sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Desejo de Natal

Foi a Adelina Braglia, amiga de muitos anos, quem desencavou este Drummond, que mando agora para todos vocês, leitores, à guisa de votos de Ano Novo. Exceto o frango caipira e o bronzeado legal, seria, tim-tim por tim-tim, o que eu gostaria de viver em 2008. Como a medida do próximo é a nossa medida, e desejar o bem do outro é o bem que queríamos para nós, vai aí o Drummond inteiro para vocês – que podem alterar os versos que descouberem. Eu troquei – mas só para mim - o frango caipira por um peixe na brasa, e o bronzeado legal por uma bubuia no igarapé.

Desejo a vocês...

Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel

E muito carinho meu.

(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A conta da vergonha

As notícias dão conta de que o governo federal liberou mais de 700 milhões de reais para transferir para os Estados, cumprindo os compromissos que assumiu nas últimas votações realizadas no Congresso. São as chamadas emendas parlamentares, o dinheiro que é reservado no orçamento da União para atender pleitos localizados.

Fala-se mal, freqüentemente, dessas emendas, mas, embora elas tenham sua cota de distorções, elas são uma espécie de respiradouro, na rigidez imperial da administração federal brasileira – é através delas que se atendem pleitos pouco compreendidos, ou necessidades não enquadradas nos programas traçados de cima para baixo.

Elas são tão importantes que se tornaram uma conta de barganha poderosa. Em todos os níveis de governo, as emendas parlamentares só são liberadas pelo Executivo se o parlamento – Câmara de Vereadores, Assembléia Legislativa ou Congresso nacional – for cooperativo. Nenhum outro critério preside essas liberações. O dinheiro só sai para aliados de quem estiver ocupando o Executivo.

A barganha, como sempre, foi feita e não há problema nenhum para o governo federal descumpri-la, fazendo de conta que cumpriu: o exercício orçamentário está pertinho do fim, e os rígidos mecanismos das transferências voluntárias – os assim chamados convênios – impedem que a liberação das emendas seja real. Quem não conseguiu até hoje, dia 20, apresentar as papeladas certas, os projetos inteiros, as assinaturas todas, e a publicação no Diário Oficial, já perdeu a sua cota. A série histórica mostra que somente cerca de 30% das transferências liberadas em dezembro chega ao destino. O restante fica no governo federal, mesmo, morre com o orçamento.

Na barganha deste ano, grande parte do dinheiro transferido se refere a despesas previstas nos exercícios anteriores (2006, 2005) e que o governo federal estava devendo aos Estados, mas não pagou. Porque não pagou? Como diria a irmã Cajazeira, mistéeeerio! Na conta da barganha, ninguém liga se o programa ficou sem terminar, se a obra está pela metade ou se a necessidade obriga: a moeda é de troca, câmbio político, e é como se não houvesse uma população interessada no assunto.

Por isso é que a conta da barganha é a conta da vergonha, câncer de medula na estrutura mambembe da democracia brasileira. A patologia é clássica: desqualifica-se a emenda, dizendo que, como ela é parlamentar, ela é viciada pela corrupção; institui-se um mecanismo duvidoso em torno dela, que é a obrigatoriedade do alinhamento com o governo; deixa-se para cumprir no final do exercício, para, como a heroína de Shakespeare, cortar a língua sem verter o sangue; e, no final, dane-se a população – o poder é que é essencial. O dinheiro fica no Tesouro; a necessidade de sua aplicação que espere uma nova votação no Congresso.

É Natal, e quem é que vai querer saber dessas firulas orçamentárias?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Reforma tributária

Leio uma declaração de Guido Mantega, ministro do Planejamento, dizendo que o Governo pensava desonerar a folha de pagamentos, mas agora, sem CPMF, não vai mais fazer isso.

Estranho que ele toque nesse assunto agora, depois de passada a onda – uma simples desculpa para não fazer o que jamais se pensou a sério em fazer.

Porque toda política de emprego e renda é falsa e hipócrita diante dos encargos da folha. Eles são tão pesados que qualquer redução representaria imediatas aberturas de empregos formais na mesma proporção, ou talvez mais, sem outro trabalho do que uma canetada – e uma diminuição da voracidade fiscal.

Explico: uma empresa cujos empregados tenham a carteira assinada no valor exato que recebem, paga um salário para o empregado e outro para o governo, na forma de tributos e contribuições diversas. A conta é tão alta que responde pela maioria dos fechamentos das pequenas empresas – elas fecham no momento em que necessitam contratar empregados. A oneração, por outro lado, é tão confusa, que não existe empresa que passe imune por uma fiscalização, visto que muita coisa depende da interpretação que o fiscal der à lei, ou da jurisprudência dominante, ou da miríade de portarias e circulares sobre a matéria.

Para compensar a CPMF fala-se em aumento de impostos, refazer a contribuição, e patati e patatá. Nada que reduza a imensa carga tributária a que estamos submetidos. Fala-se até em reforma tributária! Só que para maior...

O pior é que nada se faz para controlar as despesas, a não ser cortar verbas. Saúde e educação, os setores-estrela do marketing eleitoral, são hoje dois poços sem fundo no gasto público. Apesar dos bilhões anuais (algo em torno de 50, para cada um dos setores) mais de um quarto de brasileiros ainda vive sem água potável (inclusive nas grandes cidades, e como se pode falar de saúde sem água potável?) e sem esgotos, e com arremedos de escolas.

Saúde e educação são generalidades. Povo, também é uma generalidade. Saúde e educação para o povo é algo sedutor o suficiente, e vago o necessário para que ninguém discuta porque tanto dinheiro assim é apresentado como indispensável.

Abrindo a caixa preta vai-se ver que o custo burocrático (o dinheiro que se gasta para que os órgãos públicos funcionem) devora de 15% a 30% dos orçamentos. Para saber se o órgão está na faixa dos 15% ou dos 30%, há um indício claro: verificar o volume da papelada circulante. Quanto mais papel, mais custo burocrático. E adivinhe quais são os setores onde há maior produção de papelada?

No segundo escaninho da caixa preta está a lei de licitações. Esta lei foi feita para obras de engenharia. Não é uma lei ruim, e, ao contrário do que muitos querem fazer crer, não atrapalha em absolutamente nada a execução correta da despesa pública, naquilo que se propõe. Mas a lei é falha e incompleta quando trata das despesas de custeio, ou seja, do dinheiro que é gasto em coisas que vão ser consumidas, como merenda escolar e remédios, ou pagamento de serviços prestados – que são o grosso das despesas em saúde e educação. E, hoje, como é uma lei que já tem trinta anos, está defasada em muitos pontos. O resultado é que as prestações de contas em despesas de custeio são, em grande parte, apenas papelada, muito longe das medidas de eficiência, que, aliás, não existem para muita coisa nesses dois setores.

Coisa séria seria atualizar a lei de licitações, e estabelecer padrões de gasto – com redução burocrática e medidas de eficiência – para a saúde e educação. Medidas do tipo: mais saneamento e menos remédios; mais laboratórios e bibliotecas e menos intermináveis reuniões em Brasília; mais informática e menos relatórios, em ambos os setores.

Aí, a reforma tributária seria para menor, não?

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Garota currada (II)

A governadora cumpriu o manual até o fim. Demitiu o delegado geral. O difícil de entender é a causa da exoneração: não foi bem porque o delegado geral foi co-responsável por uma irregularidade gravíssima numa das unidades da Polícia Civil, mas por conta da repercussão de suas afirmações no plenário do Senado.

