma pessoa capaz de lhe explicar a complicada linguagem burocrática.

Como não o alcanço, limito-me a desejar-lhe sorte melhor que a do Juruna que, ao perder a eleição, perdeu também a tribo e ficou num desvão entre a floresta e a cidade, numa velhice miserável até morrer. É extremamente difícil o combate com armas desiguais, e nem sempre se tem a pontaria de um Davi, que derrubou Golias com uma pedrada (mas que teve que usar a espada do gigante para matá-lo, ou seja: teve que armar-se no padrão do outro). Não ler fluentemente, e escrever com dificuldade é como enfrentar espadachins com uma atiradeira na mão.

Por outro lado, espadachins podem ser detidos pela sabedoria, mesmo que esta use pedras. Os romanos aprenderam isso da forma mais dura e literal, na guerra contra Cartago, de onde o sábio Arquimedes lhes atirava pedras com tanta sabedoria que afundava as galeras antes que chegassem ao porto. Mas era Arquimedes, não era Tiririca: este terá que se ater com a sabedoria comum que, se nos deu Carolina Maria de Jesus (“Quarto de Despejo”) e Cartola, ainda não nos mostrou ninguém capaz de escalar as muralhas do sistema sem a escada do alfabeto.

Não estranhem, meus amigos, estas linhas. Eu não tenho vergonha de ter o Tiririca no Congresso: ele é um pedaço grande do Brasil. Tenho vergonha é da existência desse pedaço, de seu tamanho e da nossa incompetência em fazer com que renasça na leitura.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Oh, liberdade!

O poema a seguir, que traduzi livremente, é a versão francesa para o coro dos escravos da ópera Nabuco, de Verdi – ária mundialmente conhecida como “Va, pensiero”.

Está aqui porque quero falar dessas eleições que acabaram de acontecer. Porque finalmente elas foram inteira, total, integralmente livres.

Muitos encontraram nelas diversos problemas éticos. Eu também, mas nada além do que se pratica todos os dias no Brasil: o político que coloca a mulher para continuar governando através dela; a legenda que aproveita a popularidade de um comunicador (nesta eleição foi a vez do Tiririca) para eleger terceiros; os instrumentos da baixaria, que existem em toda parte em pequena escala.

Mas, tirando o argueiro do olho, poderemos contemplar também o povo erguendo sua voz, em campanhas – algumas podem até ser consideradas inoportunas - e obrigando os candidatos a ouvir. Podemos sorrir felizes do caldeirão na internet, rir dos disparates da campanha na tevê. Se nos posicionamos mais distantes, podemos avaliar o poderoso duelo que se travou de norte a sul do país – pela primeira vez sem dicotomias, e pela primeira vez sem medo algum.

Foi para isso, exatamente para isso que lutamos tanto. Então meu pensamento vai nas asas douradas de Verdi com as palavras de Claude Lemesle - ao lado, na voz de Nana Moskouri:

Quando tu cantas, eu canto contigo, liberdade!
Quando tu choras, eu choro também tuas dores!
Quando tu tremes, eu rezo por ti, liberdade!
Na alegria ou nas lágrimas eu te amo.
Lembras-te dos dias de tua miséria,
Meu país, teus barcos eram galeras.

Quando tu cantas, eu canto contigo, liberdade!
E quando estás ausente, eu te espero.
Quem és tu? Religião ou simples realidade?
Uma idéia de um revolucionário?
Eu creio que tu és a única verdade,
A nobreza de nossa humanidade
Eu compreendo que alguém morra para te defender,
Que alguém passe sua vida te esperando.

Quando tu cantas, eu canto contigo, liberdade!
Na alegria ou nas lágrimas eu te amo.
As canções da esperança têm teu nome e tua voz
O caminho da História nos conduzirá para ti,
Liberdade, liberdade!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Questão de ficha?

A lei da ficha limpa é, antes de mais nada e para quem quiser ouvir, um clamor da sociedade contra a ineficácia do Judiciário. Porque ela seria absolutamente desnecessária se Jáder, por exemplo, já tivesse sido julgado por um processo que corre há mais de dez anos. Ou seja: se entre o inquérito e a solução dele – condenação ou absolvição – não se passasse uma eternidade.
Mas o Judiciário não se dá a respeito. Neste exato momento jogou no colo do presidente da República uma decisão que deveria ser exclusivamente sua. Um presidente que está liderando uma campanha eleitoral e não faz nenhum mistério disso. Pendurados na caneta estão diversos eleitos, o que torna a decisão de não decidir, tomada pelo Supremo, um escândalo.
Imaginem vocês se um grupo de policiais que negociasse a entrega de reféns, decidisse que estavam empatados em como agir, e seria preciso um voto de desempate... A comparação é dramática, mas essencialmente trata-se da mesma coisa. É preciso libertar os eleitores, reféns de corruptos – e só o Judiciário pode dizer quais são e quais não são corruptos. Se o Judiciário não diz, resta forçar a barra com a ficha limpa. Mas o Judiciário se tornou granítico: nem se toca, e continua não decidindo.
Um bom juiz, um juiz de verdade, que não se limita a ser um aplicador de lei e a vistoriar a formalidade dos processos, faz muita diferença. Conheci e conheço alguns deste escopo; juízes de direito que pacificaram cidades e regiões, juízes do trabalho que reconstruíram instituições, juízes da infância e da adolescência que recuperavam infratores, juízes de execuções penais que humanizaram prisões. Juízes que exercem sua autoridade social e aquilo que é o atributo mais precioso da magistratura e, nos últimos tempos, anda muito ignorado: o livre convencimento.
A questão não é de ficha, portanto, mas do que conduziu a ela. Porque boa parte da violência com que hoje nos defrontamos se origina exatamente da falta de eficiência do Judiciário.
Tenho ouvido muitas pessoas dizerem que o Estatuto da Criança e do Adolescente favorece a criminalidade, porque com o infrator “não pega nada”. Mas não é a lei que é ruim; é a execução da lei. As dependências penais vivem cheias de presos chamados temporários: eles aguardam julgamento e, quando o tempo de espera é maior do que a pena aplicável ao crime, eles são soltos. Essas pessoas cumprem penas sem julgamento. Se forem inocentes, azar deles... O que para mim é o escândalo maior de todos. De que vale a presunção de inocência, tão alegada agora nos debates da ficha limpa, para essas pessoas que tiveram anos de sua vida tragados na cadeia, sem culpa alguma? E que saem sem reabilitação, sem que possam dizer: vejam, eu fui acusado injustamente!?
As penas cominadas para o uso de adolescentes em delitos são pesadas; envolvem corrupção e exposição ao perigo; seriam suficientes para coibir o uso de pivetes pelas quadrilhas. Mas cadê sua aplicação? Os presos temporários, se criminosos profissionais, se beneficiam da ausência de julgamento com a mesma desenvoltura dos candidatos culpados que não foram condenados: saem porque a preventiva não foi decretada.
A lentidão acumula processos; as torres de recursos atravancam tudo. O acúmulo gera mais lentidão, e assim por diante, numa espiral perversa, sempre para pior.
A lei da ficha limpa na verdade é uma advertência – que, ao que parece, o Judiciário não entendeu.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Jatene e Serra (declaração de voto)

No ano em que completei 14 anos, dois fatos importantes me marcaram para toda vida. Em uniforme de colégio, de saia comprida e meias curtas, à noitinha, com medo e emoção, eu participava, na escadinha do cais do porto, de um primeiro comício. Era em defesa da Petrobrás. Pouco depois também conseguia meu primeiro trabalho regular: correção de textos escritos em português por um cientista alemão, em troca de um curso de datilografia, que não podia pagar. Seis meses de trabalho duro.

Desde então não parei na militância e no trabalho. A lista de atividades é longa e não vem ao caso descrevê-la. Este ano completei 50 anos de militância e, finalmente, livrei-me dos patrões, tanto os públicos, como os privados.

Como não sou de omissões, escolhi um partido político. Minha geração lutou muito, sofreu, e muitos morreram para garantir o direito de voto e de livre escolha para todos. Nós sabemos o quanto custa não ter.

