quinta-feira, 28 de junho de 2007

A carta do Zé

Leio a carta do Zé Roberto, dou-lhe razão em se recusar a viver numa paranóia, mas...

Zé Roberto poderia talvez ter estudado um pouquinho mais – embora não se peça isso de jogadores de futebol – apenas para tentar compreender sua pátria. Descobriria que na década de 60 um francês descreveu o que chamou de Dois Brasis. Quarenta anos depois, Roger Bastide é ainda atual. As diferenças que ele identificou, Zé Roberto também identifica em sua carta: colonizadores e colonizados, alemães e brasileiros, e, no estudo do antropólogo francês, dentro mesmo do Brasil, as minorias ricas e as maiorias pobres.

Mas quarenta anos depois, essas diferenças se radicalizaram. A discussão iniciada por Bastide foi considerada subversiva nas décadas seguintes, porque afinal de contas, a propaganda dos governos militares insistia na figura do brasileiro cordial. A mascarada deu frutos: os problemas se tornaram muito maiores e, hoje, temos na verdade duas populações dividindo os espaços urbanos. Uma, mora em casa, trabalha em prédios, visita edifícios. E incursiona na rua: anda em carros peliculados e às vezes vai à praça, à praia ou ao parque.

(Sempre me divirto em ver pessoas descerem dos seus carros para correr nas praças, e depois voltarem aos carros para ir para casa... Parece-me meio surrealista, isso).

A outra, vive na rua e da rua, dos locais públicos, e incursiona nos espaços fechados. Toma banho em rodoviárias e aeroportos, usa sanitários públicos, come na barraca do camelô ou da feira, guarda a bicicleta acorrentada na porta das lojas, ou anda de ônibus e a pé. E incursiona em casa: geralmente em busca do quarto, e nem todos os dias.

Como vivem de forma diferente, obviamente essas duas populações têm prioridades diferentes. A população das casas tende à permanência: bens duráveis, planos de médio ou longo prazo, segurança, escola. A população das ruas tente ao efêmero: belas roupas, boa festa, comida descolada todos os dias e aventura.

Novidade? nem tanto. Há coisa de dez mil anos, assírios e caldeus – os primeiros, nômades, os segundos, agricultores – travaram guerras sem conta na Mesopotâmia, exatamente porque tinham prioridades desiguais. No livro “Vocês, brancos, não têm alma”, o antropólogo Jorge Pozzobon conta que, em pleno século XX, os índios makus repetiam a mesma história com os índios tukano. Para os assírios, makus e populações de rua, a propriedade não funciona para acumular, mas para usar e gastar. Ter está na razão direta da necessidade, seja qual for esta: um tênis de grife ou um prato de comida. O esforço é dosado para a satisfação das necessidades mais prementes; se sobra algum, gasta-se, porque o prazer também é uma necessidade premente. O sentido econômico tradicional da riqueza não existe para eles, não tem sentido.

Mas como faz sentido para as populações “das casas”, o conflito é inevitável. Essa situação já existia antes do acelerado processo de urbanização vivido pelo Brasil nas últimas décadas do século passado. Só que as cidades eram menores, e a cultura ainda não era de massa. Hoje, são milhões de pessoas que compõem essas duas populações, uma com medo da outra, uma sem entender a outra, uma tentando se defender da outra e resguardando suas prioridades.

O resguardo das prioridades de Zé Roberto no Brasil exige segurança máxima, e, naturalmente, se ele acha que encontrou um lugar melhor para viver, vai viver em outro local. Sem compreender que sua coragem seria necessária para ajudar os dois brasis a encontrarem um caminho comum e escaparem de conflitos maiores.

E sem memória, também: afinal, o povo alemão não é tão bonzinho assim...

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Ruínas contemporâneas

Nos anos 60, fascinada com os milagres científicos cotidianos, olhava o livro de matemática e sonhava com o aprendizado instantâneo: uma simples fita passada na cabeça, como quis Huxley, ou gravações suaves durante o sono, como descreveu Asimov. Diante dos procedimentos cirúrgicos, sonhava com o dia em que um simples comando sobre o cerebelo faria o organismo expulsar vírus invasores e liquidar bactérias. Acreditávamos, como Orwell, que seria rápido. Mas 1984 chegou e passou, e o século da ciência foi também o século das guerras.

E, aos poucos, o século XXI se desenha em angústia. O volume de informações disponível é um despenhadeiro de conflitos, uma babel de afirmações. Cuidar da saúde tornou-se uma questão econômica, e o que faz bem, e o que faz mal, assuntos de mercado. Saber tornou-se um dilema: o que? os currículos escolares refletem essa desordem, e os exames de avaliação mostram-se de uma ineficácia cruel.

