terça-feira, 7 de julho de 2009

O consumido

Havia quem negasse sua humanidade: “Ele se transformou numa coisa! Não é mais gente!”
Havia quem invejasse e quem tivesse pena. Havia quem não entendesse, mas todos admiravam o dançarino, mais que qualquer outra coisa.

A aldeia global repete o quarup, desta vez em rosas vermelhas. Mas a fórmula é a mesma, secula seculorum: velórios longuíssimos, carpideiras autênticas ou falsas cercam o ritual da morte. Pessoas ferem os rostos, ou riem.

A diferença é que o morto foi, literalmente, consumido pela aldeia; ele não conheceu o cotidiano comum, as parcelas simples de dor e alegria, de partidas e chegadas, do velho e do novo. Ele se tornou, não uma coisa, mas um ciborgue mental, lincado de tal maneira ao sistema social que quaisquer de seus gestos e movimentos movimentam a máquina, e em tanta intensidade, que tornam impossível a individualidade. A pessoa se torna um ser coletivo, um produto; seus gostos e suas idéias são marcados pelo sopro alheio. Provavelmente ele desistiu da solidão necessária: e daí a fuga contínua através das idéias mirabolantes e da droga.

Como ser coletivo que é, ele apenas começou a morrer. Levará muito tempo até que vire uma simples referência, como é hoje Boris Karloff, por exemplo. Na época de Boris, o mundo apenas começava a ser uma aldeia global; hoje, a globalidade da aldeia não permite uma morte fácil para um ciborgue destes: sua memória continuará movendo a máquina, até que se consuma a última lembrança.

Ainda assim, as carpideiras continuam acompanhando os enterros, relembrando a todos que, para além do social está a carne e o osso, o nervo e a pele. E que, embora o sistema social devore gente, não pode existir sem gente.

Michael Jackson, à deriva, numa família estranha e num estranho mundo de paradoxos em que a liberdade total era também o total aprisionamento, viveu para produzir dinheiro – uma indústria montada numa única pessoa – e ainda assim conseguiu produzir alguma arte original. Esse toque de qualidade dentro da armadilha da produção enlouquecida do show que não pode parar – esse toque que vem do talento e do amor à arte – provavelmente gerou o desespero que o conduziu, afinal, à ruína. Não é possível para alguém conviver com a ausência continuada de si mesmo, quando existe um eu criador que precisa se manifestar.

E aí eu fico pensando nas mais de cem mil pessoas que seguem o Luciano Hulk ou o Marcelo Taz no twitter. Ou na audiência do BBB e dos outros reality shows. E Brizolla falando dos grandes rebanhos humanos destes tempos. E dos rebanhos atirando algumas reses aos crocodilos para que o restante atravessasse o rio. E Michael Jackson de novo.

Similar, mas diferente: reses e crocodilos são espécies distintas.

E é da tradição e da história humanas o sacrifício de iguais em nome do coletivo: os mal formados, os inimigos mais fortes, as virgens para aplacar os deuses... e Michael, e outros como ele, para que o sistema social funcione?

Definitivamente, eu penso em Michael como o consumido. E aí, vê-lo dançar é como olhar um belo rio condenado; me dá tristeza.