sexta-feira, 2 de outubro de 2009

De touros, tartarugas e leopardos

Vejo um vídeo de dez minutos de Jose Tomas e leio furiosas declarações de direitos dos animais. Leio um artigo de David Rostchild defendendo a arte em marfins e cascos de tartaruga, e mais furiosas declarações de direitos dos animais. Vejo um vídeo de propaganda de um país nórdico, contra a violência doméstica, que termina com a afirmação de que algumas crianças gostariam que seus pais fossem animais.

Sou informada que as touradas vão acabar em Barcelona: a cidade, redesenhada, está sendo esterelizada, também. Nada de sangue e areia primitivos, entre as torres do século XXI! E que quase a metade dos espanhóis não está nem aí para as touradas. Sou informada, também, que ilhéus do pacífico sul continuam a fazer um tosco artesanato com cascos de tartaruga que – juram eles para as instituições que os ajudam - coletam, pacientemente.

Há muito o marfim e o casco de tartaruga foram substituídos por materiais melhores e mais resistentes, tanto para o uso doméstico como para o artesanato de luxo. Resta um pequeno espaço de colecionadores e joalherias de alto luxo. O mundo mudou, vai continuar mudando, mas algumas coisas permanecem: entre a necessidade humana e as necessidades dos outros seres, a prioridade é sempre humana.

Por exemplo, a batalha em favor dos leopardos das neves. (Encontrei-os na web quando procurava guardanapos, acreditem!). Pacientemente, uma ONG trabalha em três países, com alternativas de renda em comunidades muito pobres (aí é que entram os guardanapos: na Ucrânia) para que elas deixem os leopardos em paz. Mas se um leopardo ataca o curral dos carneiros de uma família, não há o que fazer. Até os ambientalistas mais radicais concordam com sua morte. Mesmo sabendo que eles são muito mais raros que os elefantes portadores de marfim.

A tourada, no entanto, é um pouco diferente disso. O elo de ligação com tartarugas, elefantes e leopardos das neves é o respeito à vida de vertebrados não humanos (sim, porque para invertebrados, a atenção positiva se limita à utilidade deles; no mais, é política inseticida, mesmo). Desconfio que o que torna as pessoas tão passionais quando falam de touradas é menos o sofrimento do touro do que a exposição, de forma crua, do quão podemos ser letais. E, talvez, da própria morte, assim, de cara, com cheiro de sangue e tudo.

Jose Tomas consegue chegar à essência da tourada, que é a afirmação de poder humano: o racional perante o irracional, a calma diante fúria, a lâmina construída contra o chifre, a coragem do pequeno diante do grande, a elegância sobre o desajeito – e a individualidade.

É primitivo, naturalmente, e incomoda por isso: nossa civilização já conseguiu fazer com que a maioria finja ignorar que a sua sobrevivência depende da morte de outros seres. E a morte ritual de um touro nos joga na cara: nós somos assim.

Não sei se Barcelona ficará melhor ou pior sem as touradas; o que sei é que Jose Tomas é um emblema, e, parafraseando Rostchild, não há sentido em renegar nosso lado negro.