segunda-feira, 21 de maio de 2007

Dias de devassa

Lá foi a Polícia Federal em mais uma ribombante operação.

Lembra-me um antigo poema de Raimundo Correia, um romântico quase esquecido, de sonetos parnasianos inesquecíveis:

“Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais, e outra... Enfim, dezenas de pombas deixam os pombais...” e por aí afora até terminar: “Mas aos pombais as pombas voltam..”.

Rápidos habeas-corpus levaram de volta aos pombais as primeiras pombas despertadas, e as outras seguirão o mesmo caminho: mais uma vez a PF prende primeiro, sem denúncia, sem investigação, sem prova que permita o combate sério à impunidade.

A tevê exibe uma ponte solteira no Maranhão – sem estradas, só mato em volta – mas a pergunta correta é: “Cadê a estrada que deveria estar aqui?” E se forem procurar a estrada, vão encontrar talvez histórias escabrosas de retaliação política, de um partidarismo que inviabiliza qualquer planejamento de Estado. Ou talvez um corte de orçamento, um contingenciamento que afetou o governo de oposição ao poder central. E, no final, um ministro de Estado que autorizou a ponte antes da estrada, ou autorizou o corte de recursos para a estrada.

E ainda se chama Gautama, a empresa – usa o nome de Buda em vão, ou melhor, para fazer tudo o que Buda condenaria: ganhar dinheiro e lucro fácil, procurar as trevas, antes que a luz.

É no mínimo estranho que a Polícia Federal, baseada em grampos telefônicos, peça a prisão de um governador de Estado, no exercício legítimo de seu mandato, sem denúncia formalizada. Mais ainda porque a fiscalização das contas públicas parece ter passado diretamente para a PF: a União não entra com os processos administrativos e judiciais para ressarcimento do que acredita ter perdido de dinheiro; nem sequer vai atrás do dinheiro, através dos mecanismos fiscais que dispõe. Manda prender. Gasta alguns milhões prendendo gente que vai ser solta no dia seguinte. E deixa nos contingenciamentos e cortes orçamentários o trabalho que mais interessa à Nação, que é o combate ao tráfico de drogas. Qual a prioridade da polícia federal, afinal de contas?

Igual à ponte solteira do Maranhão. Tem uma ponte Navalha: cadê a estrada de trabalho policial que deveria continuar a ponte de um lado e do outro? Cadê o cabo da navalha?

Deste jeito, começa-se a duvidar de que a mão que segura a navalha seja mesmo de um barbeiro profissional. Ou de investigadores dedicados. Porque não há desmoralização maior para o aparelho policial que o prende e solta. E essa história de botar a culpa no Judiciário já cansou: as razões das prisões devem ser consistentes, e ponto final.

Aliás: administração pública é caso de polícia?