Desde então, tenho sofrido patrulhamentos de muitos que, naquela época, dividiam o pão e o medo, e de outros que, nestas épocas recentes, usufruem a liberdade conquistada. Alguns se recusam até reconhecer minha participação naquelas lutas... Como se estar num partido que não continue atirando pedras a esmo, sem compromisso de construção, fosse um delito, um crime, uma traição.

Mas foi com enorme prazer que vi, finalmente, uma disputa eleitoral em que os candidatos a presidente tinham passado limpo, honrado, militante – foi a disputa entre Fernando Henrique e Lula. Nada de Collor, Sarney etc. À época, participando da campanha de Fernando Henrique, pensava que, qualquer que fosse o resultado, seria um avanço para o país.

Continuo certa de que foi. Fernando Henrique recompôs o Brasil, enfrentando uma oposição dura e leviana. Mais tarde conclui que a democracia também ensina a fazer oposição. Aquelas pessoas não sabiam: eram habituadas aos combates, não às discussões. Eram impermeáveis ao diálogo; dividiam o mundo em duas partes, a “nossa” e a “deles”. Brizola foi uma exceção. Um oposicionista capaz de conversar. Hoje, querem riscar Brizola da História do Brasil.

No Pará, Almir Gabriel, como vários outros governadores que assumiram então, encontrou o Estado esfacelado. Muitos de nós trabalhamos sem nomeação, àquela época, porque o Governo do Estado não tinha dinheiro nem crédito e antes de qualquer coisa era preciso negociar as dívidas, escalonar, sair do sufoco.

Algumas pessoas foram essenciais nesse processo. O próprio Fernando Henrique, com um apoio discreto e interessado; jogando todo o poderio de São Paulo em favor do Pará, José Serra e Mário Covas. E, indo e vindo de Brasília, discutindo com credores a enorme dívida do Estado, procurando aliados, assumindo compromissos, Simão Jatene.

Em três meses, a administração começou a fluir, contando centavos. As condições da recomposição eram extremamente duras. A oposição petista, que insultara Fernando Henrique no dia da posse e atirara pedras no governador Mário Covas, aproveitou-se da fragilidade e falta de recursos do governo para transformar o massacre de Eldorado num episódio com contornos muito maiores do que realmente era. Apesar disso – que provocou, aliás, um retraimento de investidores, por conta da imagem de que o Pará era um caldeirão prestes a explodir, o que precisou de convencimento até pessoal para mudar o quadro – a recuperação do Pará foi construída.

O PT exigia conselhos deliberativos em todas as instâncias de governo. Conselhos com poderes de cercear o executivo. Exigia eleições em toda parte. Exigia padrões de vida europeus – sem nem querer saber de onde vinha o dinheiro.

Nenhum membro do PT mexeu uma palha para recuperar o Pará. Quando eles podiam, arrumavam mais palha para complicar.

Lula e Ana Júlia assumiram os respectivos governos com a moeda estável, as contas em dia, os impostos suportáveis, reserva financeira para as primeiras folhas de pagamento, e o trem no trilho.

E aí, o PT atirou-se desbragamente à demagogia. Os conselhos viraram Fóruns, esvaziados. O governo passou a girar em torno das multidões de eleitores. O dinheiro – é, o dinheiro – passou a centralizar todas as decisões. Um núcleo econômico mais conservador que o de Fernando Henrique se encarregou de levar à escala de massa a filantropia dos grandes milionários. Pouco importa se a renda continua cada vez mais concentrada, se a desigualdade regional continua mais profunda. Os petistas dirão que a miséria diminuiu, e é verdade. O que não dizem, é que a classe média também diminuiu, sufocada pelos impostos, e o topo da pirâmide continua igual: os mesmos ricos, com mais dinheiro ainda.

Ouço Dilma na tevê, defendendo uma reforma tributária cruel, que aumenta a carga sobre os consumidores. Explicando que, ao distribuir dinheiro para os pobres, o governo move a máquina do consumo e dizendo que isso é crescimento econômico, no modelo capitalista mais primário e duro. Ela resume com precisão o pensamento do PT, e, com isso, desvenda as razões do apoio que recebe do grande capital: o sonho dourado tornado realidade, conservadorismo vestido de cor-de-rosa. O que eles não conseguiram com Collor, conseguiram com Lula: o país vive o mais selvagem capitalismo, onde os excluídos são mortos, e está feliz.

No último ano de seu governo, Lula visita e reúne com os piores ditadores do mundo. Posa para foto ao lado de sanguinários fundamentalistas, que matam mulheres e chicoteiam gays. Renega os cristãos, que o apoiaram quando perseguido, em prol de uma falsa liberalidade. Alia-se com toda a banda podre do país e garante imunidades. Sua mulher, deslumbrada, não tem vergonha de pedir cidadania italiana para os netos...

Nos oito anos do governo Lula, o Norte foi descartado. Ele não tem multidões de eleitores... A pressão do grande capital instalado em Manaus levou algumas migalhas para o Amazonas. Um recente discurso do próprio Lula, com críticas ferozes à legislação ambiental, e a ausência de propostas em favor do meio ambiente, no programa de Dilma, retratam como eles vêem a Amazônia: o grande território a ser explorado até a última espinha de peixe.

Jatene enfrentou quatro anos de governo Lula, tratado como oposição nortista, ou seja – o último dos últimos da fila. No entanto, o Pará continuou o crescimento econômico acima da média brasileira. Em três anos, Ana Julia conseguiu reduzir o crescimento para abaixo da média.

Eis porque, da mesma forma como enfrentei o golpe militar, chamado de “revolução” por milhões de brasileiros que festejavam as tropas com chuvas de papel picado e aplausos nas ruas – o que não aconteceu apenas em Copacabana – enfrento hoje a miragem ilusionista do lulismo. Pouco importa se as fardas verdes foram substituídas por camisetas vermelhas: o que importa é quem as comanda.
E para reconhecer os verdadeiros comandantes, os barões do império que nunca se desfez, basta procurar os sobrenomes...

É por isso que eu voto Serra e Jatene.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O presidente e Sakineh

Bem, agora o presidente do Irã chamou Lula de “emotivo”, para não dizer coisa pior... porque o contexto da declaração é de coisa pior, mesmo.

Eu não consigo pensar em diálogo com o presidente do Irã.

Não depois do que o fanatismo dessas pessoas fez com as mulheres iranianas.

Não depois de olhar a história de sua ascenção ao poder.

Os fundamentalistas não depuseram o Xá. Eles não participaram da organização da República.

Eles cobriram o Irã de uma camada de obscurantismo.

Azar Nafisi conta o que eles fizeram com as mulheres que resistiram às absurdas leis que reduziram a idade nupcial das mulheres para nove anos – é, nove anos de idade e uma iraniana pode ser entregue para casar -, deram aos maridos o direito de espancar, proibir, trancar e amordaçar – mordaças de couro, às vezes máscaras com abertura apenas para respirar – e, às milícias encarregadas dos costumes, o chicoteamento nas ruas.

As mulheres reagiram e se manifestaram, lado a lado com milhares de homens que não aceitaram o retrocesso. Elas iam para as passeatas; eram presas e chicoteadas. Centenas delas foram mortas – e, sob a alegação de que, se fossem virgens, iriam para o céu, eram entregues em “casamento” aos guardas das prisões, que as estupravam antes de matá-las. Mulheres consideradas adúlteras – muitas vezes por uma simples acusação do marido – eram metidas num saco e apedrejadas até morrer.

Lula se disse chocado com a condenação de Sakineh – considerada adúltera e condenada a morrer apedrejada – neste julho de 2010.

Antes tarde do que nunca, mas o governo dos aiatolás dura desde 1980, numa trilha sanguinária que inclui milhares de mulheres submetidas a crueldade e morte; soldados crianças, mandados deliberadamente para a morte explodindo minas terrestres na guerra com o Iraque; tortura e morte de homossexuais; mutilação de pessoas; prisão, confisco de bens e dos filhos, e morte para bahá’is, budistas e demais seguidores de religiões orientais.

A lista de atrocidades é longa, e a quantidade de vítimas sobe a centenas de milhares.

