domingo, 1 de novembro de 2009

Voz ao telefone

Atendo o telefone, e uma voz anódina diz:

- Por-gentileza-pedir-a. Maria-Francis-da-Costa-Pereira. Para-comparecer-a...

Desligo. É a segunda vez que recebo telefonemas impessoais para terceiros desconhecidos.

Não tenho o que fazer. Não há como dizer para essa voz gravada que a ligação está errada, que não há nenhuma Maria Francis da Costa Pereira neste telefone. Sabe Deus onde ela deveria comparecer; talvez esteja esperando alguma coisa, talvez seja um aborrecimento qualquer. Talvez seja importante, talvez não; mas é um absurdo, isso.

Faz parte dos abusos contemporâneos, particularmente de empresas e órgãos públicos que têm que atender multidões.

Um dia destes tive que ligar para o Banco Central. Percorri um longo e solitário caminho ouvindo máquinas me dizerem o que fazer e – pasmem! – advertindo repetidamente qualquer coisa assim: preste-atenção-no-que-está-fazendo, porque daqui por diante... tecle cuidadosamente, porque daqui por diante... Toda minha consciência humana se sentiu insultada; humana, mesmo, que eu não errei a palavra: a consciência cidadã já estava ultrajada muito antes, e foi isso que me levou a fazer a ligação.

Meus sonhos passaram a incluir a recuperação da imagem do telefone, aquele objeto fixado com angústia ou carinho, mas morando firme no coração da gente: o toque introduzia uma pessoa. Distante, mas uma pessoa. Desagradável, talvez, desconhecida, às vezes, mas era uma pessoa.

Agora, não. O toque pode introduzir uma máquina. Ou carradas de má-fé.

E a mensagem que decifro (não gosto do verbo decodificar) é: ei, número DX, trate de se enquadrar! você não passa de um grão de pó diante desta organização! reduza-se à sua insignificância!

Pobre Maria Francis da Costa Pereira! A insignificância é tal que sequer consideram eles a possibilidade de ter ligado errado. Afinal, trata-se do sacrossanto Sistema!

Digo sacrossanto porque é assim que atendentes de grandes companhias, bancários, funcionários públicos e empregados outros o consideram. “Meu Sistema não permite!...” – e dane-se você. “Tem que esperar o Sistema”. “Não é isso o que está no Sistema”. E acabou a conversa, como se direitos e capacidade de raciocínio fossem um lixo. Oh, o Sistema!

Ele me fez levar um dia inteiro de tentativas para passar um e-mail – sabem para quem? – para o meu provedor de internet, a empresa que processa meus e-mails! A cada endereço que encontrava repetia a história. E lá vinha o e-mail devolvido, com a seguinte observação: “este é um e-mail automático, por favor, não responda”. O último endereço que eu encontrei estava escondidinho no fundo de uma página, que já vinha de outra, que vinha de outra e de outra.

Se acha que eu estou exagerando, tente. Entre nos serviços de atendimento ao consumidor dos provedores, das agências de atendimento. Encontrará um telefone de atendimento, nunca um e-mail, assim, de primeira.

E essa é outra perversidade com o telefone. Porque o telefone, caríssimos, não gera documento. E mais: quem é que vai se lembrar do que falou numa ligação passada há meses? Além de que a linguagem oral é a maior fonte de desentendidos, principalmente quando, do outro lado da linha, há uma máquina, ou uma pessoa que faz questão de se comportar como máquina, repetindo ad nauseam o que você já disse que discorda.

E sempre podem colocar você ouvindo a musiquinha chata, até cansar e desistir. Quer uma prova? Experimente cancelar um contrato de Velox na Oi.

Eu recebo, volta e meia, pedidos de abaixo-assinados contra a perversidade praticada com animais. Penso em fazer um a favor da... telefonia digna? dignidade telefônica? não sei bem, mas o que eu queria mesmo era o telefone usado sem má-fé. Sem vozes fantasmagóricas - com corpos atrás das delas, gargantas reais emitindo sons, inteligência humana para resolver problemas.

Em favor da Maria Francis e de mim mesma.