Como o delegado disse o que pensava, é de se crer que se ele tivesse ficado calado, mesmo pensando dessa maneira, não teria sido demitido. Até porque ele sai, mas toda a equipe de direção da Polícia Civil fica, e o sub - que, com 16 anos de polícia, como fez questão de assinalar, passou a maior parte desse tempo fora dela, em sindicatos, associações e assessorias outras – vira titular. Vai acabar nomeando o ex-delegado geral para um cargo qualquer – que tal corregedor, ou delegado geral adjunto?

É o faz-de-conta-que-me-importo que me irrita. Ninguém está nem aí para o que acontece nas celas das delegacias entupidas de presos. Como disse Míriam Leitão, mulheres ou homens, o que importa é a violência sofrida. Essas pessoas que estão fazendo declarações escandalizadas na imprensa estão cuidadosamente se limitando ao caso da garota, como se ignorassem que os maus tratos são iguais para todos, e o que mudou, desta vez, é que a vítima era uma garota.

Criou-se um mito, nas polícias, de que eficiência na segurança pública é presídio lotado e delegacia superlotada. Isto é um engodo: eficiência, na segurança pública, é crime punido pela lei penal, e, sobretudo, crime impedido. É paz e sossego, não é policial correndo pelas ruas, armado até os dentes, fazendo de conta que é mocinho de filme. É dormir-se sabendo que a possibilidade de um assalto existe, mas é baixa o bastante para que se dispense sistemas de alarme. É investigação, resultados rápidos que poupem o inocente e evitem retaliações, não é fazerem-se barreiras no trânsito incomodando todo mundo e submetendo o cidadão honesto à suspeita infundada.

Hoje, a partir do momento em que o policial aponta alguém como suspeito, ele vira pária. Basta apontar, não é preciso provar. Para a população, se o sujeito está numa cela, é bandido; bandido tem que sofrer; e a polícia, escorada nesse conceito que é tudo o que há de mais vil na natureza humana, permite tudo numa cela.

A Polícia, enquanto instituição, responde pelos presos sob sua guarda, através de seus funcionários – e estes são, também, tanto do ponto de vista moral como do legal, pessoalmente responsáveis. Não é o carcereiro apenas, nem tampouco somente o agente prisional. Reclamar de falta de condições não resolve a responsabilidade. A privação de liberdade não se estende à privação de outros direitos, principalmente à integridade física.

E se o leitor der uma olhada nas fotos de presos que, todos os dias, são exibidas pelos jornais, vai ver que a integridade física é o primeiro direito a ser violado, já antes da entrada na cela. Historinhas de todo o jaez tentam justificar os olhos inchados, os rostos deformados, as mãos roxas e os membros feridos, para dizer que “foi o povo”. Mas as costas largas deste ente mágico, único habitante dos paraísos demagógicos, não cobrem a responsabilidade das polícias. Elas não são “o povo”. Elas têm obrigação de evitar, primeiro, e controlar, depois, os excessos do povo. E se não conseguirem, responder porque.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A garota currada

Eu não queria escrever sobre isso, porque há bastante gente para tanto, e, só hoje, Dora Kramer e Míriam Leitão – principalmente esta - colocam o assunto com firmeza e perspectiva.

Mas há uma coisa me incomodando muito.

É o faz-de-conta do “politicamente correto” com que as autoridades reagem ao assunto.

Faz de conta que a governadora não sabia de que estofo é o seu Delegado Geral, seu amigo pessoal de longa data, seu militante nas lides sindicais, cabo-eleitoral e co-autor do seu programa de governo, área de segurança pública, referência Polícia Civil.

Faz de conta que a governadora não sabe a ineficiência atroz do setor segurança no Pará, em que cada qual faz o que bem entende, onde o rumo se perdeu já faz um tempo, sem programa, sem projeto, sem logística e sem estratégia.

Faz de conta que a governadora não sabe o que significa a quantidade de policiais mortos em serviço, indicador certo de que o caminho operacional está errado – qualquer especialista em segurança pode explicar porque.

Faz de conta que é por falta de dinheiro que acontecem coisas assim.

Faz de conta que o Ministério da Justiça não tem nenhuma responsabilidade sobre o sistema prisional, mesmo se sabendo que é ele que administra todo o dinheiro do sistema, dinheiro oriundo da Loteria Esportiva e contingenciado de forma sistemática nos últimos cinco anos.

(A última ação eficaz no sistema prisional brasileiro ocorreu quando José Serra era Ministro da Saúde e José Gregori, Ministro da Justiça. Eles criaram mecanismos para viabilizar a assistência médica ao preso, via SUS – porque o Sistema Único de Saúde até então ignorava solenemente as casas penais, exceto no Rio de Janeiro – mas esses mecanismos foram totalmente abandonados no governo Lula. Quem teve tempo de implantá-los, avançou; quem não teve ou não pôde, ficou no caminho. E de lá para cá, é só construção de cadeia, mais nada).

Faz de conta que a governadora não sabe, também, que o hospital destinado a assistir os presos (fruto desses mecanismos implantados por Gregori e Serra) continua sem operar completamente.

Faz de conta que quatro milhões de reais para construir presídios isenta o governo federal das responsabilidades que tem.

O manual do político esperto, ou do politicamente correto, manda botar a culpa no governo anterior e entregar a cabeça de quem errou. Manda também desviar a atenção do público, quando a crise é braba. Então vamos negociar a crise com o dinheirinho da União – que, aliás, o Governo Federal tem a obrigação de transferir, visto que ele não constrói presídios e é quem administra o dinheiro para isso - dizer que o Estado estava “um caos”, mesmo contra toda a evidência. Agora, só falta demitir o delegado geral.

E faz de conta que está tudo resolvido.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Hangar

Hangar


Durante anos a fio o segmento turístico (chamado de trade, pelos esnobes) reclamou da urgente necessidade de ter o Pará um centro de convenções, que, segundo eles, conjuntamente com a remodelação do aeroporto de Belém, permitiria o desenvolvimento do setor.

Finalmente, o Hangar foi feito, o aeroporto foi reconstruído, e, tudo moderno, do jeito que foi pedido, apresentado para uso do segmento.

O que se vê, entretanto, é outra coisa.

O Hangar, que deveria ser uma ferramenta para trazer dinheiro de fora do Estado, está transformado numa ferramenta para mandar dinheiro para fora, porque é para isso que servem os shows das bandas e artistas que vêm a Belém. É o grande salão de festas da cidade, mantido e havido pelo poder público, cuja maior parte da receita declarada provém do bolso da população local.

Além disso, a administração é tudo o que há de relapso e inconseqüente, para ser tolerante. No último caça-níqueis que ocorreu ali, no último final de semana, foram usadas carteiras de escola, usadas para cursos, como cadeiras de platéias, sem lugares numerados. A maquininha do estacionamento não funcionou, mais uma vez, e o controle manual provocou um irritado engarrafamento na saída, porque também não funcionou. Permite-se a entrada de bebidas e comidas, tal como num estádio de futebol, e o resultado é o de sempre.

Mas o Hangar foi anunciado e construído, e o trade não se mexeu para ir disputar as convenções, que constituem um mercado altamente competitivo. Inaugurado o Hangar, com o trade paralisado, caberia ao Governo, que o administra, liderar a campanha de captações. Mas para a demagogia instalada, é melhor ter uma casa de shows do que um centro de convenções, e aí está. Mais dia, menos dia, o Hangar terá o mesmo destino do primeiro Centro de Convenções, o Centur: sediará alguma Secretaria de Estado, que a burocracia é ávida de espaços amplos que possa atulhar de papel...