A distensão, verificada na última década, não mudou as leis. Apenas diminiu sua aplicação.

Lula faz de conta que não sabe de tudo isso.

Mas não saber é coisa grave para um presidente.

Lula diz que aceita o Irã porque é preciso dialogar para superar diferenças.

Mas, no caso, a questão não é de diálogo. É de justiça.

A violência indiscriminada contra as mulheres no Irã não é um simples assunto interno do Irã. O estupro legal de uma menina de nove anos não pode ser admitido. Dialogar com pessoas que defendem isso é impossível, porque a conversa já está comprometida desde o início.

Que o Irã queira chamar os Estados Unidos de Grande Satã – é problema dele. Que queira desafiar os controles do enriquecimento nuclear – também é problema dele. Mas não se pode admitir a violência legalizada a que as mulheres do Irã estão submetidas. E a questão não é islâmica – é de direitos humanos. E a grande maioria dos países islâmicos há muito abandonou essas práticas.

Nós, brasileiros, nos orgulhamos de nossa tolerância. Mas não podemos permitir que alguém se aproveite dessa tolerância para ser intolerante.

Também não podemos aceitar que, em nome das exportações, se reconheça como parceiro um regime atolado de sangue. Seria como vender princípios junto com o café.

Traduzindo: o pragmatismo tem limite. E este limite não é emotivo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A devoradora de árvores

A indústria brasileira do papel trabalha, em sua quase totalidade, com árvores plantadas, e metade do papel produzido é oriundo de reciclagem. Essas florestas são de árvores com alto teor de celulose. São florestas renováveis. Mas para chegar ao papel, principalmente o papel branco, opera com produtos químicos altamente contaminantes. Caulim, por exemplo. O consumo desnecessário de papel devora árvores – e não apenas pela extração direta.

Deste endereço: http://www.comciencia.br/200411/noticias/1/papel.htm, site da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que dá notícia sobre a sustentabilidade da indústria do papel, retirei a seguinte informação:

“Segundo dados da Associação Brasileira de Papel e Celulose (Bracelpa), existem 220 empresas de celulose e papel espalhadas por 16 estados brasileiros encarregadas de produzir os cerca de 38,2 quilos de papel consumidos anualmente por habitante, somando 6,8 milhões de toneladas para o consumo interno.”

São três quilos de papel por mês por habitante – do papel higiênico aos papéis especiais de maquetes, passando por todo o papel de escritório.

Esses três quilos de papel poderiam ser reduzidos em muito se a máquina estatal brasileira se dispusesse a fazê-lo. A papelada exigida pela Justiça Eleitoral para o registro de candidaturas é um exemplo disso. Na conta simples do blog “Espaço Aberto”, haveria uma média de 30 documentos por candidato. Desses documentos, exceto a folha de identificação e a declaração de aceite da candidatura, o restante é oriundo de órgãos oficiais – todos informatizados. Considerando que serão 500 candidatos nos Estados de menor colégio eleitoral até 3.000 nos de maior colégio (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais) teremos cerca de 21 mil candidatos apresentando, cada qual, mínimo de 30 folhas de papel. Serão 420 árvores – uma floresta, plantada ou não, só para alimentar o registro de candidaturas. Boa parte disso poderia ser eliminada por simples consultas entre os sistemas informatizados dos Tribunais.

Mas não é assim que funciona, no Brasil. Pior que as candidaturas são os convênios federais. Cada convênio exige cerca de 60 documentos. Quando um Estado, ou um Município, vai receber dinheiro da União – as chamadas transferências voluntárias – tem que apresentar toda a papelada, a cada convênio. São milhares de convênios para milhares de municípios. ONGs e os Estados. Há tempos, foi criado o CAUC, no Ministério do Planejamento – um cadastro único, informatizado. A idéia era que o Estado ou Município, ou ONG, fizesse a atualização diretamente no CAUC, digamos uma vez por mês, e a certidão expedida pelo cadastro substituísse a papelada. O que aconteceu? Os Ministérios continuaram pedindo todos documentos – e mais a certidão do CAUC.

Uma vez perguntei, em Brasília, para onde ia toda a papelada dos convênios. Eu estava justo no Ministério do Meio Ambiente. Descobri então um andar inteiro repleto de papel. Que ninguém lê. Eu não consegui, entretanto, descobrir a papelada dos Tribunais de Contas, para onde vão todas as prestações de contas e as cópias dos ditos convênios. Mas constatei que alguns carroceiros – isto mesmo, carroceiros, com jegues e tudo – percorrem os Ministérios recolhendo papel.

O que quero concluir é que a burocracia brasileira, registros eleitorais inclusive, é a grande devoradora de árvores. A redução dessa carga sobre o meio ambiente parece ser uma tarefa impossível. Mas a esperança é a última que morre...

sábado, 3 de julho de 2010

Pós-Copa

De repente, o Brasil perdeu, e não havia revolta.
Alguma tristeza, sim, mas nem de longe comparada às outras vezes. A torcida recolheu suas bandeiras, fantasias, e no dia seguinte se consolou com a goleada alemã. Rápido, fácil, como se tivesse consciência de... de que?
Algo mudou.
Talvez porque essa seleção que foi para a África seja de brasileiros, mas não seja brasileira. São jogadores reconhecidos; triunfaram no primeiro mundo; alguns já têm dupla nacionalidade. São jogadores até amados e admirados pelas torcidas. Mas estão longe demais, tanto no quotidiano dos jogos, como no nível de renda, do comum dos jogadores brasileiros, para serem identificados com o país. Ou com a torcida, que só muito raramente os vê jogar, e pela televisão, e defendendo outras cores que não as do Flamengo, Coríntians, Vasco, Palmeiras...
O clamor para a convocação de Ganso tem a ver com essa proximidade, assim como a torcida pelo Uruguai – na verdade, pelo bem próximo Loco Abreu. Jogam aqui, conhecemos seus altos e baixos, do que é capaz e do que não é.
Mas há algo mais.
Federações, confederações, técnicos, cartolas e jogadores mostraram-se perfeitamente conformados com duas aberrações: uma bola torta, defeituosa, inadequada para o futebol, e um péssimo nível de arbitragem. Todas as seleções foram prejudicadas, em algum momento, por essa bola. Pelo menos três seleções foram diretamente prejudicadas pela arbitragem ruim. Mas a Adidas anuncia recorde de vendas da Jabulani, no melhor estilo “reclamem, mas me comprem, lixe-se o mundo todo”, e a FIFA explica, com o maior cinismo, que os árbritros trazidos de locais onde o futebol ainda é uma promessa são parte de um plano para disseminar o esporte...
Que, no Brasil, é cada vez menos esporte para ser exporte.
Por mera curiosidade, fui xeretar o que é direito federativo e direito econômico nos contratos de jogadores. Concluí que jogador é quase um servo moderno: da feita que assina um contrato, passa a ser uma pessoa a ser explorada. Como um barranco de garimpo: se der ouro, ganha o garimpeiro, o dono do barranco e todas as pessoas que participam dos direitos. Se não der, fica o vínculo até o final do prazo – encostado ali.
Garotos do sub-sub-sub, apenas apresentam algum talento, já são comprometidos, pelos clubes, com grupos econômicos. Então não é de se espantar quando aparece numa grande seleção um Cacau, um Túlio Tanaka, que passou por clubes brasileiros e de quem nunca se ouviu falar. Eles não puderam nem se apresentar ao torcedor...
Talvez que isso seja a forma moderna de gerenciar o esporte, talvez.
Mas o resultado é uma seleção de brasileiros, em vez de uma seleção brasileira.
Eu acredito sinceramente que esses jogadores, ao vestir a camisa amarela, se emocionem em pensar no Brasil. Mas esse sentimento é misturado com toda a expectativa financeira que vem junto com a camisa vitoriosa. É mau, isso? Creio que não, mas seria melhor que essa expectativa não estivesse em final de carreira, ou estivesse em pessoas que estão em vias de se projetar para o mundo.
Isso não aconteceu desta vez. Possivelmente é uma das razões para o rápido conformismo da torcida, o resfriamento rápido de um entusiasmo que sequer chegou a encher o espaço frente ao telão do Copacabana.
Pressinto que o torcedor gostaria mais de uma seleção cheia de altos e baixos, mas com a maioria dos jogadores saídos do Campeonato Brasileiro do que uma cheia de vitoriosos da Liga Européia.
E, com certeza, jogando com a bola adequada e árbitros competentes.

