segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O traje da posse

Abro o convite, posse do governador pela manhã e a indicação é seca: traje passeio.
Solenidade a céu aberto, no mínimo 35 graus Celsius positivos. Choveu muito, na véspera; o ar está limpo de qualquer poeira que atenue o sol equatorial.

Saí de casa pensando que a indicação seca do convite permitia um voo da imaginação, porque o conceito de “traje passeio” difere conforme a cabeça da pessoa e o próprio traje é feito, também, conforme a renda. E uma posse, num governo democrático, vai reunir todos os níveis de renda.

Bem, foi um divertido espelho do jeito de vestir no início do século XXI, em Belém do Pará. Roupa é também um conjunto de sinais que informam ao olhar do estranho a classe, a disposição de ânimo, o objetivo de quem veste. E, para além da moda do momento, também informam os parâmetros sociais exigíveis – ou aceitos - numa solenidade dessas.

No caso dos homens, a margem de manobra é limitada, porque o parâmetro “traje passeio” é quase um uniforme: paletó, gravata, meia e sapato.
Mas tem o sujeito do paletó alugado, com uma transparente falta de hábito de envergar o traje: sobram botões e bolsos, a gravata despenca para um lado e o sapato é o único, geralmente sem nada a ver com o resto. Esse tipo não tem punhos de camisa: a camisa por baixo do paletó é de mangas curtas e colarinho, às vezes, até pólo.

Tem o cidadão que cheira a tira a quilômetros de distância. Eles parecem comprar ternos na mesma fábrica e não adianta mudar a cor. A gravata é de nó corrediço, sempre, não sei porque, embora eu ache perigoso um segurança andar com um nó de forca no pescoço; o cinto está sempre à mostra, porque como eles nunca fecham o paletó, ele despenca nos dois lados, por força da gravidade, voeja em torno dos quadris.

Há o impecável. O terno de corte perfeito geralmente é tão discreto que sobressai do resto, principalmente porque a gola e os punhos da camisa são alvíssimos. Nos sapatos, nem um grão de poeira, sugerindo que jamais entram em contato com asfalto e reles calçadas; de vez em quando, um fugaz brilho no pulso indica o relógio.
Em contraponto, o contestador veste um terno claro e põe uma gravata de tal modo e com tal arte que informa imediatamente que ela, a gravata, está ali contrariada, por pura obrigação. Eu observei cuidadosamente um deles: a gravata estava direitinha, com um nó Windsor, mas ele deixara uma ponta tão comprida que ela balançava um “não” redondo. Nos pés desse indivíduo você pode achar um mocassim, um sapato de elástico, um sapato cavado – jamais vai encontrar uma fieira amarrando as abas do rosto.

E tem o militante entusiasmado. Ele pôs o seu melhor paletó, ou talvez seu único terno, que pode ser marrom ou quadriculado, até azul marinho, mas jamais é preto.
Ele toma cuidado com essa roupa, volta e meia olha para ela. A camisa geralmente é de cor, com os punhos, às vezes puídos, bem abotoados. A calça é outra história. Pode ser do terno, mas pode ser jeans, pode ser preta, pode ser de qualquer cor, mas será a melhor do guarda-roupa, e estará muito bem passada. O sapato, como é único, é um social clássico e, por isso, a gente pode medir-lhe a idade comparando a ponta com a moda do momento.

Este homem, se estiver acompanhado, será de uma mulher que foi ao cabelereiro na véspera especialmente para a ocasião, estará com as unhas pintadas na cor da moda, bem viva, e veste, também, o melhor vestido, aquele que usou na última festa a que foi – é decotado e tem brilhos. E como o vestido pede, o sapato é muito alto, combinando com a bolsa, que, evidentemente, é de festa.

Ela encontrará lá um outro tipo de mulher: a que precisa aparecer. Pode ser que esse precisa seja por necessidade, mesmo – fazer-se notar para conseguir subir na carreira ou arranjar emprego – ou pode ser que seja por temperamento. Os cabelos delas ou são louros, ou são negríssimos, ou são mechados de dourado, mas sempre pintados. As mais velhas, com esse perfil, usam tons azulados ou, então, um louro claro, mas fogem do acaju padrão como o diabo da cruz. Elas brilham nas orelhas, nos braços e nas mãos. Os vestidos são planejados para disfarçar ou valorizar o que interessa: curtos, se as pernas são bonitas, decotados, se o colo é notável, semilongos, se há necessidade de cobrir os joelhos. Mas são sempre vestidos.

Diferente desta, há aquela que de longe se apresenta como executiva. Está toda em tons pastel, ou então de preto; usa terninho ou tailleur; o cabelo é correto, a maquilagem é discreta, o sapato é de saltinho e, geralmente, fechado. A roupa cai arrumadamente e não há um fio de cabelo, quanto mais uma gola, fora de lugar.

Há, ainda, as festeiras. A roupa é arrumada de última hora, mas elas capricharam nos adereços e nas pinturas. Nessa categoria, as visões na posse foram diversas e, algumas vezes, até divertidas. Alguém apareceu de longo cheio de brilhos, outra levava um vestido de malha justo, com listras horizontais, que cairia muito bem numa magríssima – mas o caso é que ela era gordíssima. Decotes de todos os tipos e profundidades, e os cabelos, um espetáculo à parte: pirâmides, cachos, presilhas, piranhas, até uma tiara apareceu com uma flor presa do lado. Indiferentes aos resultados, elas fizeram, cada qual, a sua festa: abraçaram, abordaram, tagarelaram. Levaram ao pé da letra a indicação do convite: traje passeio, roupa para passear. E passearam, coloridas, alegres, felizes por estarem ali.

Bem, havia também os que consideram irrelevante o traje pedido: estes estavam sem paletó, eles, e elas usando rasteirinhas. Eram poucos, tentando uma originalidade que passou despercebida na multidão. E apenas conseguiram se confundir com os assistentes de cinegrafistas, que, em roupas de trabalho, enrolavam os fios.
No final da manhã, todos estavam nivelados pelo suor, apertados nas sombras dos palanques ou das mangueiras, pés pedindo trégua. E saíram, todos, com o ato de presença, em traje passeio, carimbado nas retinas alheias, esperando ter deixado uma boa imagem de si.