Existe uma certa categoria de políticos para quem o desenvolvimento, a melhoria das condições de vida e a conquista de patamares novos de riqueza são resultados de loteria, ou de milagres divinos. Ou então, simples apropriação do trabalho alheio, baseada na esperteza sem remorsos. Conta a lenda que um desses políticos disse que iria transformar a Estação das Docas no maior bordel do Brasil (a palavra “bordel” está substituída, aqui, porque o termo foi mais pesado). Talvez o Hangar acabe sendo mais apropriado: geralmente é o que acontece com o entorno de uma casa de shows.

Esses políticos não suspeitam que, para conseguir o que se conseguiu no Pará, foi necessário trabalho duro, em níveis técnico e político; negociações exaustivas neste último (para compor as enormes dívidas geradas nos governos Jáder Barbalho/Carlos Santos), e trabalho com hora para começar mas sem hora para acabar, no primeiro. Milhares de pessoas, a maioria delas funcionários públicos de carreira, se empenharam para conseguir resultados, e conseguiram, em todos os setores de governo. O que está sendo feito com o Hangar é um desrespeito com essas pessoas, tenham ou não nomes altissonantes, chamem-se João da Silva ou Paulo Chaves.

A destruição do Hangar pode ser o prelúdio para a destruição da enorme construção realizada, de um Estado do Pará digno, pontual nos pagamentos e em franco crescimento econômico, que conseguiu começar a transformar em riqueza seu enorme potencial. A incompetência em, pelo menos, manter o que foi feito, demonstra a incompetência maior, de realizar. E, nos governos, não existe estado estacionário: parar é recuar, porque a sociedade não espera.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O gesto essencial

No “Viver para contar”, memórias de Gabriel García Marquez, conta ele que, em meio à luta incessante contra a miséria, o pai ausente, sua mãe decidiu um dia que ele voltaria à escola. Mas ele não tinha os papéis necessários, e, no dia aprazado, compareceu aos exames de admissão só com a cara e a coragem. Já fora dispensado quando o diretor da escola decidiu examiná-lo assim mesmo e, literalmente, o descobriu.

Foi assim que Gabriel pôde prosseguir seu longo e rude aprendizado para tornar-se o escritor de hoje. Graças a um gesto essencial, em que o educador ultrapassou os limites burocráticos para exercer plenamente a sua tarefa, soube ver, soube compreender e soube fazer o que devia.

Deve ter tido dor-de-cabeça para manter o aluno matriculado, esse diretor sem nenhum outro futuro senão reger uma escola provinciana e pobre. Mas seu gesto garantiu para o mundo o maravilhoso “Amor Nos Tempos do Cólera”, que viria muito tempo depois, possivelmente depois de sua morte. Pois foi este professor que, além de matricular o aluno, o apresentou a Cervantes e ao cavaleiro da triste figura, replicada no rosto feio e na paixão quase impossível do herói do romance.

Chego aqui a uma encruzilhada nesta crônica. Tenho vontade de prosseguir nestes gestos essenciais, derivados diretamente da vocação ou da consciência, sem nenhuma outra compensação que satisfação íntima - de fazer uma boa coisa - que trazem consigo, mas que, na sua singeleza e simplicidade, têm conseqüências extraordinárias. A razão e Jacques Monod (“O Acaso e a Necessidade”), me advertem que essa é uma idéia romântica - mas o romantismo não é parte essencial do prazer de viver? Por isso deixo-me embalar um instante na idéia de Gabriel não seria o que é sem este gesto; e que todos perderíamos um quinhão de beleza se ele não tivesse sido admitido naquele ano e naquela escola.

Mas há um outro caminho para a crônica, e por ele sigo. Trata-se do educador, do professor que vai além do ensino e, sobretudo, de sua burocracia. Daquele que é capaz de vencer as horas do discurso em sala de aula, das provas para passar e corrigir, e consegue ver seus alunos como pessoas que precisam de algo mais que informação consolidada e transmitida. São eles que conseguem ver o verdadeiro talento, distinguir o diligente, disciplinado e estudioso aluno daquele que traz consigo o selo da diferença – e oferecer, para ambos, a oportunidade de crescer.

De quantos educadores disporemos hoje, nessa selva de escolas em regime de massa, em que o importante é despejar na sociedade pessoas mais ou menos instruídas? Um reitor me disse uma vez que o professor, hoje, trabalha acuado, entre o paredão dos alunos que fazem o que querem, e a pressão da produção que o empurra para liquidar rapidamente programas e provas. A escola se reduziu ao ensino – mas quero crer que ainda haja que apresente Cervantes – ou Manuel Bandeira, ou Malba Tahan, ou até Asimov e Jacques Monod - a um garoto de quarto ano que tem por detrás dos olhos a fogueira que pede a lenha do conhecimento.

Quantos, quantos serão capazes deste gesto essencial?

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Carro zero em 80 meses

Os comerciantes dizem que o que interessa para os pobres é a prestação caber no bolso, não o valor dos juros pagos. Por isso, os fianciamentos de longo prazo, caríssimos, são bem sucedidos nesta categoria, porque, totalmente dependente de crédito, paga em dia.

Eu tenho algumas desconfianças desta tese, apesar das demonstrações sucessivas de que ela dá certo nos negócios – o Banco Real até chamou isso de “participação social”, que cínico! – e volto a pensar que o problema maior está na comprovação de renda.

Explico: existe uma multidão de pessoas com um pé no mercado formal e outro no informal, e essa multidão talvez constitua quase toda a chamada classe C; ela engloba ainda boa parte dos profissionais liberais das assim chamadas classes A e B. Uma renda fixa (o pé no mercado formal) e outra variável, sem comprovação alguma (o pé no mercado informal). Não é possível ao cidadão nessa condição demonstrar para uma financiadora que ganha cinco vezes mais do que o seu fixo, graças às empadinhas ou aos contratos (incluindo consultas) sem recibo. Para essa multidão, as opções são, basicamente, duas: ou junta dinheiro e paga à vista, ou vai para o crédito de longo prazo, na comprovação da renda fixa. Há uma terceira opção, que as operadoras de cartão de crédito já perceberam, mas ainda não conseguiram usar todas as possibilidades: o crédito no cartão, concedido pelo volume de gastos feitos pelo cidadão, e ninguém quer saber onde ele arranja dinheiro para pagar.

A renda informal tem muitas vantagens sobre a formal, dado o sistema tributário extremamente injusto e à morosidade da justiça, a que somos todos submetidos. Da renda informal não se paga imposto (o governo retira hoje metade dos ganhos de quem trabalha no mercado formal, em tributos e taxas), não se paga pensão de ex, não se sofre nem se faz cobrança jurídica (a cobrança é no tapa, e às vezes no tiro, mesmo). De desvantagem, tem o fato de ser precária, ou seja: pode cessar, oscilar bruscamente ou se interromper de vez em quando, e não permitir ascensão social – para mudar de patamar social, o cidadão terá que formalizar sua renda, porque a alteração continuada do padrão de vida não será possível sem raízes.

Por tudo isso é que desconfio que, ao expandir os financiamentos de carro para categoria C, no longuíssimo prazo, as financiadoras estão apenas identificando uma renda informal, por detrás da renda formalizada, porque carro não é só o custo original da compra: são impostos anuais, taxas diversas e, sobretudo, custos de combustível e manutenção. Um ou outro irresponsável compraria um carro sem condições de mantê-lo; a maioria, entretanto, não faz isso. Se compra, é para ter e manter. Porque pode.