domingo, 20 de junho de 2010

Perplexidades

Porque a Fifa estragou a Copa do Mundo? Excesso de ambição, talvez? Alguém me informa que a Fifa sempre muda a bola nas Copas, para conseguir mais gols, e, assim, tornar o futebol mais atraente. Eu nunca consegui entender porque o futebol deva ser mais atraente do que já é, com seus duelos entre a força e a habilidade, entre a criatividade e a disciplina, entre o poder coletivo e o poder individual, e, bailando entre todos esses duelos, o acaso, o golpe de sorte ou de azar. Já é tanto, que a maioria dos torcedores de verdade considera a melhor seleção que o Brasil já teve foi a de 1982, que perdeu uma Copa do Mundo. Do jeito que a Fifa age, ouve mais marqueteiros que torcedores; e o resultado foi esta horrível Copa.
Eu não me conformo de ver goleiros excelentes, passando vexames como se fossem peladeiros, engolindo pseudofrangos porque alguém achou que a bola deveria prejudicá-los. Uma bola que neutraliza toda a habilidade conseguida por atacantes e zagueiros, impede a organização de jogadas e transforma cada partida numa loteria. Virou questão de sorte acertar ou defender um chute. Isto não é futebol.
O resultado, que o mundo inteiro está vendo, é dois times, quaisquer que sejam, entrarem em campo com medo da bola.
Esta é a Copa do anti-futebol. Sem nenhuma beleza, e também sem gols.

Saramago ser considerado o grande escritor em língua portuguesa. Eu compreendo que ganhar um Nobel tem seu valor, mas nem todos os que ganharam esse prêmio são realmente excepcionais. Para mim, Oz, Hemingway e Saramago estão no segundo time, para citar três vencedores, bem longe de Garcia Marquez, Pamuk ou Kenzaburo Oe. Eu acabo de ler o segundo livro da portuguesa Inês Pedrosa; ela está só no começo da carreira, e é melhor que ele. Sem falar de Mia Couto e sua lírica abordagem moçambicana, e da plêiade de brasileiros, entre os quais eu não incluo Jorge Amado, aliás – mas Lia Luft, sim, e os maravilhosos Cecília e Drummond.
Talvez o Nobel tenha tornado Saramago um dinossauro, um medalhão. Mas é um dinossauro arrogante demais, tanto no seu jeito de ser, como na sua literatura.

Porque a recente propaganda do Governo Federal está tão parecida como a propaganda do mesmo Governo Federal nos idos de 1970? São arroubos nacionalistas, música grandiosa, verde-amarelismo esgotante. Nos 1970, estávamos numa ditadura; hoje, estamos numa democracia. Além disso, a patriotada, hoje, soa anacrônica: ninguém ignora que uma gigantesca multinacional pode mais que um pequeno país. Ou, se ignora, precisa cair na real – e a realidade é que, se, em 70, meia dúzia de países tinha uma boa receita a partir do aluguel de bandeiras para navegação, hoje são dezenas de países que alugam suas bandeiras para endereços eletrônicos. Porque isso, agora? Brasileiros, como qualquer um, gostarão muito de estar entre os grandes do mundo, mas brasileiros não se sacrificarão por isso. Há muito tempo o Brasil deixou de ser uma causa, para ser um lugar bem-amado. A causa é viver bem e decentemente.

Porque Dilma Roussef aceitou ser barbierizada? É verdade que a receita foi aplicada a Lula, que aceitou mudar sua postura pública para conseguir finalmente ganhar a eleição presidencial. É isso que dizem; mas, na verdade, Lula ganhou porque José Serra foi traído. E porque Fernando Henrique teve compostura ética e não fez o que Lula está fazendo: campanha eleitoral ilegal e antecipada. Lula é multado a cada sessão do TSE. Mesmo assim, a receita marqueteira para Lula só lhe mudou a roupa e aparou a barba e os cabelos. Dilma, não – dela só permanece a roupa, que já era de alta costura mesmo antes da candidatura. Rosto, cabelos, postura, tudo mudou. Na minha opinião, introduziu um toque de fraude que poderá ter para ela o mesmo resultado que teve a Fifa nesta horrorosa Copa do Mundo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O biscoito e o desembargador

O biscoito é delicado e simples: água, manteiga, farinha de trigo, açúcar, uma calda de chocolate coberta com açúcar cristal. Deve derreter na boca, mas ser denso o suficiente para não quebrar no manuseio, e manter o gosto de trigo assado.

Por trás dele, negros e brancos.

Primeira versão da história: na Cidade Velha havia duas padarias. Uma de um negro, outra de um português. Rivais, um vendia um biscoito branco, outro um biscoito preto, com calda de chocolate. O filho de um casou com a filha do outro, e o biscoito também foi casado: meio escuro, meio claro, branco e preto, Monteiro e Lopes, Monteiro Lopes ficou o biscoito. Em duas metades, a branca e a preta.

Segunda versão da história: era um juiz, e negro. Chamava-se Agnano Monteiro Lopes, chegou a desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Pará. Dizia-se que era a bondade em pessoa; que era íntegro e honrado. Uma doceira beneficiou-se dessa bondade, e resolveu colocar calda de chocolate sobre o biscoito branco que fazia habitualmente. Um biscoito todo escuro, com o interior branco. Para homenagear o desembargador Monteiro Lopes, um preto de alma branca.

(Nestes tempos de muito cuidado com racismo e preconceitos, falar-se de negro de alma branca é perigoso. Pergunto-me se é igualmente perigoso falar-se de brancos com almas negras. Conheço vários. Aliás, seria preciso revisar Oscar Wilde e o negror das almas danadas de Dante...)

Monteiro Lopes não é um preto com alma de branco, é um negro de alma branca. Trigo e chocolate, os sabores se confundem através do açúcar. É um biscoito delicado, tem que ter o ponto certo de enrolar e o ponto certo de assar. Se passar do ponto desmancha, quebra, fica seco demais, o trigo queimado amarga. Se não chegar no ponto, não enrola direito, absorve calda demais, fica molengo. Tipo da coisa difícil de conseguir. Difícil porque é simples, não há creme de leite para disfarçar, nem confeitinhos para tornar mais atraente. Difícil porque é direto: se a massa for boa, bem feita, bem trabalhada, o preto e o branco estarão no delicado equilíbrio que caracteriza as boas coisas da vida.

Eu gosto da história do juiz, mais que a primeira versão da história. Porque é uma homenagem perene: eu fiz uma busca na internet, e da memória do desembargador Monteiro Lopes só encontrei um auditório com seu nome no Tribunal de Justiça. Mas a homenagem tem o sabor do bem na boca de todos. A bondade de um juiz com gosto de açúcar, trigo e chocolate. Em preto no branco.

Por outro lado, é romântico pensar-se em Romeu e Julieta transformados num doce de duas cores, claro e escuro, o fim da rixa dos padeiros. Mas não sei porque, não faço fé nessa história: parece-me arrumadinha demais – ideologicamente, é claro – para ser verdadeira. No entanto, conheço muitas histórias de amor desafiante com um protagonista branco e o outro negro para descrer da história da Cidade Velha. Enfim, ela também remete para o equilíbrio: boa massa, bom trabalho, calda leve – e um biscoito perfeitamente paraense, um doce que é também uma fábula que chega ao paladar.

sábado, 17 de abril de 2010

Feminino e masculino

Li, não sei mais onde e há algum tempo, que um dos subprodutos da profunda mudança de comportamento sexual no último século é a inserção de valores femininos na educação masculina. E, no último livro que li – “Sábado”, uma novela mais ou menos bem construída, mas em compensação tratando com extrema competência da vida contemporânea numa grande cidade – um dos personagens diz para o pai algo como: essas coisas grandes, o aquecimento global, a guerra nuclear, a fome mundial, tudo me assusta; mas ao mesmo tempo eu fico feliz com minha namorada ou uma música bacana. Então, penso em coisas pequenas.

