quarta-feira, 19 de junho de 2013

A voz das ruas

Nos últimos três anos o governo Dilma Roussef tentou desesperadamente manter a aparência de crescimento do Brasil. Agora, a brincadeira acabou. A realidade desponta, dura, implacável.
Eu estou à vontade para escrever isso, porque já escrevi, antes, que o modelo fordista adotado (impulso de consumo, subsídios disfarçados de estímulos para manter a máquina funcionando) mais cedo ou mais tarde iria estourar. Não se faz riqueza sem novas fronteiras de produção. Não se faz doutor com um diploma e nem se constrói uma classe média alterando o cálculo da base, como fez o Lula.
A dura realidade é que 20 centavos passaram a fazer diferença, sim. E o que vemos hoje é apenas a expressão pública de uma situação que o Brasil já viveu nos anos 1980. Mas naquela época não havia rede social para mobilização rápida. Então as pessoas não sabiam do descontentamento alheio; os órgãos de imprensa conduziam o povo.
Bem, hoje todo mundo sabe o que o vizinho está pensando ou fazendo. O vizinho e o vizinho do vizinho do vizinho dele; é mais fácil. Hoje uma pessoa pode saber que, como ela, há milhares de outras irritadas porque o macinho de coentro encolheu e aumentou de preço ao mesmo tempo. Vinte centavos, para ser mais exata.
Vinte centavos na batata, 5x20 no feijão, 3x20 no leite, outros 20 no macarrão, no arroz e na margarina. Vamos somando os 20 centavos, em múltiplos ou inteiros. O resultado é que, no final do mês, faltam muitos 20 centavos para completar a despesa. Só que os juros não baixaram 20 centavos; subiram de novo. E aí, quem está pagando casa financiada já sabe que sua dívida aumentou.
Essas passeatas todas são por 20 centavos? São. Muitos 20 centavos.
A verdadeira classe média está nas ruas. Ela raramente se mexe, a classe média. Ela não gosta de políticos (a menos que seja parente ou amigo, ou lhe faça favores) e nem de partidos políticos (um sujeito de classe média tem plena consciência de sua condição minoritária; vive imprensado entre a riqueza e a pobreza, ambas prioritárias, entre a ética e as suas necessidades). Ela não se interessa por questões sociais: delega a responsabilidade de resolvê-las para quem se habilitar. Ela só vai para as ruas quando está com raiva. Muita raiva. Por isso não tem propostas objetivas. Ela não sabe o que fazer.
E agora ela quer de volta seus 20 centavos, porque eles são indispensáveis para pagar tudo o que o governo não lhe permite usufruir. Porque a classe média não superlota os hospitais públicos, não superlota as escolas públicas e nem as cadeias. Ela é quem paga tudo isso. São de classe média os assaltados, os dentistas incendiados, os consumidores de planos de saúde e os estudantes da rede privada de ensino. A classe média é geralmente assalariada, e trabalha três meses por ano só para custear a máquina pública.
Por isso ela percebe, antes de qualquer um, que o sonho acabou, e que o país está à beira de uma crise econômica grave. Talvez até já tenha entrado nela, quem sabe? E aí são insultantes os suntuosos estádios Brasil Grande. A multidão olha e pensa: Lá estão nossos 20 centavos! Olha para o futuro expresso nas gôndolas de supermercado e na prestação da casa própria e se assusta.
Essas passeatas (eu não gosto da palavra “manifestação” – para mim, é um eufemismo visando reduzir o impacto político do ato) provavelmente serão esvaziadas por concessões objetivas, pela violência dos saqueadores e pelo cansaço. Mas elas são só o começo – a menos que o governo federal crie juízo e faça sua penitência: ponha os réus do mensalão na cadeia, despache os corruptos e incompetentes do primeiro escalão, pare de obedecer à Fifa e equilibre a dívida pública.
