terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Portinari e o mensageiro

Vou contar esta história, guardada comigo há muito tempo, porque estou cansada da falsa ideia de que são as coisas grosseiras que agradam o povão. Essa falsa ideia, que baixou o nível da televisão para o insuportável, que proporciona decorações monstruosas nas ruas, tem imposto um preço muito alto para toda a população, obrigada a se acostumar com o ordinário, o mal feito, o feio, como se fosse elegante e belo. No entanto, quando a plebe rude – como a chamou Miguel Gustavo – se depara com arte, arte de verdade, reconhece e vive a beleza.

Devido a razões legais, vou contar o milagre sem dizer o nome do santo. Mas acreditem que é uma história rigorosamente verdadeira, e pelo menos uma das personagens vai se rever aqui e, talvez, sorrir com a lembrança.

A organização onde tudo aconteceu é enorme, espraia-se pelo Brasil todo. Rigorosa nas normas e nos fazeres, internos e externos. Controlada e eficiente, sabe exatamente quantas caixas de clipes estão em uso num dado momento – imagine quanto às coisas de valor.

Todos os seus principais escritórios eram ornamentados com obras de arte de um acervo que cresceu e se valorizou lentamente ao longo dos anos. Pinturas, esculturas, móveis, cada escritório tinha seu conjunto que simplesmente ficava ali.

Dá-se que num determinado ano, quando as obras de Portinari chegaram aos preços dos grandes da pintura, o que aconteceu depois da venda de um quadro por quase um milhão de dólares, a matriz resolveu que os quadros dispersos pelo Brasil deveriam ser recolhidos para receberem tratamento adequado – tanto artístico, como de segurança – e, assim, deu ordem para o escritório daqui para que mandasse, sob cuidados extraordinários de seguros e que tais, os Portinari, “cuja relação vai anexa”.

Prontamente o diretor do escritório se dispôs a cumprir a ordem. Mas, desolado, constatou que faltava um dos quadros. Uma mulata, logo uma mulata!, o ícone de Portinari, sua marca e sua palma!

Durante uma semana vasculhou-se o prédio, reviraram-se arquivos – será que o quadro já fora retirado pela matriz e ninguém se lembrava? – o encarregado da busca interrogou os chefes, os subchefes, as secretárias, os funcionários graduados, o chefe da segurança. Nada. Nenhuma pista.

O diretor, desconsolado, já previa toda uma corte de horrores a partir da comunicação de que um Portinari desaparecera ninguém sabia quando nem como – no mínimo, sua demissão do cargo, sem falar em tudo o que a imaginação aventa numa situação dessas. Preparava-se para o pior e, assim, deixou para o último dia do prazo o comunicado fatal.

Na véspera desse dia, ao entrar no prédio do escritório, o diretor avistou um encanecido senhor de poucas letras que envelhecera na firma fazendo limpeza e servindo de mensageiro. Pensou que talvez o homem se lembrasse do quadro, desse uma pista.

- Um quadro de uma preta bonita, é esse que o senhor está procurando?

E ante a resposta positiva:

- Ah, esse... eu sei onde está, vamos lá.

Quase sem acreditar na boa sorte, o diretor acompanhou o homem elevador acima. No último andar, entre os quadros de força e a caixa d’água, havia uma saleta mínima, que outrora servia como depósito de ferramentas e material de reserva para as instalações.

- Aqui é meu gabinete, chefe.

Ali o homem fizera um cantinho para si, com uma velha mesa e uma cadeira. E ali estava, gloriosa e perfeita na sua solidão, a mulata de Portinari.

- Sabe, chefe, esse quadro, ninguém dava bola pra ele... Cada um que chegava na sala, pedia pra trocar. Aí eu trouxe pra cá, eu gosto de olhar para ela! É muito bonito, esse quadro.

Entregou o quadro para o diretor exultante. Ficou triste porque não o veria novamente, espantado quando soube o valor do quadro e quem era o autor, e aliviado ao ser informado que não fizera nada de errado.

Pouco tempo depois, se aposentou, que já completara o tempo fazia mais de cinco anos. Ficara no serviço somente porque as pinceladas de Portinari haviam tocado o fundo de sua alma.