E penso eu aqui que essas coisas pequenas são valores femininos.

Porque, chova cinza nuclear ou canivete, exploda o mundo em volta em bombardeios, a quantidade de sal que vai na panela é sempre um problema crucial para uma mulher. A pitada a mais ou a menos sempre preocupará uma mulher em qualquer circunstância.

Em “Sharon e minha sogra”, a professora Suad Amiry espia pela janela os tanques israelenses passando na porta de sua casa, cercada e fechada, e escreve em seu diário que a água que tem é pouca. “Sharon e minha sogra” é um diário de guerra – feminino.

Recentemente, num casamento, os homens choravam tanto quanto as mulheres. As razões eram diferentes, mas o fato de haver lágrimas em público num momento desses, me fez pensar que, de fato, algo mudou. Sou de uma geração educada com extremo rigor nesse aspecto – mesmo para nós, mulheres, era proibido chorar em público. Uma educação de guerra masculina, cujo substrato era: transforme sua dor em raiva, em ódio, em agressão. E não demonstre sua dor, ou você se fragilizará diante do adversário, que eram todos os outros.

Eu poderia saudar como um sintoma de melhoria do mundo essa transformação, mas tenho cá minhas dúvidas. Mulheres enraivecidas foram o estopim da queda da Bastilha; as mães da praça de Maio, hoje avós, mostram ao mundo todo a persistência de uma luta que começou aparentemente perdida. Um dos mais cruéis capitães piratas era uma mulher. E foram as ranis que forçaram os ingleses a pagar caro a conquista da Índia, guerreando palmo a palmo, território a território. E há ainda a Senhora Wu, Lucrecia Borgia...

Também não vi grandes mudanças com a entrada das mulheres na política partidária. Hilary segue a tradição, Tatcher e Golda Meir, também. Aliás, Golda foi muito diferente da grande patrona judia, a Rainha Esther... que, como Isabel da Hungria, apelou para o amor para salvar um povo.

De qualquer maneira, esta revisão de valores culturais e educacionais tende a uma uniformidade, a um equilíbrio, desta vez mundial, priorizando a convivência e reconhecendo e respeitando as diferenças.

E talvez que o permear dos valores masculino e feminino seja de fato profundo, e, finalmente, ponha um cobro no delírio guerreiro, e possamos curtir uma paz prolongada, mundial, em que o sal numa panela cheia seja apenas uma alegre dúvida.

*****
Recebi, por e-mail, artigo-comentário de Benedito Carvalho, que decidi postar junto com esta crônica não só por se tratar de um ponto de vista masculino, como também por sua beleza.

EDUCAÇÃO DE GERRA MASCULINA E O SEU PREÇO
Benedito Carvalho

O historiador Eric Hobsbawn, no seu belo trabalho "Era dos Extremos", disse que a única revolução exitosa no breve século vinte foi a feminina. Concordo plenamente. Quem viveu uma parte de sua juventude numa província, como vivi em Belém do Pará, sabe o que significou (e significa) ser homem e mulher. Basta folhear o livro chamado "A dominação masculina", do sociólogo Pierre Bourdieu, que estudou os cabilas na Argélia, onde nasceu e passou sua infância, para perceber como aquilo que ele chamou de "habitus" não desaparece num século somente. Nos mostra como a nossa (e quando digo nossa, falo do homem e da mulher) subjetividade está profundamente marcada por toda uma cultura patriarcal, visivelmente presente no nosso comportamento, na maneira como vemos o mundo, como sentimos, como desejamos e amamos... E, também, como nos comportamos no mundo político.

A que se deve isto?

Tenho lido muito, procurando compreender os lados obscuros da construção da masculinidade, a chamada identidade masculina. E vejo como esse comportamento, que você, de forma perspicaz, observa na sua crônica, está tão presente em pleno século XXI. E não vai desaparecer tão cedo, porque o processo de mudança é lento. O machismo (e quando falo do machismo, me refiro também ao internalizado desse machismo pelas mulheres) está tão sedimentado, como uma rocha milenar, e não será eliminado enquanto essa rocha dura (Reich chamava de couraça) do patriarcalismo predominar, colonizando o nosso mundo interior.

Repetindo as observações do Bourdieu, o machismo, o patriarcalismo está tão enrustido que aparece em nossa fala (quente x frio; sensível x não sensível, veja a nossa linguagem!), na nossa forma de vestir, na nossa forma de fazer política, nas nossas interdições e nas mil formas de manifestações de nossa subjetividade. A masculinidade e a feminilidade são culturalmente construídas historicamente, variando segundo as sociedades.

E cada vez me convenço mais como é mais difícil "construir" um homem do que uma mulher. Desde a nossa concepção até a vida adulta viril, nós, homens, temos que aparecer fortes, os que não choram, como você diz.

Você reconhece que as coisas estão mudando e mostra-se esperançosa com os novos sinais dos tempos, como se dizia na época do Vaticano II. “Recentemente, - diz - num casamento, os homens choravam tanto quanto as mulheres. As razões eram diferentes, mas o fato de haver lágrimas em público num momento desses, me fez pensar que, de fato, algo mudou".

Mas reconhece logo depois:

“Sou de uma geração educada com extremo rigor nesse aspecto – mesmo para nós, mulheres, era proibido chorar em público. Uma educação de guerra masculina, cujo substrato era: transforme sua dor em raiva, em ódio, em agressão. E não demonstre sua dor, ou você se fragilizará diante do adversário, que eram todos os outros".

Ana, é verdade, a guerra masculina obrigava a isso e sobrava para as mulheres. Mas eu duvido que nessa guerra vocês mulheres sentiam-se do mesmo jeito, apesar de toda a opressão. Os homens pareciam como uma muralha, duros, mostrando-se aparentemente insensíveis. Mas, o que se escondia por trás dessa aparente fortaleza?

Na verdade, somos de uma vulnerabilidade imensa. Você, como mulher, nem imagina, ou se imagina não sabe como isso está entranhado dentro de nós. Isso porque nos “ensinaram”, (adestraram, essa é a melhor palavra) desde criança que a construção do que significa ser homem, (ser macho, como se diz no nordeste) deve ser vista como um exercício permanente para nos convencer (e convencer os outros) de que não somos uma mulher, (mulherzinha), um bebê (frágil criatura) ou um homossexual. O “verdadeiro homem” não chora, é um durão, que não deve - como disse você - manifestar os seus sentimentos; um “eterno soldado vigilante”, uma espécie de “Rambo”, segundo a versão cinematográfica americana (recordo aqui aquele militar do filme Beleza Americana, que nos mostra o outro lado do Rambo!).

Fomos historicamente criados para aprender a ser homens. Para isso, passamos por ritos que nos marcaram profundamente, como nos mostrou Badinter. Ritos de iniciação, normalmente dolorosos, na transformação do menino em homem, presente em todas as culturas mesmo hoje menos evidentes ou esmaecidas. Virilidade expressa no corpo e no comportamento. Como disse um autor: “Preocupado em não perder sua esfumada rota, o macho dominante tem horror de atravessar os limites do "masculino" e por isso sempre impôs rígidos padrões diferenciados – de comportamento, de pensamento e até de moda – a si mesmo e à mulher”.

Nós, os meninos-machos, fomos orientados para sermos os provedores e protetores e, desde cedo, fomos treinados a suportar sem chorar as dores físicas e emocionais. A dor é antes de tudo assunto de mulheres. Por isso, o homem deve desprezá-la, sob pena de se ver desvirilizado e de ser rebaixado ao nível da condição feminina. A violência masculina também é estimulada pela educação. O menino deve revidar se apanhar, como também deve praticar esportes em que a violência sempre está presente e é aceita.[1] Assim foi (e ainda é) o nosso mundo. E essa herança levamos para a vida pública, para a política, para a nossa relação com o outro e a outra. Na maioria das vezes também para o túmulo.