Por essa e outras razões é que creio que o país seria bem melhor e menos violento se o sistema tributário fosse mais justo, e o Estado, em seus diversos níveis, menos voraz. A redução de impostos é essencial para que as pessoas não tenham que esconder seus ganhos, e também essencial para que as dívidas não sejam cobradas por meios violentos.

Rejeitar a CPMF deveria ser apenas o primeiro passo no rumo da redução geral de tributos, o que todo o país deseja do fundo da alma nacional.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Poderes encolhidos

Tudo começou há muito tempo, mas se tornou visível quando o então poderoso primeiro-ministro soviético, Nikita Krusthchev, tirou o uma banda de sapato do pé e com ela bateu na mesa. A mesa não era uma qualquer: era a de reunião do Conselho de Segurança da ONU. Estava-se na guerra fria, e a hoje extinta URSS era o contrapeso dos EUA. Diz a lenda que, nessa época, ogivas nucleares apontavam para a Sibéria e para o Kansas, simultaneamente, e citava-se muito a frase de Einstein: “Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com paus e pedras”.

Nikita bateu com o sapato na mesa, destratando todos os presidentes, primeiros-ministros e diplomatas presentes. Nada aconteceu. O gesto virou folclore de um homem mal-educado e temperamental.

Apenas algumas décadas antes, e haveria uma guerra, mercê dos nacionalismos e ufanismos.

Alguns dias atrás, aconteceu de novo. Cháves apresentou em plenário qualificado, com reis e presidentes, sua intolerância de caudilho diante da oposição, ao criticar o ex-primeiro ministro espanhol. O rei da Espanha explodiu – Porque não te calas? – e nada ocorreu, de novo. Desta vez, nem sequer a reunião foi interrompida.

São quarenta anos, mais ou menos, entre um episódio e outro. Nesse período, a globalização foi avançando e solapando o Estado. O primeiro a ruir foi um Estado que não era país: a URSS de Nikita, e justo por não ser país. Sua sustentação era a convenção de governo. Não resistiu à maré que vai encolhendo progressivamente os poderes do Estado.

Já não é possível governar só, fechar fronteiras e isolar um território. A fronteira do meu país está na tela do meu computador, seja qual for o regime. O Irã fundamentalista censura a internet e a mídia. Hackers driblam eficientemente a censura, e a juventude iraniana consegue acesso a tudo o que quer – inclusive mídia pornô e críticas ao regime.

A teia da ciência e da tecnologia é mais poderosa, porque menos casual. Pesquisadores constituem uma categoria cujo compromisso maior não é com um território ou uma cultura, mas com a humanidade. Hoje eles dispõem de ferramentas que lhes permitem ser uma camada uniforme, distribuída em todo o planeta, integrada e interligada em seus vários sistemas e setores. Nenhuma ditadura consegue detê-los ou silenciá-los: eles têm braços e vozes multiplicados, porque sempre são um grupo espalhado no mundo.

A cada geração, reduz-se mais e mais o poder estatal. Estados ainda são poderosos, e ainda existem territórios onde se quer ser Estado custe o que custar. Mas a Guiana Francesa simplesmente recusou ser um Estado, apesar do governo francês oferecer-lhe a independência de bandeja.

A corrosão vem dos diferentes sistemas que se montaram ao longo do último século. O mais poderoso, com certeza, é o de negócios: o dinheiro galopa através dos países, e talvez já haja, numa senda do Everest, alguma latinha esquecida de bebida isotônica. Seria Coca-Cola, se os guias sherpas a levassem na mochila.

Por um lado, tudo isso assusta; mas, por outro, pode-se quase ter certeza de que Cháves vá ser o último caudilho sul-americano – ele será demolido, como estão sendo os fundamentalistas de todo o mundo, pela impossibilidade de fazer cumprir o que propõe. E que o desejo do rei da Espanha vai acontecer, mais cedo que mais tarde.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Ah, os números!

“Eu não gosto de números!”

“Você pode provar qualquer coisa com os números!”

Vocês já devem ter ouvido essas frases, em algumas circunstâncias, principalmente quando, no meio de uma discussão, a pessoa começa a perder argumentos.

Para mim, essas afirmações equivalem a jogar uma toalha no ringue, admitir previamente o nocaute.

Porque são duas tolices monumentais.

Primeiro, todos gostamos de números, principalmente os que retratam dinheiro sonante, sejam onças ou araras, no bolso ou conta de banco.

Segundo, os pobres dos números são convenções indispensáveis para que possamos nos comunicar e nos entender. Conta-se que a geometria começou por causa das cheias do Nilo – todos os anos o rio enchia e tirava os marcos das terras de várzea, e a marola social que provocava era respeitável. A abstração geométrica surgiu para solucionar os conflitos agrários – alguns números, e os marcos voltavam para o lugar anterior, enchesse ou vazasse o Nilo.

Terceiro, quem diz não gostar de números não sabe o que está perdendo. Três letras e dois sinais fundamentam o universo, e é fantástico que o ser humano tenha descoberto, desenvolvido e escrito isso – através dos números. Quem não gosta de número não sabe do que eu estou falando – mas quem gosta, sabe.

A segunda tolice é pior.

O raciocínio exato só admite um resultado, e não é qualquer um. Matemática é ciência exata. Os números são exatos, exceto na filosofia, onde tudo é inexato, até a lógica. Quanto à estatística, ou ela é correta, ou não é. Se é errada, não prova nada, muito menos qualquer coisa. Se é certa, prova um só resultado – e não qualquer um.

A incompetência não está no número, está em quem os lê. Porque é preciso saber ler números, para poder entendê-los. Para uma criança de um ano, ainda sem noção de quantidade, enumerar não é contar: é dizer uma série de palavras. Um adulto que não consegue entender uma planilha está na mesma situação, diante de séries um pouquinho mais complexas.

Estou escrevendo isso hoje porque está virando lugar comum: qualquer aprofundamento de discussão política resulta nesse chavão, como se gostar de números fosse um absurdo. E há quem diga não gosta apenas para não discutir, para poder se dar ao desfrute de depois dizer que não sabe nada, não viu nada, não tem diploma e, por isso, não é culpado...

Além disso, é bom lembrar que Galileu foi posto na borda da fogueira por pessoas que não gostavam de números e não entendiam; que negar o conhecimento é negar a própria humanidade, e, com disse uma vez um sábio alemão, “onde se queimam livros, mais cedo ou mais tarde queimar-se-ão pessoas”...

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Mais um

Caiu mais um avião em São Paulo.

Desta vez não foi um jatão, foi um jatinho.

Não foram cem mortos – mas foi-se uma família inteira, cujo chefe brincava sossegadamente com o neto presumindo-se seguro em seu lar.

Como Congonhas, o Campo de Marte fica entre duas esquinas de Sampa.

Sobreviveu uma adolescente, doente mental, agora totalmente órfã. O que será dela?
Com horrorosas queimaduras no corpo, sofrerá sem saber porque durante meses a fio.

Sofrerá depois sem saber porque, durante anos a fio, sua solidão sobrevivente.

Uma bola de fogo, caída do céu, levou todos os seus.

Caída? Não, enviada pelos irresponsáveis que controlam o tráfego aéreo no Brasil.

Dirigida para ali pela presteza burocrática em atender os interesses do bezerro de ouro.

Enviada, postada para esse endereço pela inércia burocrática em atender os interesses da maioria.

Caiu mais um avião em São Paulo.

E nem se fala mais nos problemas de Congonhas, quem se lembra disso?