Ah, e passe 20 centavos, montes de 20 centavos do Tesouro Nacional para os Estados e Municípios aguentarem o tranco das ruas, aliviando os impactos da crise que começa com assistência direta aos cidadãos.
Agora, a pergunta: o governo Dilma tem coragem de fazer isso?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Macaquinhos no cipó...

Saiu em todas as mídias:
Doze países africanos vão ter as suas dívidas, no valor total de 897,7 milhões de dólares (cerca de 1,9 bilhão de reais) perdoadas ou renegociadas pelo Brasil. Seis destes países estão na lista dos dez com maior crescimento econômico registrado nos últimos anos em todo o mundo.
Antes que combativos companheiros se emocionem com a hipótese de o Brasil estar ajudando os países pobres da África a saírem do buraco negro em que se meteram, é bom esclarecer: o cordeiro é um lobo disfarçado. O Brasil está simplesmente repetindo com os países africanos o padrão de comportamento global. A maior parte da África é um território a ser explorado. Como diz a letra de Chico Buarque na música de Cole Porter, se macaquinhos no cipó fazem, façamos!
Mas o que? Para ter essa resposta consultei a base de dados do Index Mundi e a do Senado Federal, onde tramitam oito mensagens do Executivo apresentando as bases do que a propaganda oficial está chamando de perdão. São somente oito porque as negociações não foram concluídas, ainda, com três países dos onze anunciados: Guiné, Guiné-Bissau e Mauritânia.
Ocorre que em todos esses países há empresas brasileiras com interesses embaraçados pela dívida. Ela trava os negócios, impede as exportações e a instalação de empresas do Brasil por lá. Então a solução é a de sempre: um bocado de dinheiro público para facilitar a vida das empresas. O bom-mocismo do governo vai permitir o faturamento, principalmente, da Petrobrás, da Vale do Rio Doce e da Odebrecht, além de cacifes menores, poucos, ainda, mas com amplas possibilidades.
Tomei como referência o PIB per capita paraense, que é de 4.800 dólares, em número redondo, segundo o IBGE.
Bem próximo ao da República do Congo (Congo Brazzaville), que é de 4.600. Pois o Governo Federal decidiu reduzir a dívida desse país com o Brasil de 352,6 milhões de dólares para 68,4 milhões. E quem está na República do Congo? A Vale e a Odebrecht, esta, construindo uma hidrelétrica. E a Petrobrás está chegando lá. O subsídio indireto vai facilitar os contratos, com certeza – o dinheiro que serviria para pagar a dívida com o Brasil poderá ir para as empresas brasileiras.
A maior dívida perdoada foi justo a da República do Congo. Sua vizinha, a República Democrática do Congo (conhecida também como Congo Kinshasa ou ex-Zaire), teve bem menos complacência, apesar de ter um PIB por pessoa dos mais baixos do mundo: 400 dólares por ano (2011), o que coloca esse país no patamar da miséria. Sua dívida, de 5,8 milhões de dólares, foi reduzida para 3,3 milhões. Ali, a Vale encontra dificuldades num contrato bloqueado pelo governo (que exige a saída de um investidor associado) e é acusada de violência contra a população. Um general brasileiro está indo para lá para chefiar uma missão de paz da ONU, porque o país vive conflito sobre conflito. Dificilmente poderá pagar esses 3,3 milhões de dólares. Mas o Brasil manteve a dívida.
O perdão de 56% da dívida da República do Congo não é nem de perto o que foi concedido à Zâmbia, cujo PIB por pessoa é de 1.700 dólares anuais. Para Zâmbia, 80% da dívida foi anulada, no montante de 90,7 milhões de dólares, restando cerca de 23 milhões. Em Zâmbia está a Vale, na exploração do cobre.
Na Tanzânia está a Petrobrás. Talvez por isso a generosidade tenha sido grande com esse país, pobre, mas de economia estável, onde o PIB por pessoa é de 1.500 dólares anuais. Dos 236,9 milhões da dívida, serão pagos apenas 33,3 milhões. Um perdão de 87% da dívida. As contas da Petrobrás são altas, mesmo...