Mas, posso garantir, Ana, que, ao viver sob essa couraça, esse ideal de masculinidade, pagamos um alto preço. Há um "silenciamento" sobre o ônus de sustentar este “ideal heróico”. Estamos cansados de ver amigos, colegas de trabalho, conhecidos, que, na vida, se matam para sustentar essa imagem. Muitos, por exemplo, acham-se invulneráveis, não se cuidam, não fazem exame de próstata, pelo medo de aparecerem frágeis e outros medos bem conhecidos. Como fomos criados num mundo onde o macho se via como provedor, é com muito sofrimento que experimentamos uma sociedade onde a força física, cada vez mais, já não representa a garantia de um trabalho. Desmaterializa-se a produção e, ao mesmo tempo, torna-se desnecessário o trabalho bruto e desumanizador. O que vale agora é a sensibilidade, a capacidade de se relacionar afetivamente, a chamada inteligência emocional.

Não é por menos que a nossa grande interrogação, no momento em que perdemos o poder, é saber o que as mulheres querem de nós hoje, já que o machão cada vez cabe menos no figurino demandado pela sociedade. Talvez, por isso, podemos compreender o desnorteamento em que vivemos na sociedade dos machos, onde muitos apelam para a violência contra suas companheiras, na maioria das vezes porque ousam assumir suas vidas, os seus desejos.

É como se, no fundo, nos perguntássemos: “e agora? O que faço com os meus duros músculos, minha agressividade, com a minha afetividade, se vivemos num mundo cada vez mais feminino? (a Cidade das Mulheres, de Felini?)

Veja a nossa dificuldade em procurar ajuda ou cuidados médicos, enfim, em ser assistido, já que fomos criados para assistir e prover. Para vocês, o sexo dito frágil, pedir ajuda não parece desmerecê-las nem diminuir sua auto-estima, como é o nosso caso. O modo como vocês foram socializadas gerou uma maior preocupação com o corpo. O preço do nosso endurecimento é a morte mais precoce e tantos outros problemas.

Tenho minhas dúvidas, Ana, que o “permear dos valores masculino e feminino seja de fato profundo”, como diz, esperançosa. Você, que atravessou por tantos obstáculos nessa província, numa época em que ser mulher, ser feminista, socialista, uma indignada cristã, era motivo de perseguição, sabe muito bem o valor de sua liberdade e o que vem significando as mudanças de valores para as mulheres que hoje vivem na sociedade brasileira. Muitas (talvez a maioria) não sabem o que significava ser mulher nos tempos duros da ditadura militar.

Que você continue com seu “cobro no delírio guerreiro, e possamos curtir uma paz prolongada, mundial, em que o sal numa panela cheia seja apenas uma alegre dúvida”, como diz. Mas, cuidado com o excesso de sal, que pode matar o novo homem emancipado.

sábado, 13 de março de 2010

Lula e Cuba

Minha amiga me olhou furiosa quando lhe disse que não acreditava que o sistema de saúde de Cuba fosse o melhor do mundo. “Simples lógica – eu lhe disse – eu não conheço os números, mas os países nórdicos têm muito mais de tudo para ter um sistema melhor. E tenho a impressão que por lá as pessoas vivem mais tempo, e com uma boa qualidade de vida”. Ela então disse que eu estava esquecendo do embargo econômico. E aí seguiu-se um discurso que ouço desde meados do século passado. Eu não discuto mais essas coisas; é inútil. Para muitos brasileiros, Cuba é uma questão de paixão. Tipo Flamengo.

Para mim, Cuba foi uma referência nos primeiros anos de vida adulta. Eu li tudo o que pude sobre a ilha, a revolução, Fulgencio Batista, os americanos, até mesmo a guerra entre a Espanha e os Estados Unidos, que começou em Havana. Mas os anos se passavam, e Fidel Castro continuava no poder. Depois veio Kennedy e o episódio da baía dos Porcos. O que me chocou naquele episódio foi o armamento atômico posto em Cuba pelos soviéticos. Foi minha primeira decepção – como Fidel Castro pôde permitir uma tal exposição do povo cubano?

Nesse meio tempo, um outro fato contribuía para aluir minha referência. O banho de sangue chileno, na instalação da ditadura por lá. Quando Fidel assumiu, os fuzilamentos em massa comandados por Che Guevara nos chegavam tingidos de idealismo. Anos depois, quando Allende morreu no palácio incendiado, e os chilenos viviam os fuzilamentos em massa, eu compreendi de repente o que Fidel fizera em Cuba. O paredón crivado de balas atrás das pessoas vendadas era igual.

Vinham notícias pelas vias clandestinas: ah, o povo cubano adora Fidel! E eu pensava: os portugueses também adoram Salazar! Porque Salazar comparado a Fidel? Por uma questão de escala: Cuba e Portugal têm quase o mesmo tamanho – cerca de 100 mil metros quadrados – uma população equivalente, e, embora Portugal não seja uma ilha, depende do mar para tudo – ou tem que pedir licença para a Espanha. E por uma questão de semelhança política: Fidel e Salazar chegaram ao poder pela via militar, e ambos foram implacáveis com os adversários; ambos fizeram belíssimas reformas educacionais e colocaram os sistemas de saúde em dia; ambos censuraram tudo o que puderam, de anúncios a tratados técnicos. Ambos eram intransigentes defensores de uma causa: Fidel, a de Cuba socialista; Salazar, a de Portugal imperialista. Ao final, ambos governaram por quase meio século. E todos dois nunca pararam de falar em democracia... de extrema esquerda, o primeiro; de extrema direita, o segundo. E eu sei que as paralelas se encontram em algum lugar.

E, depois, os auto-exilados cubanos, povoando a Flórida. E os protestos contra o embargo comercial norte-americano – imposto, aliás, pelo Congresso dos Estados Unidos. Mas os soviéticos suprem Cuba! – eu pensava. Eram de 4 a 6 bilhões de dólares por ano em subsídios embutidos em preços irrisórios e cooperação gratuita. Cuba nunca teve que pagar caro combustível, nem com o choque do petróleo. Quando a fonte secou, com a queda do império soviético, a Venezuela e a China tentaram manter o dinheiro correndo. Era muito menos, mas, ainda assim, um ou dois bilhões de dólares anuais, representam uma considerável injeção de dinheiro sem encargos.

Cuba tem área equivalente à do Estado de Pernambuco. Em 2009, a estimativa da população residente em Pernambuco era de cerca de 9 milhões de pessoas; em Cuba, 11 milhões. O orçamento de 2009 em Pernambuco foi equivalente a 12 bilhões de dólares; podemos agregar aí algo entre 2 a 3 bilhões, oriundos de recursos da União aplicados diretamente no Estado. O orçamento de Cuba, a 47 bilhões. (Fontes: sites oficiais da Fazenda cubana e do governo pernambucano). Cuba não é, pois, tão pobrezinha assim: por pessoa, Cuba pode gastar cerca de 4.200 dólares por ano; Pernambuco, 1.700 dólares por ano. É óbvio que esta comparação não tem rigor acadêmico: faço-a apenas para estabelecer um paralelo com algo mais próximo de nós. Se compararmos o orçamento de Cuba ao de Portugal, a discrepância é brutal: em 2009, Portugal orçou 161 bilhões de euros – ao câmbio de 1,46, algo em torno de 230 bilhões de dólares. Pobre Pernambuco!

Desculpem a chatice dos dois parágrafos anteriores, mas é preciso sempre dar uma olhada nos números, porque são eles que confirmam – ou não – os discursos e as intenções dos governantes.

Sim, e depois? A guerra fria terminou. Ondas democráticas substituíram o duro chão das ditaduras sul-americanas. Os países começaram a navegar: anistias, julgamentos, pensamento aberto, perdão, reparação. Comunistas hastearam suas bandeiras por todo o continente, livres enfim de quase um século de perseguição. Todos navegam, menos Cuba. Nenhuma mão estendida para a solução dos impasses: ano após ano, Fidel cobra contas como se o fato de o mundo todo não estar contra os Estados Unidos fosse suficiente para ser devedor de Cuba.

Aí Fidel sai do governo. Ainda como Salazar, unge um herdeiro. Um golpe militar derrubou o herdeiro salazarista, e os cravos sinalizaram uma nova época para Portugal. O herdeiro fidelista continua. Relatórios insuspeitos mostram a piora da condição nutricional da população (OMS), aumento da mortalidade, a redução da produção cubana (ainda ONU) e etc – um nítido caminho para o esfacelamento. Minha amiga dirá: Culpa do embargo!