Os alicerces do muro

Mais uma vez o governo tenta, por várias maneiras, instituir mecanismos de censura na livre manifestação. Ouço o Ministro da Justiça dizer na televisão qualquer coisa como a liberdade de expressão é sagrada, mas a proteção da sociedade também é.
Este tipo de argumento, com palavras variando conforme a época, mas exprimindo a mesma coisa, pode ser encontrado em todas as fases históricas brasileiras, e, abrindo espaço para o mundo, nos alicerces de todos os governos fortes.
Governo e imprensa, no Brasil, vivem um conflito permanente. A estrutura de poder brasileira é imperial: como em todos os países de grande extensão territorial, a manutenção da unidade conduz à hipertrofia do poder central. E, em conseqüência, a um sistemático conflito com a imprensa.
Esse conflito é essencialmente político. O argumento do ministro é apenas o confeito do bolo, destinado a mobilizar setores sociais ativistas, cheios de boa vontade e ansiosos em defender suas causas, para servir de cobertura açucarada, disfarçando a massa amarga que será servida aos cidadãos.
Os freios da imprensa são sociais. Não existem outros. A imprensa reflete a sociedade a que se destina. A interminável história de jornais e revistas falidos – dos intelectualíssimos até os degradantes, passando pelos semi-especializados – mostra com clareza meridiana que, ou se trabalha de acordo com o público, ou o público se afasta. E aí não adianta ter veículo de comunicação, porque a comunicação deixou de existir.
Mas jornais, revistas e mídia audio-visual têm um peso político determinado. Ele não é tão grande como parece, nem tão pequeno como os governos gostariam que fosse. Mas é exercido conscientemente: as conseqüências de uma notícia estão intimamente ligadas a ela, e não há jornalista, hoje, que não faça a sua seleção de noticiário, dentre as montanhas de informação do cotidiano, sem considerar o que vai acontecer depois.
Essa consciência do exercício político da imprensa é que incomoda os governos.
Hoje, particularmente, em função da herança maldita deixada pelos governos militares e seus vinte anos de censura: por mais que lesse os jornaizinhos proibidos, o ser social chamado Lula foi moldado com jornais sob censura. E, como ele, toda a geração de dirigentes políticos de hoje, no Brasil. Mesmo os que se consideram mais democratas, mais comprometidos com as liberdades, deslizam, muitas vezes sem perceber, para a zona cinzenta do controle da expressão, em nome do que chamam de responsabilidades. A censura de que foram vítimas é um dos componentes da base de sua personalidade política; está no alicerce do muro que sustenta o poder que eles exercem.
E é esse, exatamente, o mal terrível da censura: ela projeta seus resultados no tempo, ela altera a história mesmo depois da era em que foi exercida, porque mutila o pensamento das pessoas. Quando os governantes e a população do Rio de Janeiro pede que tropas do Exército subam os morros, estão simplesmente exprimindo algo que lhes foi incutido no governo militar: a imagem salvacionista das Forças Armadas, do tempo que estas Forças eram a grande polícia nacional.
A censura priva o cidadão de estabelecer seus próprios parâmetros. Ilude-se quem pensa em “salvar” a infância estabelecendo horários de exibição de programas. A infância apenas dormirá mais tarde; ela tem sua cota diária de vida real dramática, no acidente que testemunha, na violência doméstica que de vez em quando sobra para ela, no medo dos bandidos e da polícia, numa infinidade de pequenos episódios cotidianos que a censura jamais vai alcançar. A infância está exposta a drogas em todos os lugares que freqüenta: não vai ser a televisão que vai conduzi-la. Pelo contrário: a televisão vai lhe dar melhores condições de criar seu próprio código, porque lhe passa a informação interpretada, que o choque da violência testemunhada não tem.

As tentativas feitas neste governo para controlar a imprensa têm fundas raízes, pois. Identificar essas raízes e isolá-las – porque não é possível erradicá-las – seria o ato mais democrático e de melhor serviço social que os governantes poderiam praticar, hoje, atendendo o curto, o médio e o longo prazos da construção da sociedade brasileira.