Em fevereiro deste ano a revista “Exame” publicava matéria dizendo que o Sudão estava no radar das empresas brasileiras: “Eis o que eles encontram lá: taxas de juro que aqui são um sonho, reservas de petróleo de 5 bilhões de barris — volume maior do que o da Noruega, 13º produtor mundial —, oferta de água que permite extensos projetos de lavoura irrigada e 100 milhões de hectares disponíveis para a agricultura, o dobro da área de grãos do Brasil”. Atrás do sonho estão a Andrade Gutierrez e mais uma dezena de empresas, e, novamente, a Petrobrás. Ainda se recuperando de uma guerra civil, o Sudão tem 30% da população analfabeta, embora o PIB por pessoa seja de 2.800 dólares. A desigualdade social, lá, é um abismo. Será que foi por isso que o perdão para o Sudão abrangeu 90% da dívida, caindo de 43,5 milhões de dólares para míseros 4,3 milhões? Será?
A Odebrecht está fazendo perfurações para um consórcio petrolífero no Gabão. Este país, cujo PIB anual por pessoa é de 16.400 dólares (muito maior que o do Pará) negociou apenas a liquidação antecipada da dívida, eliminando os juros que ainda viriam sobre 24 milhões de dólares. Não teve perdão. Teve desconto.
O Brasil mantém com o Senegal acordo de cooperação para defesa, que já rendeu a venda de três aviões da Embraer e operações militares conjuntas.
A Petrobrás está lá desde 2007. A Atech também. O reescalonamento da dívida de 6,9 milhões de dólares envolveu o perdão de 2,9 milhões, o que não é muito para um país que tem uma dívida externa total de 4,3 bilhões de dólares (2012) e um PIB por pessoa de 1.900 dólares anuais.
A Costa do Marfim é um país desmantelado pela guerra civil de 2011, que deixou 3 mil mortos e 50 mil desabrigados. O petróleo e o cacau sustentam a economia e respondem por um PIB por pessoa de 1.600 dólares anuais. No caso deste país, esse PIB não quer dizer muita coisa: a economia é garantida por PMCs (Military Private Companies), e vive em permanente crise. O Brasil está de olho, lá, no petróleo e na venda de armas leves. O perdão foi enorme: 86% do total da dívida, no montante de 7,7 milhões de dólares. O país deverá pagar o remanescente (1,2 milhões) de quatro vezes sem juros. Neste caso, o Brasil acompanhou o Japão, que perdoou integralmente, e o FMI, que reduziu bastante a dívida desse país.
O petróleo possível também é o motor do interesse no reescalonamento da dívida de São Tomé e Príncipe, duas ilhas com menos de 200 mil habitantes que falam português e crioulo, têm 2.300 dólares anuais de PIB por pessoa, e ficam no golfo de Guiné. O total da dívida, de 4,3 milhões de dólares, teve seu vencimento adiado, sem juros. A economia local vem crescendo, por conta do da descoberta recente de petróleo em suas águas territoriais, que se limitam com as da Guiné, onde a Vale já está, numa relação difícil.
Às vezes dá vontade de ser de um país, não de um Estado federado. Porque os Estados federados, principalmente os exportadores, como o Pará, estão sufocados. No caso paraense, a retirada do ICMS das exportações praticamente congelou a ação de governo na montagem da infraestrutura para o desenvolvimento. Há anos e anos o Pará equilibra a balança comercial brasileira e é punido por isso.
Lançamento A partir de sábado próximo, dia 22, meu livro "Eia! Avante, brasileiros!" já estará disponível. É um pequeno romance construído a partir da vivência paraense da II Guerra Mundial. Muito obrigada a quem comprou antecipadamente, me ajudando a publicá-lo.