Mas este bordão não cola mais. Cuba, que desde os anos 90 comercia com o mundo todo – exceto os Estados Unidos – não consegue mais aguentar a fachada socialista. Os dirigentes latino-americanos sabem disso, e cada qual do seu lado, aproximam-se para conquistar um espaço na mudança que virá rapidamente. E foi isso o que Lula foi fazer em Cuba: negociar, entrar num mercado prestes a se abrir: o financiamento de um porto de 300 milhões de dólares, uma fábrica da Petrobrás por lá, disputando espaço com a Venezuela e com o México... Não sabiam? Pois é, o governo brasileiro não explica direito. Mas os estrangeiros estão de olho, e foi ninguém menos que Mário Vargas Llosa quem informou a agenda lulista.

Nada demais, digo eu e dizem vocês, ele está no seu papel.

Pois é. Mas o caso é que havia um morto e 84 famintos presos políticos no caminho. Eles pediram ajuda a Lula. E Lula recusou. Razões de Estado? Que razões são essas, meu Deus, que se alicerçam em cadáveres? Em que é proibida a caridade de uma esperança? Aqueles homens não são assassinos, nem ladrões, nem pedófilos ou estupradores. Eles defendem uma causa e se imolam por ela. São presos de consciência, porque há, sim, uma ditadura em Cuba.
Este presidente, que foi e está sendo incapaz de socorrer corretamente o Haiti, avança sobre Cuba em busca de lucros pisoteando liberdades. E se diz estadista... Para mim, ele virou um Bush barbado – deixou os escrúpulos, a vergonha e a consciência em algum lugar no passado.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A morte do homem de bem

Domingo, 28 de fevereiro de 2010, nove da manhã, Beto conversava com o sogro na porta da sua casa, no bairro da Cremação, em Belém.

Ele morava numa casa de madeira, construída no quintal do sogro, desse jeito paraense muito comum de resolver a moradia mantendo os familiares por perto. Desde rapaz novo ele montara uma vendinha de açaí. Aos poucos, conseguiu abrir uma pequena estância – nome que damos a um tipo de loja que vende material de construção, incluindo madeira. Fazia fiado para os vizinhos, e atendia a todos sem hora para trabalhar – e isto lhe dava, além do suado dinheirinho, uma popularidade grande. Num bairro marcado pelo tráfico, Beto construía sua prosperidade e sua reputação como homem de bem, e jamais se ouviu dizer que se metera nesta ou naquela falseta. Seu casamento não ia muito bem, e, às vezes, Beto pulava a cerca – mas sua mulher trabalhava com ele, ombro a ombro. Era ela quem tomava conta do dinheiro e da papelada da loja. Ele atendia os clientes e cobrava as contas. Os desacertos conjugais não afetavam o pequeno negócio.

Nesse domingo, um homem foi procurá-lo. Perguntou se ele era o Beto, e pediu que lhe vendesse um ralo de banheiro. Beto lhe disse que não abria aos domingos; estava cansado; o homem insistiu – era um fim de serviço, e precisava do ralo e mais alguma quantidade de areia, pedra e cimento. Beto relutou, mas acabou cedendo: chamou a esposa, e, juntos, foram buscar um carreteiro amigo, morador na mesma rua, para que trouxesse o carrinho de mão e ganhasse também o seu.

Na estância, o homem escolheu o material, e, enquanto Beto e o carreteiro carregavam o carrinho, disse de repente que tinha esquecido o dinheiro em casa, e ia buscar. Beto e o carreteiro trabalhavam quando chegaram dois motoqueiros, ambos de capacete. Um deles perguntou: “Tu é que és o Beto?” Ele respondeu: “Sou, sim”. O homem puxou uma arma: “Te ajoelha”. E, olhando para a mulher e o carreteiro: “Vocês, aí, se virem de costa”. Os dois obedeceram e ele disparou três tiros na cabeça do homem ajoelhado. E foi embora, com o outro motoqueiro.

Simples assim. Eram umas nove e meia da manhã. No centro da cidade. Sem assalto, sem explicação.

O alarme correu a vizinhança, e os tititis falavam de uma dívida de 600 reais, que Beto vinha cobrando, ou de uma mulher casada, com quem Beto aparecera recentemente. Mas ninguém sabe ao certo porque o Beto morreu, mandado matar com certeza, porque nem o assassino, nem o homem que serviu de isca, o conheciam pessoalmente.

Na semana anterior, autoridades policiais haviam dado entrevista nos jornais dizendo que o banho de sangue em que Belém mergulhou nos últimos tempos se deve a acerto de contas entre traficantes. Os números oficiais, inconfiáveis porque maquiados (para se ter uma idéia, no último trabalho apresentado pela Segup, em dezembro de 2009, são excluídos os três últimos meses dos anos de 2008 e 2009) apontam entre 92 e 114 mortos por homicídio na região metropolitana de Belém, por mês. O que resulta em três ou quatro por dia. Desse volume de mortes, o que resulta elucidado é mínimo – não chega à metade.

Beto é um desses números – ele não era missionário, nem turista, nem doutor. Não participava de movimento que hoje cobre resultados da polícia. Era apenas um homem comum, um homem de bem. O que, nesta cidade cada vez mais violenta, parece ser delito suficiente para uma pena de morte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O legado de Neuton

O conhecimento vem de longe. Dos tempos de chumbo dos anos 70 – bem mais duros que os anos 60 – cimentado por Paulo Fontelles e José Luiz Guedes.

Nós, os católicos integrantes da JEC, JUC e depois Ação Popular, nos opúnhamos ferrenhamente ao PC, depois PCB e PC do B. A repressão nos enfiou no mesmo saco – ops!, nas mesmas celas. Foi quando nos conhecemos: uns por Deus, outros pela História, lutávamos pela dignidade, pela liberdade, pela integridade das pessoas e pela melhoria da vida das multidões. Nas prisões, o que menos importava era a razão da resistência; lutávamos, precisávamos lutar para salvaguardar companheiros, para manter esperanças acesas e a causa viva. Não importava se o lutador era o liberal Altino Dantas, ou a violenta Dilma Roussef, ou o cristianíssimo João Travassos. Ou, ainda, o radical Neuton Miranda.

É desde esse tempo, quarenta anos! que admiro e respeito Neuton Miranda. Dos tempos em que era necessário fazer chegar suprimentos à guerrilha, retirar pessoas marcadas de uma cidade cheia de barricadas, esconder crianças em caixas para que chegassem aos avós, misturar crianças com perseguidos para que estes pudessem escapar.

Quando começou a distensão, que se marcaram as eleições, uma vez eu conversava com Neuton e dizia: “Neuton, estou com medo. Está muito fácil...” E ele me respondia, tranquilo: “Temos que acreditar e avançar; não podemos perder a oportunidade; se estiveres com a razão, logo saberemos.” Soubemos logo que eu não tinha razão – logo a democracia voltava com a Constituição de 88.

Nossa relação era, pois, cimentada em crenças diferentes, mas objetivos comuns; a militância política desviou nosso caminho, promoveu encontros em diferentes momentos e desencontros em outros; no entanto, como dividimos uma vez o pão e o medo, guardava aquela confiança mútua que somente companheiros de trincheira podem ter.

Creio que posso falar hoje o que Neuton não gostaria que eu dissesse quando vivo. Íntegro, leal e correto em suas alianças – em que, aliás, sempre deixou claro serem temporárias, porque ele era um comunista e, como Niemayer, nunca abdicou disso – jamais criticou seus aliados de ocasião. Eu sempre respeitei seu comportamento. Mas hoje, com ele morto, sinto-me na obrigação de contar para todos os que me lêem as condições atrozes com que ele administrou a unidade regional da Secretaria de Patrimônio da União.

Bem, para começo de conversa, ele não tinha orçamento próprio. Seu orçamento estava dentro do Ministério do Planejamento que absolutamente nunca teve o Pará como prioridade. Para continuar a conversa: seu pessoal se resumia a meia dúzia de gatos pingados. E para finalizar: teria que administrar tirando leite de pedra, arranjando parceiros, se quisesse fazer alguma coisa.