Heranças malditas

Já se passaram quarenta anos do golpe de 64, e dezoito desde a Constituição que repolitizou o país. No entanto, os efeitos funestos de vinte anos de governos discricionários ainda não cessaram.
Algumas heranças dos governos militares são boas – o crescimento econômico é uma delas. Mas mesmo essas boas heranças não são suficientes para compensar o mal causado pela censura e pela organização policial em moldes militares. Estas duas respondem por grande parte dos dramáticos problemas que o Brasil enfrenta hoje. Elas geraram efeitos perversos na mente das pessoas: no primeiro caso, entre outras razões, pela perda de parâmetros de julgamentos públicos, entre o que era um país governado pela força, e um país onde o debate é livre; no segundo caso, pelo tratamento dos criminosos – que, queiramos ou não, são cidadãos “iguais perante a lei” – como inimigos de guerra.
Foi nos governos militares que as guardas civis e as polícias dos Estados foram militarizadas. O aparelho de segurança pública confundiu-se com o aparelho de segurança de Estado; as Polícias Militares surgiram como uma espécie de sub-Exército, e a elas se aplicou o conhecimento militar.
O aparato militar é voltado para a guerra; o conhecimento é voltado para a defesa nacional e para a destruição do inimigo. Ao se aplicar nas polícias o conhecimento militar, elas passaram a ser preparadas para vencer, esmagar, destruir. Isto é muito diferente do trabalho policial, que consiste basicamente em pacificar, investigar, encontrar culpados e detê-los. O trabalho militar é, por natureza, rápido e violento; o trabalho policial é paciente e só se torna violento quando há resistência. O soldado cumpre ordens e age em conjuntos, maiores ou menores, sempre sob liderança; o policial tem que tomar decisões todos os dias, e na maioria das vezes trabalha sozinho.
Há uma faceta militar no trabalho policial; mas ela não significa nem um décimo do que é demandado pela atividade.
Ao mesmo tempo, ao uniformizar os procedimentos, a formação, o armamento e a carreira dos policiais militares, em todo o Brasil, os governantes criaram um espírito corporativo nacional. Hoje, a polícia militar tem vinte e oito cabeças, uma em cada Estado da Federação, mas é uma só hidra: nenhuma mudança, nenhuma reforma, nenhuma alteração mais profunda pode ser feita se não for consensual entre os comandantes, que sabem perfeitamente que têm sob suas ordens mais de trezentos mil homens armados e condicionados à corporação. Os resultados da primeira reforma radical realizada, no Rio Grande do Sul, estão aí para quem quiser analisar, e revelam, por inteiro, que a corporação só é múltipla na aparência.
A visão de guerra permeia a atividade das polícias militares. Desde 1990 que centenas de experiências foram realizadas no Brasil, em todos os Estados da Federação: conselhos de segurança e justiça, ações de policiamento comunitário, ações de inteligência policial – nenhuma delas conseguiu alterar significativamente a forma de agir dos policiais militares, nenhuma conseguiu reduzir a importância dos quartéis, nenhuma conseguiu reduzir a violência nas ações policiais.
Desde essa época discute-se amplamente segurança pública. Mas não se discute a revisão das polícias militares: é como se devessem ser militares, e ponto final. Sequer se discute o que é um policial militar; são militares. Fim.
Essa visão leva para que se faça guerra, disfarçada com vários nomes, dentro de casa. Mas a bala perdida que mata, tem um disparador histórico, ainda não revisto. E, enquanto essa herança não for inventariada, partilhada e transferida para quem de direito, o espólio mau permanecerá, como um tumor extremamente doloroso.