Mas o século XXI também se desenha em sistemas. As estruturas institucionais clássicas, verticais, piramidais, em forma de espirais ascendentes, estão dando lugar a nós e redes. É fácil visualizar isso numa grande empresa de capital aberto: ninguém tem mais que 2% das ações, e os executivos são empregados de uma multidão. Não são mais o chefe, o boss: são nós de uma teia, cujas regras não lhes permitem hesitações. Pode até haver um centro, mas é um círculo de nós em torno do vazio.

E, como sempre, é do ilegal e do irregular que vem a resposta mais rápida. Hoje, a máfia é assunto nostálgico. A flexibilidade da associação criminosa há muito deixou para trás compromissos e fidelidades: juntam-se três, cometem um crime, e adeus. Qualquer um, em qualquer lugar. A estrutura rígida das instituições verticais, grandes, pesadas, hierarquicamente compostas, vai sendo erodida aos poucos.

Escola são instituições assim. Elas estão ultrapassadas e defasadas. É certo que deve haver um lugar onde deixar as crianças e os adolescentes enquanto os pais contribuem para a produção mundial, mas clássica estrutura escolar está obsoleta. Primeiro, porque é impossível para um professor competir com o mundo de informações disponível na rede de computadores; segundo, porque a hierarquia escolar colide frontalmente com a flexibilidade das relações sociais atual; terceiro, porque a sala de aula tornou-se limitante.

Por exemplo: olho Vênus brilhando no céu e aponto para um menino de cinco anos: “Olha que estrela bonita!” E ele me corrige imediatamente: “Não é uma estrela, é um planeta refletindo a luz do sol.” Nossa conversa, a seguir, foi a que, na década de 80, eu teria com um adolescente: o primeiro ser vivo que foi ao espaço, o primeiro astronauta, o vácuo e as montanhas da lua.

E na escola ele só brinca, desenha e “desenvolve a sociabilidade”...

Escolas são instituições conservadoras por sua própria natureza. Mas as escolas atuais estão sendo esmagadas, erodidas e destruídas. E mesmo os conservadores têm que saber o que conservar e o que descartar. Sob pena de se enterrarem em ruínas, causadas não mais por guerras e bombardeios mas pela simples transformação social.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Amigos

Ai de mim, se não fossem meus amigos!

Ai de nós, se não conseguimos ter amigos!

Mas o que faz com que selecionemos, entre tantos colegas, companheiros de atividades, conhecidos, vizinhos, parentes, aqueles com quem se desenvolve a amizade?

Alguns explicam que existe uma questão de pele: há que haver uma combinação química preliminar, de emissão e recepção de partículas, que faz com que aceitemos ou não um outro ser humano em nossas relações mais próximas. Mas essa questão é apenas preliminar: entre tantos quimicamente compatíveis, somente alguns serão os amigos.

Outros explicam que é preciso ter uma disponibilidade de dar, ou melhor, doar-se.

Ouvir, calar e falar; agir quando necessário; enfrentar dilemas internos na relação com o outro, dilemas geralmente resumidos numa pergunta só: e agora, o que eu faço?

Enfrentar esses dilemas é geralmente penoso, e, se não existe amizade, qualquer um foge deles. Só os amigos sofrem diante da pergunta: devo ou não dizer? devo ou não fazer? como é que será a reação?

Eu e os outros temos defeitos e qualidades. A amizade ajusta esses defeitos e qualidades, de forma a não colidirem. Eu desconfio que escolhemos nossos amigos pelos defeitos, não pelas qualidades – os defeitos que podemos suportar. Aí poderemos perdoar sempre, porque o defeito do outro não nos arrebenta a vida.

Durante muitos anos, interpretei o primeiro mandamento - “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” – no padrão do catecismo: o próximo são todos os outros. Depois descobri um outro ângulo: o próximo ser o próximo, mesmo, o sujeito que está ao lado, porque quanto mais próximo está o outro, mais difícil é amá-lo: mais expectativas temos em relação ao outro, mais dificuldades temos em perdoar, mais queremos receber dele. E eu, que achava esse mandamento fácil de cumprir, verifiquei que está em primeiro lugar na lista porque é o mais trabalhoso de todos.

Os amigos são os próximos que podemos amar com menos dificuldade. Por isso, eles são prêmio, um adicional de afeto que valoriza a vida.

Diferentemente da família próxima, onde existem responsabilidades socialmente demarcadas, a amizade é livre. O afeto entre familiares passa por exacerbadas expectativas, cobranças e esperanças; entre amigos, essas coisas são moderadas, e, por isso, amigos são como oásis para um viajante: reconfortam, refrescam, a gente sabe que ele estará lá na volta, mas não é necessário viver ali.

Mas são indispensáveis para que se viva.