Eu tinha ido lá, pela Paratur, preocupada com a situação da ilha das Onças, em processo de favelização do pior tipo, e tentar uma forma de começar a regularizar a ocupação das ilhas fronteiriças a Belém. Neuton não tinha condições sequer de formalizar um convênio. Fiquei horrorizada. Neuton, entretanto, me expôs um projeto ambicioso, e me disse: vou fazer. E fez o que foi possível, dobrou vontades, arranjou parceiros, e morreu fazendo pessoas muito pobres felizes por nunca mais terem que se defrontar com o fantasma da expulsão.

Políticos como ele, que resistem às derrotas eleitorais e resistem à corrupção do poder; que enfrentam as dificuldades com a coragem necessária – das armas à palavra, da palavra ao trabalho silencioso sobre a papelada, mas sempre uma medida de esforço geralmente ignorada – representam o que de melhor temos no povo brasileiro.

E é por isso que, mesmo sendo de outro partido, ocasionalmente em oposição ao PC do B, escrevo estas linhas: para preservar o legado de integridade e coragem que um político como Neuton Miranda nos deixa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Chávez e Barata

Reza a lenda que o tenente Barata, interventor no Estado do Pará nos idos de 30, precisava encontrar um secretário de Agricultura. Caudilhesco, populista, fiel ao princípío básico do tenentismo, que consistia em erradicar as oligarquias de qualquer maneira, dando vez aos pobres, escolheu para o cargo, numa audiência pública, um lavrador semi-analfabeto. Lameira Bittencourt, um culto oligarca - que seria mais tarde procurador da República, senador, e cuja tese sobre eutanásia é até hoje citação obrigatória em trabalhos sobre o assunto - era considerado a “sombra” de Barata. Chocado, com a sala cheia, Lameira sussurra para Barata: “Mas governador, o homem não tem o anel!”- querendo referir-se, discretamente, que o homem não era formado em faculdade. Barata, bate-pronto, manda comprar um anel, coloca-o no dedo do escolhido e diz: “Pronto, agora ele já tem anel. Mande fazer o decreto de nomeação!”

Diz a lenda ainda que Barata costumava percorrer Belém com o secretário a tiracolo selecionando áreas para expropriação. Via um grande terreno, mandava expropriar e ali mesmo indicava as pessoas para quem entregar as terras. Acompanhar Barata era uma loteria que podia render um terreno – ele vivia com o povo atrás. A lenda conta ainda que algumas pessoas que emergiram com o tenentismo logo se apropriariam dessas terras – comprando-as a preço de banana dos novos proprietários – e, mais adiante, se tornariam pilares da sociedade burguesa.

Eu falo em lenda porque essas histórias são da tradição oral do povo paraense: trinta anos de baratismo no Estado foram de censura, truculência, perseguições políticas, destruição de jornais e queima de livros. Pouco sobrou de registros independentes – só na memória do povo, que pode enfeitar a História, mas a mantém viva.

Essas coisas me vieram à lembrança na leitura dos jornais de hoje, reproduzindo o programa de rádio matinal de Hugo Chávez: “Exproprie-se!” – e o povo atrás, tentando acertar na loteria.

O século é outro, mas o método é o mesmo. O que me leva a crer que nós, povos latino-americanos, vivemos uma espécie de nostalgia imperial. A natural evolução da História – da tribo ao clã, do clã ao barão, do barão ao rei, do rei à constituição - aqui foi truncada pela colonização européia. Não é sem razão que os pobres chamam os milionários de “barões”: no fundo, apesar das eleições, sentem-se vassalos. Dos patrões, dos ricos, dos filantropos talvez. Passam a vida recolhendo o que cai das mesas, tentando um golpe de sorte – como, por exemplo, agradar ao Supremo Magistrado para merecer benesses que este distribui, de forma ostensiva, como Barata e Chávez, ou de forma mais sutil, como Perón e Lula. Quase cem anos de intervalo entre os primeiros e os segundos: os “descamisados” viraram “excluídos”, mas o lema de que tudo se resolve com militância bem formada em escolas ou organizações continua de pé.

Não queiram ver nestas linhas um pessimismo que não existe. A evolução humana tem passos curtos e lentos – dois passos à frente e um atrás, segundo Mao Tse Tung – mas ela vai adiante. Brasil, Argentina e Venezuela evoluíram muito neste quase século – em qualidade de vida, em opção política, em civilização. Mas não há como fugir da dialética hegeliana aplicada à História - ou dialética marxista, se preferirem.

É sempre triste ver o momento do passo atrás, porque este é puxado por âncoras culturais profundas, modelos antigos, hábitos arraigados, ignorância. O que consola é que este retrocesso talvez seja essencial para a continuidade de um povo. E que, queiram ou não os caudilhos de plantão, como mostra a historinha do começo deste texto, a censura nada pode sobre a memória de um povo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Haiti e nós

“Não tenho palavras para descrever o que mais esse povo aguenta sofrer além de miséria, fome, violência”, escreveu o tenente pernambucano Ricardo Couto, ao descrever sua experiência com o terremoto desta semana no Haiti.

Até antes do terremoto, o Haiti tinha nove milhões de habitantes – menos que a população da cidade de São Paulo, menos que a população do Pará. Os brasileiros estão no Haiti comandando a força de paz da ONU e é por essa razão que o tenente está lá. Ao contrário do Pará e São Paulo, o Haiti é uma única e atroz miséria. Sua história é de extrema violência: este país é parte da Hispaniola, obrigatoriamente mencionada em todo os livros escritos por ou sobre os piratas e corsários do Caribe; as guerras – de conquista e civil – a escravidão e as ditaduras sucessivas traçam uma trilha contínua de sangue desde sua origem. A intervenção da ONU não é a primeira sofrida por esse país. Sua independência, porém, não foi o mero rompimento de uma colônia com o colonizador: ela foi a liberdade dos escravos.

Estamos lá como tropa de intervenção, garantia de paz. Mas isto nos basta?

A morte da brasileira Zilda Arns aponta um caminho. Ela estava lá: tentava levar a experiência da Pastoral da Criança – pequenas medidas, pequenas despesas que salvam vidas – para aquele povo. Para ela, não bastou.

Tenho lido artigos, estórias, História, lembranças, críticas e comentários sobre o Haiti, sua tragédia nacional antiga e sua tragédia nacional recente. Pouco, muito pouco, porém, de propostas concretas em favor do Haiti. Salvo dos esquadrões de voluntários profissionais da ajuda humanitária, o restante é o de sempre: estudos, contendo críticas pesadas aos governantes; correntes de arrecadação de fundos; comentários, igualmente com críticas aos governantes, aos Estados Unidos. Na maioria dos estudos falta a perspectiva histórica, é o olhar do século XXI sobre o século XVII.

É preciso um pouco mais. O que fazer quando um país perde quase toda sua elite intelectual, soterrada em sua única Universidade? Uma geração inteira de estudantes se foi. Como reconstruir os investimentos, se os líderes econômicos também se foram? Este terremoto tem mais consequências que desabrigados e famintos: ele criou uma ruptura social profunda – num país acostumado à violência. As fotografias mostrando homens armados com paus e pedras tumultuando as filas cheias de mulheres, crianças e idosos falam por si sós.

A solidariedade com o Haiti precisa ir além do dinheiro, dos discursos, dos artigos acadêmicos e dos estudos. Será necessário recompor a inteligência do país, oferecer conhecimento, para aproveitar a anistia da dívida externa do país (exceto a Venezuela e Taiwan, todos os demais credores anunciaram o cancelamento das dívidas – Hugo Chávez acusa os americanos de tentar “ocupar” o Haiti, mas não fala em perdão). Isto poderá dar à população do Haiti o tempo que precisa para se recompor – quem sabe ultrapassando de vez a longa série de reis, presidentes, ditadores e interventores que dirigiram o país com tanta crueldade?

Quem sabe, também, se nós, brasileiros, não aprendemos com eles um pouco mais de humildade?