Ladrões & ladrões

Há alguns anos o deputado Jáder Barbalho foi preso, com grande estardalhaço, algemado e acusado de ser um ladrão.
O deputado Jáder Barbalho é hoje conselheiro do Presidente da República, que chegou a beijá-lo no alto de um palanque eleitoral.
Há gente que abomina o deputado e há gente que vota nele.
Dessa contradição, independentemente do ser-ou-não-ser do deputado, há pelo menos duas reflexões a fazer, uma teórica e outra, prática.
Vou fazer a primeira nesta crônica, e deixar a segunda para a próxima.
A primeira reflexão diz respeito a uma mudança de um dos componentes do sistema de valores éticos em que se move a sociedade. Esta mudança diz respeito à honra pessoal. Nitidamente, ela deixou de ser importante como elemento de prestígio social, respeito e até mesmo exercício de poder. A honra pessoal, numa definição simplista mais eficiente, consiste no exercício dinâmico da integridade – a fidelidade a princípios, expressos ou não em leis, que asseguram o respeito aos direitos das outras pessoas – e a percepção social desta integridade. Ela está sendo relegada a segundo plano por outro componente do sistema social: a capacidade de realizar, de alcançar metas, de obter resultados, seja em que campo for.
O caso do deputado relaciona-se a milhares de ocorrências, muitas delas bem longe da política partidária, ou do exercício do poder republicano, mas que têm o mesmo motor: obter um resultado determinado, apelando para o subterfúgio, seja ele ilegal ou não. Não importa que todos o percebam, desde que o enganado – seja uma instituição, seja uma pessoa – não tenha como saber ou como reagir.
Isso é consubstanciado numa frase clássica: os meios justificam os fins.
Ou, à brasileira, na cultura da esperteza.
Mas os meios não justificam os fins: mesmo na guerra, que é a situação social mais dramática e onde os resultados imediatos são imprescindíveis, há limite para os meios a serem empregados, e a convenção de Genebra, pelo simples fato de existir, demonstra isso; e o resultado da cultura da esperteza é uma brutal precariedade na garantia de todos os direitos, situação, aliás, que a sociedade brasileira vive hoje em todos os setores de vida.
Então alguém vai dizer: é uma crise de valores. É, de fato, mas a palavra “crise” não significa “pior”. Crise quer dizer mudança drástica. Em algum momento os espertos precisarão de menos precariedade, e os meios terão que ser controlados, ou teremos terroristas por toda parte.
E existem milhões de pessoas íntegras, para quem a honra, enquanto percepção, pela sociedade, dessa integridade, é o reflexo de uma conduta em que as contas são primeiro prestadas a si mesmo. Essas pessoas, que se recusam a cultivar a esperteza e, nas suas decisões, pesam tanto o resultado como a forma de fazer, são extremamente importantes no contraponto da crise: elas só precisam de saber que não são solitárias e que sua firmeza é que impede o caos, criando limites claros de opinião pública na percepção da sociedade.
Mesmo que a desonra more o planalto central.

Questão de competência

Disse, na última crônica, que a contradição que cerca a situação do deputado Jáder Barbalho merecia duas reflexões, uma delas prática, que é a que eu vou abordar agora. Trata-se da qualidade da investigação.
Uma das boas coisas do direito penal brasileiro, lei e doutrina vigentes, é a cautela quanto à prisão. O princípio é que deve ser preso quem for condenado. Antes disso, só em caso de flagrante ou preventivamente, quando o acusado oferece risco para terceiros ou para a investigação.
Ou seja: nos casos em que não há flagrante; quando o acusado não ameaça ninguém; e nem sua liberdade obstrui a investigação, a prisão só deve ser realizada com a condenação.
Este dispositivo exige que a investigação feita em torno do acusado seja competente, de forma a coletar provas e estabelecer de forma clara que houve delito e foi o acusado, e não outro, quem o cometeu. Para isso existem os mandados de busca e apreensão, as diligências, as tomadas de depoimento.
No entanto, da mesma forma como aconteceu com o deputado Jáder Barbalho, temos visto, nos últimos tempos, multiplicarem-se as prisões preventivas escandalosas, ou seja: prisões feitas somente com indícios, ou a partir de investigações mal feitas e provas frágeis, mal coletadas e, até, para tomada de depoimentos. Pessoas públicas, com ou sem reputação duvidosa, são expostas, em condições vexatórias, por um ou dois dias e, depois, soltas, sem que se termine o processo, sem que haja julgamento e sem, muitas vezes, qualquer satisfação para a sociedade.
Essas prisões rendem noticiário, mas são uma cortina de fumaça para a realidade da incompetência da investigação. E o resultado delas é tão somente um enfraquecimento cada vez maior do Judiciário, do aparelho policial, da confiança dos cidadãos na capacidade social de punir-se o crime. Há quem acredite que dois dias de execração pública para alguém que se mostrava acima da lei justificam tudo. Mas esse argumento é tolo e perigoso.
Tolo porque, se constatada a veracidade da acusação, dois dias de execração pública são punição muito pequena, desproporcional ao delito. Perigoso porque esse argumento, de forma nem muito sutil, mas eficiente, fortalece a prepotência e a arbitrariedade. E se aceitarmos que membros da polícia e do judiciário “forcem” a lei para conseguir essas prisões, estaremos aceitando a investigação mal feita, não só no caso do deputado, mas em todos os casos; estaremos tirando os freios das pessoas que detém o poder de prender e julgar, e deixando que elas usem apenas o seu arbítrio para isso – permitindo justiceiros onde deveria haver agentes da lei.
Esse é um dos caminhos que desembocam no mar de violência em que estamos mergulhados. A incompetência de investigar, de organizar provas que não permitam dúvidas, de formalizar corretamente os processos e oferecer a acusação completa, acaba permitindo o adiamento indefinido do julgamento e, com isso, a impunidade aparente. E é esta que permite que uns e outros desafiem abertamente a sociedade e substituam a honra pelos resultados, mesmo que fraudulentos.

