segunda-feira, 14 de julho de 2008

Mortandade natalina

A história de um dos mortos na hora de nascer na Santa Casa de Belém:

Há cinco anos, Célia (vamos chamá-la assim, está bem?) teve um bebê, e, em seguida, eclâmpsia. Parece mentira que uma mulher ainda possa ter eclâmpsia numa cidade de 1,4 milhão de habitantes, e depois de ter feito o que se chamou de pré-natal. Pois Célia teve, seguida de cegueira temporária. Ela só foi ver o rosto da filha dois meses depois do parto.

Os médicos disseram para Célia: você não pode mais ter filhos!

É, foi isso mesmo. Célia, por conta da eclâmpsia, não podia mais ter filhos, e tomou seus cuidados. Um descuido, e, neste ano, Célia engravidou.

Teve medo. Foi ao médico, ouviu advertências e, desta vez, fez dieta. Aos seis meses de gravidez, estava num aniversário com o marido quando sentiu dor. Ambos acharam que era um probleminha, porque estava tudo em ordem. Mas Célia ficou na Santa Casa, foi direto para a sala de parto. Diagnóstico: descolamento da placenta – e o feto já estava morto quando foi feita a cirurgia.

A mãe de Célia me disse que encarou tudo com um pouco de alívio, porque Célia, afinal, está viva e os médicos disseram para ela que ela não podia ter mais filhos...

São dois pré-natais, na mesma pessoa, ambos com mau desfecho. A culpa é da Célia? O que a Célia sabe de gravidez e parto? O que lhe informaram? Ela comenta agora: bem que o médico disse... e se resigna ao que considera uma fatalidade.

Houve um escândalo em torno da UTI neo-natal da Santa Casa, a direção do hospital foi dispensada – e daí? A UTI neo-natal é só o final da linha tracejada – porque cheia de interrupções e desvios – de um sistema que poderia ser bom e é capenga, por muitas razões.

A primeira, a maior de todas, a fundamental é salário.

É escandaloso um médico ganhar menos que um motorista de ônibus ou – para ficar na mesma fonte pagadora – que um investigador de polícia ou um cabo da polícia militar. Dezenas de médicos já me disseram que trabalham em hospitais públicos “para resgatar o diploma”, porque estudaram em escolas públicas. É a única forma de aguentar o baixo salário, vestir com alguma nobreza o trabalho. Além disso, é preciso sobreviver, manter a família e crescer profissionalmente. Daí, algumas horas por dia resgatam o diploma e deixam a consciência em paz; o resto do tempo, é trabalhar por si e pelos seus.

Então, nos quinze minutos de consulta dedicados à Célia, basta dizer para ela que não pode ter mais filhos. Acabou o tempo, a Célia que se vire. De mais a mais, no sistema de medicina de massa é pouco provável que esse médico vá ver a Célia de novo; assim, a sorte estava lançada para o quase-bebê de Célia muito antes que ele chegasse na Santa Casa.

A segunda, também fundamental, é o governo federal achar que dinheiro resolve tudo. O Ministério da Saúde comporta-se como fundo financeiro, e não passa disso. Agora mesmo, anunciou o que rotula de investimentos para resolver a crise. Mais UTIs neo-natais – e isso, sem um governo, de fato, das condições de prestação de serviço, equivale apenas a desconcentrar a mortandade natalina. Não há intensivistas pediátricos suficientes, porque não há salário, e como não há salário, os médicos recém-formados não vão fazer residência nisso, porque não são heróis nem missionários, são apenas trabalhadores iguais a qualquer outro. Um especialista não brota do chão, nem é feito por mágica. Então, novas UTIs não vão resolver. Um governo da saúde verificaria se há condições de manter funcionando essas UTIs antes de autorizá-las, o que, aliás, qualquer pessoa de bom-senso faria. Mas é demasiado cobrar bom-senso do Ministério da Saúde, que dança ao som do zumbido do aedes há quase dez anos...

Um terceiro fator é a massificação da medicina, que obriga o paciente a ser impaciente e a se defender como puder – mas isso é assunto para outra crônica.

Salário, desgoverno e cultura de massa são uma combinação perversa que atinge em cheio os mais frágeis – a parturiente e seu filho, entre outros. Atinge no pré-natal, atinge na hora do parto e atinge no pós-parto. Trezentos mortos em seis meses não são de espantar – o espanto é que sejam contados, o que geralmente não se faz na ilusória base das estatística de saúde no Brasil.

Espanto maior ainda é anunciarem-se investimentos para resolver uma crise de serviços, e comportarem-se as autoridades como se uma simples promessa espantasse os trezentos fantasmas que rondam a Santa Casa de Belém, e como se elas não conhecessem, tão bem como qualquer técnico de saúde, a razão da crise.

Pobre Célia, que não entende nada disso, e, há duas semanas, sepultou com seu quase-bebê todas as esperanças da filha em ter um irmãozinho... Porque agora, mãe e marido, apavorados, estão juntando economias para Célia ligar as trompas – no médico particular.