E nem de pilotos tensos diante dos temporais numa pista traiçoeira – eles ganham para isso, não é mesmo?

E nem do bebê que morreu antes de nascer, no inferno criado pela colisão do airbus, e do bebê de nove meses que morreu desta vez, no colo do avô, queimado vivo.

Afinal, a quem interessa a vida desses bebês?

Os jatinhos das autoridades, indo e vindo do Campo de Marte, é que não podem parar. Custe o que custar em vidas de avôs, mães e bebês.

Afinal, como é que uma autoridade vai encarar uma hora de engarrafamento paulistano, se tiver que descer do avião em outro local? Isso é para a plebe ignara, não para quem já deixou de ser povo. A plebe rude pode morrer, mas a autoridade não pode perder tempo.

E São Paulo, que agora devora suas entranhas vítima do próprio gigantismo, não pode parar de crescer.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O verão do avesso

São seis horas, o sol surge, mas, antes que se veja sua luz, uma rajada de calor anuncia o dia. Pouco depois, o vento frio provoca um arrepio. A luz torna o cinza do céu mais claro, porque não há nenhum retalho de azul: é o primeiro sinal do inverno paraense, o verão do avesso.

A rota da terra diz que agora é verão, mas quem vai chamar verão um semestre de chuvas continuadas? O arrepio de frio não se justifica diante do termômetro, que marca os 28 graus centígrados de todos os dias, às seis. Os nossos tajás, que os demais brasileiros conhecem como tinhorões, apontam as folhas ainda enroladas sobre a terra. Eles são ajustados à órbita da terra: estavam hibernando durante todo o tempo que chamamos de verão, quando o calor dispara os termômetros.

Tudo indica que hoje será o dia da primeira grande chuva de inverno. Toneladas de água condensada estão suspensas sobre nossas cabeças. Dizem que as pirâmides de nuvens sobre Belém chegam à espessura de quilômetros. Eu mesma já vivi a experiência de uma decolagem que parecia interminável, quando o piloto apenas queria varar a camada gigantesca de nuvens.

O verão do avesso é ilusionista. Cria a sensação de frio, quando há calor, a ponto de insetos procurarem o interior quentinho das casas para abrigar-se. Deixa as plantas ajustadas às estações em estado crítico, porque florescem na hora errada. Enche de mofo tudo o que for deixado guardado descuidadamente, provoca soalheiras incandescentes, graças ao ar tornado limpíssimo pela chuva. Agrava todos os males que afligem articulações e faz doer as próteses nos ossos. E, invariavelmente, começa e termina com uma onda de resfriados, cinco dias de desconforto para cada pessoa, duas vezes ao ano.

O verão do avesso cancela todos os eventos ao ar livre programados para a tarde, desde o churrasco do almoço de domingo até o show de multidões. Às vezes, cancela também os da manhã e os da noite, principalmente em fevereiro. Só não cancela o carnaval: as bebidas ditas “espirituosas” – destilados, naturalmente – cancelam a chuva.

Senhoras e senhores, nosso inverno, o verão do avesso, chegou.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Paixões: a ira

“Não sei o que me deu”, me disse o entrevistado. “De repente, eu estava lá, vendo ela, e logo depois eu já tinha dado nela umas facadas”.

Eu conseguira alcançar o assassino antes de qualquer pessoa, apenas duas horas depois do crime. Ele estava em choque, e simplesmente desabafou com a jornalista. Ele me contou uma história que começara com um bilhete premiado, porque ela era tudo o que ele poderia sonhar e mais ainda; que deu errado exatamente por isso, e ele reconhecia que ele não conseguira mantê-la, não tivera fôlego para acompanhá-la, na sua vitalidade e nas suas ambições. Não havia outro, mas havia todas as outras coisas que a arrastavam para longe dele, e, naquele dia, em que ela disse afinal que ia embora, ele a matou.

Olhava para mim, desesperado, para dizer que não entendia, não podia entender o que fizera; perdera tudo, inclusive ela, e por sua mão. Atônito consigo mesmo, não conseguia sequer pensar em morrer, porque já morrera: viver ou morrer lhe era de todo indiferente, naquele momento. Simplesmente não tinha ação: saíra do local do crime com a faca na mão, atirara-se num canto de quintal e foi nesse canto que eu o encontrei, duas horas depois, e pude entrevistá-lo. Uma entrevista rara, porque feita ainda durante o choque do crime. A palavra escrita a esfriou – sempre acontece isso com os textos jornalísticos, por mais que você se esforce, é impossível retratar a profundidade da emoção alheia – mas a impressão daquele homem perdido me ficou para o resto da vida.

E a paixão: a ira. A raiva insensata, o desmoronar de todos os limites, a explosão interior que arma o braço e fende um corpo. Um momento e outro momento, e entre eles, como disse uma vez Elliot, a sombra.

Esta paixão eclode como um ovo ao amadurecer, de uma só vez e em definitivo, com a imoderação de um nascimento. É a paixão primitiva por excelência, embrião de raiz, vegeta escondida em subterfúgios para descobrir-se numa explosão que ultrapassa todas as razões e domina todos os sentidos, para levar ao irremediável. Porque depois da passagem da ira, nada mais será como antes, e às vezes, restará só o nada, como ao assassino de anos atrás.

É diferente do ódio: este é consciente e construído, montado em razões geralmente falsas, mas razões. O ódio leva à crueldade. A ira, ao gesto impensado, ao irremediável sem razões. É pura emoção agressiva. E, como todas as paixões, sem explicações.

Não sei o que aconteceu com o entrevistado daquele dia. Perdi-lhe o rumo, nos desvãos dos processos judiciários. É possível que tenha seguido sua vida, mas creio que jamais conseguiu entender o que fez naquele dia. Nem jamais conseguiu esquecer a mulher que desceu um degrau social para encontrá-lo, viver com ele e morrer por suas mãos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Remédio fraterno

Na ante-sala de um consultório médico, aproveito o tempo de espera e leio seis páginas-resumo de uma pesquisa que constatou que uma boa coisa para prevenir depressão é – vejam só! - bons irmãos.

Uma fraternidade saudável na infância, dizem os pesquisadores, mostrou ser um antídoto eficaz para a depressão aos 40, 50 anos. O curioso é que o relacionamento com os pais não interfere: seja bom, seja ruim, o resultado é o mesmo. Os irmãos, entretanto, são decisivos. A existência de bons irmãos reduz o risco para os que têm propensão genética, e mais ainda para quem não tem.

Não pude deixar de pensar nos bilhões de filhos únicos dos países asiáticos, e nos milhões de filhos únicos dos países europeus. Suas perdas, pelo jeito, são maiores do que a simples convivência e partilha a que a fraternidade obriga. Também pensei que talvez as altas taxas de suicídios nos países asiáticas podem ter algo a ver com a falta de irmãos – de bons irmãos – na infância.

Mais tarde, imaginei que bons irmãos na infância quase sempre assim permanecem na vida adulta, e talvez a pesquisa tenha se esquecido desse detalhe: um apoiará o outro aos quarenta anos, se brincou junto aos seis e foi cúmplice aos quinze. Haverá com quem conversar, as possibilidades de solidão desesperada serão menores, porque o bom irmão será capaz de arrombar a porta fechada do sofrimento do outro, e socorrer.

E isto me lembra outra história. A de um bom filho, que um dia aprendera a fazer malabarismos com um cordão passado entre os dedos. Seu pai se trancara no quarto, silencioso, hostil, sem receber ou atender ninguém, dias seguidos, semanas, entreabrindo a porta apenas para receber alimento e água. O filho aproveitou um momento de porta entreaberta e passou a mão para dentro do quarto, fazendo malabarismos com os dedos e o cordel, surpreendendo o pai que, depois de alguns minutos, finalmente abriu a porta para o filho e para uma nova vida.