Na rede

Na rede

Pois é, agora saiu.
Ainda não é exatamente um blog, mas está no caminho, que vai ser um pouco demorado, porque, explica-me o Osmar Arouck, trata-se de tecnologia ainda em construção, como tudo na rede.
E fui convencida a sair do reduto do e-mail para a página pública através de uma série de argumentos que envolvem deste proteção anti-spam e anti-deturpações até etiqueta (no sentido de boas práticas) no uso da correspondência eletrônica.
Em alguns dias, aprendi que você estará quebrando a privacidade de terceiros se mandar listas de endereço encabeçando o seu e-mail, o que praticamente inviabiliza o uso de grupos de distribuição de correspondente; descobri que há programas baratinhos que fazem o serviço de distribuição com o sigilo necessário; compreendi que não há como evitar o tititi na rede, e que é necessário ter um local onde alguém possa checar se o que recebeu assinado por alguém é mesmo desse alguém, ou é o que esse alguém escreveu; além disso, no espaço público da rede, globalizado, a legislação nacional alcança apenas um trecho, e o restante está sob outros governos.
Vai daí que me instalei neste blog, para onde será possível enviar comentários, críticas e sugestões, e que pretendo desenvolver, aos poucos, buscando participar da construção desta linguagem, nesta maravilhosa infinidade de páginas e temas.
Nem tudo o que cai na rede é peixe, e jamais o criador desta expressão, tão antiga que se perde na memória da cultura brasileira, imaginou que se aplicaria tão bem ao espaço virtual. Ao procurar alguma indicação para limpeza de aço inoxidável, encontro coisas tão contraditórias que saio da rede como entrei, ou seja, cheia de perguntas. Isto vale também para a correspondência eletrônica; e sequer se sabe se o nome da pessoa é verdadeiro ou não.
Será que se constrói um mundo onde o quem será menos importante que o que?
Mesmo o que é duvidoso. Um dia destes cai sob meus olhos um trabalho escolar, universitário. O sujeito tinha feito uma busca na rede, com uma só palavra; o que veio, colou numa folha em branco, imprimiu e apresentou. Ele falava de psiquiatria numa prova de direito! Fui saber, de professores, que isso é mais que comum, e que muitos trabalhos são apresentados em duplos e triplos, sem qualquer contato entre os alunos...
Bem, isto é a velha cola escolar, agora literalmente executada com os recursos da informática. E o aluno relapso faz a pergunta cretina: “Porque estudar, se o que eu preciso está ali, ao alcance de um dedo?”
Mas mesmo para que o dedo alcance o necessário é preciso saber procurar, e talvez isso a rede traga de bom: as pessoas vão reaprender a perguntar, mesmo que seja na forma de palavras soltas ou somadas, sem nexo claro entre elas. Já podem perguntar mais do que toda a geração dos anos 60, perguntadeira por excelência, conseguiu fazer. E têm mais respostas do que necessitam.
Essas respostas abrem novos caminhos para o conhecimento, e reduzem as torres: tanto a de Babel como a de marfim, gradativamente perdem importância, porque não é mais necessário alcançar o céu provar que a humanidade alcançou outro patamar.
Até à próxima.

