quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cinzas

Cinco dias de chuva incessante no carnaval de Belém do Pará. Alguns teimosos foliões foram às ruas, em blocos desanimados, e outros, mais teimosos ainda, foram assistir ao desfile das escolas de samba e blocos, molhados até os ossos, fantasias e alegorias sob um denso cortinado de água.

Belém insiste com um carnaval impossível. Fevereiro chove e chove; e há mais chuva em março, mais as marés do equinócio. Tom Jobim talvez jamais se deu conta, mas Águas de Março se aplica a Belém como uma luva – parece ter sido composta aqui, nesta época. As torrentes caem de imensas pirâmides de nuvens, ou brotam do chão no refluxo do mar doce, diante do salgado. Belém faz seu mergulho anual e sai para uma atmosfera absolutamente limpa de resíduos, purificada, sob um sol de doer, e um céu que não consegue ser azul, de tanta luz.

Mas as autoridades insistem no formato carnavalesco “dos outros”. A maioria das pessoas, mais sensata, ganha o mundo: vai para as águas frias dos igarapés no interior; para as praias amareladas pelo Amazonas no Marajó; para as praias cheias de ressaca no litoral atlântico, para a animação dos “sujos” de Óbidos, Cametá ou Vigia; ou para qualquer outro lugar do Brasil. Construiu-se um sambódromo a céu aberto, o que é uma incoerência: neste ano, no primeiro dia do desfile oficial, menos de cem pessoas ocupavam o espaço dimensionado para milhares...

E o resultado é que a temporada de carnaval de Belém está reduzida a dois extremos: grandes grupos religiosos rezando e meditando, numa ponta; grandes grupos de bebedeiras mortais, numa outra. Entre um e outro extremo, algumas escolas de samba conseguem sobreviver, outra despertam somente para gastar a verba oficial e, com as cinzas, voltar à sua inexistência, e a maioria silenciosa fica em casa vendo tevê, num tédio quebrado apenas pelas ocorrências policiais.

Alguém me fala de resgatar o espírito dos blocos, da irreverência e das fantasias, circulando pela cidade. A natureza, entretanto, determina o preço, e ele é impossível de pagar. Melhor seria procurar outra receita, e esta tem que considerar a chuva, sem apelação. Ou seja: tudo tem que acontecer a céu coberto. Tem que ser original...

Eu gosto de carnaval, da alegria solta e sem freios. Mas cada vez mais esse período é apenas um feriadão em Belém – debaixo d’água, o que quer dizer feriadão de trabalho. Seja doméstico, seja profissional. Sem nada de diferente.