Irmãos também são capazes disto e de muito mais. Principalmente de proporcionar a certeza de que o amor é entre iguais. A admiração de um pai ou de uma mãe pelo bem-feito do filho é viciada pelo afeto intrínseco. A de um irmão vale mais, porque é entre pares: ela passa pelo crivo da crítica, e a ultrapassa. “Não é por ser meu irmão, mas...” Esta expressão, tão comum, resume a essência da fraternidade.

Essa fraternidade, filhos únicos poderão encontrar talvez em outros filhos únicos, amigos de infância que prosseguem na vida adulta. A pesquisa não examinou essa hipótese, e, possivelmente não será a mesma coisa: faltou partilhar o mais importante, que é o amor dos pais, e esta perda, ninguém recupera nunca.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Ressaca de elefante

Diz a notícia que uma manada de elefantes tomou um pileque de cerveja, dessas feitas em casa, e endoideceu. Um deles foi coçar as costas num poste, que derrubou. Morreu eletrocutado, assim como todos os que tentaram salvá-lo. Até que pessoas conseguiram desviar o restante da manada – a notícia não diz como – e interromper a tragédia.

A notícia me lembrou o Senado. Cerveja feita em casa – mordomias, cumplicidades, safadeza miúda paga pelo Estado – e um pileque de poder. Renan coçou as costas no lugar errado – daí por diante, os elefantes perderam o controle de si mesmos.

É necessário interromper a farra da manada. Mas que a tropa de elite não se assanhe: não queremos trocar uma manada por outra. Não queremos ditadores à la Hugo Chavez (que afinal, apenas repete o que os militares fizeram: um Congresso fantoche para fazer de conta que havia democracia). Muito menos Lula ad aeternum. Pessoalmente, eu quero a coragem, a austeridade e a competência de José Serra. Ele enfrentou e venceu os grandes laboratórios multinacionais, e isso, para mim, o credencia a enfrentar quem quer que seja, se Presidente da República. Afinal, os grandes laboratórios multinacionais são a vaca sagrada do capitalismo mundial. A vitória de Serra serviu ao Brasil, e a todos os pobres do mundo. Lula, o eterno protestador de passeata, faz um enorme agá com uma política externa pelos pobres, mas não fez até agora nada por eles – e não aguentou nem meia pressão de Bush. Aliás, não aguentou nem a pressão interna dos bancos, hoje os maiores beneficiários da Previdência Social. Duvida? Pergunte à Previdência quanto cada banco recebe, por cabeça e por mês, para permitir que os miseráveis aposentados recebam seu dinheirinho no caixa eletrônico...

O país está criando, aos poucos, as condições para uma grande ressaca cívica, depois do pileque dos elefantes senatoriais. A crítica circula livre na rede, graças a Deus, porque a censura é quem circula nas tevês abertas. Censura de interesses: ah, é cliente, deixa... Que aliás é a pior censura que existe, porque não tem regras nem parâmetros. Mais dia, menos dia, a crítica vai pular fora da rede e ganhar o espaço mais importante: a consciência cidadã de quem não dá, não dá mais.

A primeira onda da ressaca apareceu na praia do PAN, na forma de uma vaia que cassou a palavra de Lula. A segunda, na praia da seleção, na forma de um gigantesco coral de palavrões destinados a Galvão Bueno e à rede Globo. O que tem a ver? Ora, ora, não me decepcionem! Com quem dorme a Vênus Platinada?

Outras ondas virão, e talvez a gente tenha de volta um pouco de decência pública. Vergonha, sabe? Aquele sentimento que faz com que a gente preze a opinião que os outros têm da gente, que faz com que a gente se comporte civilizadamente, mesmo que esteja querendo voltar para a barbárie, mesmo que esteja querendo tomar um porre de elefante. A vantagem de ter vergonha na cara é que, depois de vencer a tentação, a gente pode ter orgulho de si mesmo. Ou de seu país. Ou de seu Senado. Ou de seus aldeões, capazes de desviar a manada e salvar os elefantes e o povoado.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Tudo como antes

Passadas as emoções fortes causadas pela morte em massa; encerradas as demonstrações demagógicas; destituídas algumas autoridades, mais ou menos importantes; tudo volta a ser como antes em Congonhas.

As restrições de segurança caem, uma por uma. Os aeronautas acomodam-se, que têm que ganhar a vida, e só o Lula até hoje conseguiu ganhar a vida fazendo passeata. Os enlutados choram seus mortos, tratam seus traumas, rezam e tentam refazer suas vidas, que também não podem ficar por conta do passado. E Congonhas volta a ser como antes.

Leio um irritado comentário de leitor, criticando as decisões judiciais que frearam um pouco os arriscados vôos de Congonhas. Diz ele que o juiz não sabe. É verdade, o juiz não conhece os detalhes, mas coube-lhe suprir a falta de vergonha do pessoal da ANAC. O pessoal da ANAC deveria saber – e, se sabe, não faz. E, de qualquer maneira, não interessa se este avião pousa assim ou pousa assado. Ou a pista é segura, ou não é, para este ou para qualquer outro avião liberado para ela.

Eu já voei nos céus amazônicos quando segurança de vôo era pura ficção, e ainda faço viagens aéreas sobre pedaços de mato em que a segurança de vôo é apenas uma possibilidade. Mas o risco da aventura é próprio e pessoal; ninguém me vendeu uma passagem garantida.

Congonhas volta a ser um aeroporto inseguro, no meio de uma mega-cidade, com os pousos e decolagens arruinando os ouvidos de milhares de pessoas no entorno, uma pista meia-boca e um faturamento que atropela qualquer interesse público.

É verdade que, durante pelo menos cinco anos, os envolvidos na infra-estrutura aeroportuária e os próprios pilotos tomarão cuidados e cuidados para evitar acidentes ali. Mas é verdade que ninguém pode ficar sempre alerta, e, mais dia, menos dia, alguém vai se acabar naquela pista.

Cinismo napoleônico? O criador da logística entrava nas campanhas calculando previamente as quantidades de mortos de cada batalha. Parece que em Congonhas está-se aplicando o mesmo princípio – quantos mortos para quantos reais?

E que ninguém diga que não há dinheiro para investir: o que não existe é prioridade. Um aeroporto não se constrói em final de mandato, porque não dá tempo. Então, deixa-se para o próximo governo. Ou talvez para a próxima tragédia.

É triste: aprender com os erros faz parte da experiência humana, mas isto não está no dicionário dos nossos governantes. É que eles nunca erram. Nem em Congonhas, nem em coisa alguma do que fazem.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Bem-intencionados


Dante os colocou no inferno, os bem-intencionados desastrados, as pessoas que agem de forma unilateral, intervindo e atrapalhando. Mas tradicionalmente eles são considerados como instrumentos do destino, do acaso, ou da vontade divina, conforme a crença ou falta dela. Mas há também os bem-intencionados que são prudentes e refletidos, mas que, mesmo assim, fazem exatamente o que não se quer que eles façam.