A bolsa e a dignidade

Governo após governo e se ouve: “A Previdência vai quebrar!”
E são apresentadas contas e criados vilões: o charada da vez são as pensões das viúvas.
Geralmente tudo resulta em nenhum aumento nos pagamentos devidos. Passa a época do aumento, todos os números voltam para a forma de banho-maria até que abril se aproxime de novo e se ache um novo vilão. Às vezes, como agora, manda-se uma mensagem de reforma para o Congresso, sabendo-se, de antemão, que ela sairá de lá tão desfigurada que só vai valer para daqui a décadas.
Mas, desta última marola em torno da Previdência, emerge, maciça, a gigantesca cara de pau de um governo que afirma fazer distribuição de renda concedendo os auxílios, que chamou de “bolsas”, através de um sistema eficiente na distribuição, mas absolutamente obscuro na fiscalização e de transparência opaca. Mas que acha demasiado pagar as pensões devidas a quem tem direito, demasiado pagar a remuneração justa para quem contribuiu e trabalhou a vida inteira para garantir a velhice, demasiados os auxílios que são concedidos após meses de perícias e análises técnicas impessoais feitas por dez, quinze pessoas diferentes dentro do sistema previdenciário.
De fato, para o raciocínio fisiológico, melhor dar e tomar, de forma arbitrária mas que garanta gratidões eleitorais, do que assegurar direitos. Melhor chamar o direito de privilégio, e esconder que a esmagadora maioria dos beneficiários das pensões e aposentadorias e auxílios e benefícios previdenciários não ganha mais que um salário mínimo. Existem uns dez por cento que ganham mais? Então, vamos nivelar por baixo! Afinal, no raciocínio fisiológico, não existem direitos e deveres: existe, tão somente, filantropia às custas do dinheiro dos outros.
O discurso pretende ser moderno: a classe média que use o sistema privado de previdência. A Alemanha é assim, a França é assado. Deviam citar os Estados Unidos: lá, os cidadãos desempregados têm seu sustento garantido pela Previdência, que sustenta, também, todos os que não podem trabalhar. Lá também existe previdência privada... só que é fiscalizada, controlada, e a estabilidade econômica permite que você contribua por trinta anos e tenha garantida a sua aposentadoria. Ninguém muda as regras no meio do caminho.
A prática, entretanto, é atrasada e rançosa: lembra governos imperiais, em que o César (caesar, czar, kaiser) da vez dava e tomava, os benefícios sempre dependendo da simpatia, da comoção ou da simples vontade. O mundo cresceu, e o César não pode fazer isso pessoalmente: a simpatia, a comoção e a vontade vai descendo os escalões até um funcionário público qualquer, que pode até ser um político, encarregado de verificar as condições de vida do peticionário (ou pedinte, tanto faz) – mas continuam sempre as mesmas simpatia, comoção ou vontade. Oriundas de César.
E, aí, tudo se justifica: a disparidade dos aumentos (três por cento para os aposentados, vinte por cento para a corte); os ataques sistemáticos contra os direitos consolidados; as dezenas de medidas apresentadas como “redução de deficit”, quando este deficit foi criado pelo próprio governo, ao longo do tempo: nos primeiros tempos, não pagando a contribuição patronal como qualquer outro empregador; nos segundos tempos, incluindo na Previdência a aposentadoria rural, sem qualquer tipo de sustentação econômico-financeira; nos terceiros tempos, abolindo a aposentadoria sem idade, o que leva o autônomo a começar a contribuir só quando completa trinta anos, visto que só poderá se aposentar aos sessenta.
Entre a bolsa e a dignidade, o governo fica com a bolsa. E ainda nos chama de cidadãos!