Por força de ofício, andei revirando algumas discussões sobre a segunda guerra mundial, e, particularmente, os ataques e defesas da guerra naval, ou seja – trechos do depoimento do Almirante Döenitz, em Nuremberg, de um lado, trechos de analistas aliados, de outro. Döenitz expõe suas ordens, perfeitamente lógicas dentro do ilógico da guerra, e os aliados expõem suas ordens, também perfeitamente lógicas dentro do ilógico da guerra. Não há, num e noutro lado, nada além de valores positivos dentro do contexto de uma guerra: patriotismo, ataque, defesa, técnica militar, uso dos meios ao alcance, destruição máxima dos inimigos. No entanto, na oposição dos mesmos valores, de um lado para outro, há milhares de mortos.

Por força de ofício, também tenho assistido o ir e vir de governos. Fracos, fortes, medíocres ou competentes, ditaduras ou democracias. Gore Vidal, no seu monumental “Criação” diz que a diversão do povo é escolher dirigentes para depois jogar pedras neles, ou expulsá-los das cidades a pedradas. Dirigentes, geralmente, estão cheios de boas vontades e certos de que interpretam a vontade do povo. Defrontam-se com um fosso entre a vontade do povo e o que é possível fazer; suas ações são geralmente engolidas neste fosso. Suas boas intenções colidem frontalmente com as boas intenções do povo. O resultado são as pedradas ou as ditaduras – sempre dedicadas a uma boa causa. Cheias de boas intenções.

Fazer o que? A crença de cada um rege as suas ações. As crenças, entretanto, são diferentes, e, apesar do diálogo, sempre possível para ajustar os modos de fazer, nem sempre pode-se resolver com palavras o que exige ações. Sobretudo o que precisa ter rapidez para ser resolvido.

Digo isto porque venho acompanhando, como sempre, as ações de governo que têm sido desenvolvidas por Lula e sua equipe. Eu não sei se ele, ou alguém de seu grupo (talvez Dilma Roussef?) leram alguma vez o “Breviário dos Políticos”, do cardeal Mazzarino (que, diga-se de passagem, foi o italiano que levou sofisticação para a França), mas o que têm feito ultimamente segue com a precisão possível da diferença de tempo, as recomendações do cardeal. Por exemplo: como entregar a cabeça de um poderoso aliado sem ir junto. O processo orquestrado por Lula e Dilma, no caso Renan Calheiros, foi um perfeito dever-de-casa do “Breviário”. Mazzarino levantaria uma de suas taças de quartzo transparente para, em silêncio, saudar o aluno.

Que, como o velho cardeal, também está cheio de boas intenções: a principal delas é manter-se no poder, seja essa ou não a intenção da maioria do povo.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Civilidade india(na)

Na esquina da minha rua, há uma sorveteria que se apresenta chique. De fato, é toda envidraçada, dispõe de bancos e palmeiras em vasos, mesinhas de alumínio e funcionários uniformizados e usando luvas. No entanto, pelo menos uma vez por semana transforma a calçada em lavanderia: põe tudo para fora e liga as mangueiras. Inunda a calçada e o pedestre que se vire.

A uma quadra, uma farmácia convive com uma calçada mal traçada e uma vala malcheirosa eternamente transbordante. A farmácia é bonita, tem portas automáticas e mantém uma elegante vitrine. Mas seu dono não se preocupou com os saltos que as pessoas devem fazer sobre o lodo, para chegar lá. Azar do cliente.

Na minha quadra, e na quadra a seguir, é extremamente comum que, principalmente aos sábados, homens em short e sandália ocupem as calçadas com baldes, mangueiras e sabão para lavar os respectivos carros. Geralmente colocam os carros atravessados na calçada; e, como fazem uma sujeira exemplar, ninguém passa. O pior é que eles acreditam estar sendo modernos e atualizados, porque vêem no cinema esse tipo de atividade sabatina. Só esquecem que ninguém faz isso na rua, mas no seu pátio.

A mesma coisa se faz na calçada de um edifício de luxo, cujo condomínio deve custar perto de dois mil reais mensais. Os carrões são lavados na calçada. Azar dos passantes e do piso de pedras portuguesas.

A umas cinco quadras, em outra direção, uma grande placa anuncia frango assado. O sujeito ocupou uma esquina inteira. Meteu ali seu forno, seus espetos, uma barraquinha auxiliar com uma imunda tábua de corte, onde prepara as aves. São frangos especiais: temperados com o diesel queimado dos escapamentos dos ônibus, devem ter um sabor peculiar. Mas a questão é o pedestre: bem, ele, que se esprema entre a parede e o forno para passar, ou desça o meio-fio e encare os carros.

No entorno do shopping Iguatemi, o espetáculo é deprimente. Os passageiros de ônibus são obrigados a ficar no asfalto: já não há calçadas para os pedestres, o meio-fio está totalmente ocupado por camelôs e a sujeira que geram. Para passar, o transeunte tem que enfrentar um verdadeiro corredor polonês. E como tudo e qualquer coisa podem acontecer ali, se não quiser riscos, terá que atravessar a rua. O trânsito não permite caminhar no acostamento.

A lista, como vêem, é variada: ricos e pobres se misturam na absoluta falta de consciência urbana. As calçadas, por aqui, ainda são consideradas quintais, lixões, tudo, menos lugar onde as pessoas transitam e se encontram, menos lugares de convivência pública. Ricos e pobres se servem da cidade como se fosse um local de despejo. Depois reclamam das condições de moradia.

Por seu turno, a Prefeitura segue o ritmo da maioria: tenta, não dá certo, desiste. Cinco prefeitos já tentaram tirar os camelôs do entorno do shopping, e não conseguiram. Quanto ao resto, nunca vi nenhuma ação nos últimos vinte anos.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A teia do aranha

John Romita Jr. estava certo quando idealizou sua cidade fantástica, por onde trafegava o homem-aranha e seu simbionte de uniforme negro. A cidade é plural e vertical: o ar puro do primeiro nível está muito longe da vida ao nível do chão. Nesta, geladeiras registram o movimento dos ocupantes das moradias reduzidas a um quarto, quase toca.

Talvez ele tivesse pistas do que as agências de segurança norte-americanas andavam fazendo, porque o homem-aranha em uniforme negro surgiu na década de 70. E, sabe-se hoje, a Agência Nacional de Segurança (o equivalente da CIA para assuntos internos dos EUA) faz espionagem eletrônica doméstica a torto e a direito. Faz de há muito; a coisa só veio à tona depois de um escandaloso conflito entre os advogados do Departamento de Estado e a Casa Branca, em que aqueles se recusavam a aceitar a tortura como método de interrogatório de terroristas.

Eles foram demitidos, e ordens secretas mantêm o que os americanos chamam de “técnicas brutais”, quando se referem a eles mesmos, e “tortura”, quando se trata de outros países. Em Guantánamo ou em prisões secretas dentro dos Estados Unidos, mesmo. Talvez num abrigo anti-atômico, quem sabe?

A cidade criada por Romita é terrível. Nela, o Estado é quase um ausente, e são os aparatos de segurança das grandes corporações que caçam, literalmente, os criminosos. Os sistemas de vigilância estão em todas as casas, disfarçados pela robótica, atendendo necessidades e coletando informações. É possível passar de uma cidade para aquela mais acima ou aquela mais abaixo, mas ninguém faz isso: como em Huxley, as pessoas estão satisfeitas em ser o que se espera que elas sejam. Além disso, as torres são planejadas para se bastarem a si mesmas.

Nela, o homem-aranha é uma anomalia, por ser um indivíduo com idéias próprias, e luta com o legal e com o ilegal indistintamente, porque na cidade de Romita, a violência é o nivelador comum de caçador e caçado.

Um dos grandes mitos do século XX, o Aranha simboliza a permanente recusa em aceitar ser apenas mais um. Na versão de Romita, deixa de ser um herói combatendo o anti-herói para tornar-se um poderoso indivíduo tentando viver conforme seus princípios. Ele é caçador e caçado, ao mesmo tempo. Coisa que a espionagem eletrônica, que lentamente se insinua na sociedade – primeiro as câmeras para fiscalização de trânsito, depois as câmeras para fiscalização de agências bancárias, a seguir os circuitos internos de vigilância, as câmeras nas lojas, agora a vigilância das babás e dos empregados domésticos – não admite, porque os caçadores deverão estar do outro lado do olho. Aos poucos, estamos nos tornando caça: como os estratificados de Huxley ou o rebanho de Matrix.

É isso que queremos para nós e para nossos descendentes?

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Paixões: a cobiça

Leio sobre um quadro roubado, atribuído a Leonardo da Vinci, e chamado "A Virgem do Fuso". E imagino a cobiça de quem quis esse quadro, que não pode ser vendido, que não pode ser exibido, que servirá ao dono apenas para uma contemplação reservada e solitária, no estilo balzaqueano de retratar os avarentos.

Minha imaginação corre, solta, tentando entender essa ação.

Imagino uma vingança sobre a família proprietária do quadro, a partir de uma ruína provocada ou de um amor não correspondido – e concluo que isto está mais para novela das oito que para a vida real.

Imagino uma dívida de jogo, milionária, em que o quadro é o preço para evitar a morte, a desonra e a miséria. Esta história seria do gosto de Alexandre Dumas, com personagens setecentistas, jamais com pessoas do século XXI.

Imagino uma aposta, ao estilo de Maurice Leblanc: simplesmente porque é quase impossível tocar no quadro, e vale um diamante de pura água tirar o quadro de lá. Depois, o quadro resgataria uma escrava branca ou uma noiva sem dote. Romantismo dos anos 20, essa história, é o que é.

Imagino o duque, dono do quadro, deprimido e definhando até à morte porque amava o quadro por ter crescido à sombra dele, e não pelo que valia. Mas o duque era escocês, e é difícil imaginar-se um escocês romântico.

Todas as minhas histórias se quebram diante da realidade, e a realidade é um homem dominado pela paixão da cobiça, obcecado pelo desejo de ter este quadro, levado ao roubo, descendo degrau por degrau a indignidade para alcançar seu objetivo. Para vender a um outro apaixonado doentio? Simplesmente para ter? Não sei, e isso não é importante: o importante é constatação de uma paixão, inexplicável como todas, irrazoável como todas, dominadora e fatal.

Vejo a foto do quadro para tentar entender, mas não encontro nada que seja especialmente fascinante: a composição, a expressão, a beleza são o que se poderia esperar de um Da Vinci, não mais. Há, claro, o irrazoável de um fuso nas mãos de um bebê. Mas todos os quadros de Da Vinci têm algo de inesperado dentro da harmonia – o toque de gênio, talvez, que o distingue até hoje. Não seria esse o detalhe que levaria à cobiça, ou seria?

Sobra a paixão. Algo que não se explica, apenas acontece. E arrasta as pessoas para o céu ou para o inferno, ou para os dois ao mesmo tempo, sem que ninguém possa ajudá-las ou sequer compreendê-las.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Deu a doida no homem!

Como é que se demite o gerúndio?

O governador do Distrito Federal acha que é por decreto. Esse decreto saiu publicado ontem. Ele não proibiu de usar o tempo do verbo, presente em todas as placas de obras (“Estamos trabalhando”), ele demitiu.

Bem, o gerúndio nunca fez concurso para o serviço público; era temporário, pois: foi-se chegando, chegando (olha ele aí!) e pronto, abancou-se. Agora o governador lhe mostra a porta da rua, pronto! Agora, é tudo ou nada: ou faz, ou fez, ou fará. Assim, como por milagre – tudo andando, nada em andamento.

O corolário desse decreto é curioso: as pessoas terão que usar o pronome “nós”, que andava arredio dos arraiais públicos. O problema é que há verbos em que a palavra é a mesma para o presente e para o passado. O verbo construir, por exemplo: nós construímos no presente, e nós construímos no passado. Foi por essa brecha que o gerúndio entrou, e como ninguém construiu ponte na brecha, ela continua esperando os incautos da linguagem erudita.

Diz o governador que não admite o uso do gerúndio para desculpar a ineficiência. Perdoe-me ele entrar na seara, mas a ineficiência é produto da incompetência, e não do pobre do gerúndio. Punir o gerúndio é o mesmo que chicotear o servo pelo erro do senhor, coisa que os nobres medievais praticavam sempre. O governador não é nobre nem estamos na Idade Média: demita ele o incompetente, mas deixe o gerúndio em paz.

Seria aliás mais producente que, em vez do gerúndio, ele demitisse o ao-ao. Ao-ao é como se denomina a trilha infindável da burocracia preguiçosa: “Ao fulano, para opinar”; “Ao chefe, para despachar”; “Ao beltrano, para consertar”; “Ao chefe maior, para avaliar”; “Ao cicrano, para considerar”; “Ao chefe menor, para informar”; o cidadão, ou sua petição, vai percorrendo o “ao-ao”. Cansa, desiste, e finalmente vem o despacho definitivo: “Ao arquivo, por desinteresse do requerente”. Às vezes, o desinteresse é justo: o requerente já se finou.

Eliminar o ao-ao é que mereceria foguetório. Ou pelo menos reduzir a quantidade, encurtar a trilha, decidir mais depressa. Mas no ao-ao não existe gerúndio: os verbos são todos no infinitivo. Assim, não incomodam o governador.

Mas governadores também precisam de gerúndio, e ele será o primeiro a sentir falta do parceiro. O gerúndio permite ganhar tempo na solução de crises, principalmente as políticas ou aquelas que envolvem pedidos absurdos feitos por prefeitos ou parlamentares. Sem ele, o governador terá que decidir na lata. E a lata, às vezes, é cheia de votos que não gostam de ser contrariados...

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O gosto das algas

Desculpem-me os amigos pela ausência prolongada. Tentarei retomar o ritmo, a partir de agora, duas ou três vezes por semana.

Muitas coisas aconteceram nesse período – até mesmo o reconhecimento de que o custo de vida está subindo depressa demais, tema de meu último texto. Explicaram-me que o caso é sazonal. Mas não é bem assim, e os plantonistas oficiais sabem disso tão bem quanto eu.

O Brasil não produz o suficiente para seu abastecimento, e não vai ser o programa de bolsas que vai resolver isso. O dinheiro distribuído através desse programa de assistência força o consumo. Esse é o problema desse programa de distribuição de dinheiro: ele não é distribuição de renda, porque é precário, e, ele sim, sazonal. Ele não é acompanhado da produção equivalente: e, lastimo dizer, não há nenhum mecanismo estabelecido que tire o favelado da bolsa-família para o emprego, ou para a produção própria. Mas há alguns bilhões de reais forçando o consumo: o preço sobe.

É preciso fazer um pouco mais do que simplesmente dar dinheiro ou dar cursos. É preciso criar mecanismos de financiamento que não sejam essa estupidez de juros que os bancos cobram. Aí, sim, haverá uma pressão razoável, de consumo e produção simultâneos, o que se traduz em riqueza.

Além disso, há uma outra pressão sobre o preço dos alimentos: a entrada, no mercado global, da China. A China abriga um terço da população mundial. Para ter idéia do que isso significa, feche os olhos e imagine um bilhão de pares de sapato (dois bilhões de sapatos) empilhados – é o que existe na China, num dia qualquer. Duzentos gramas de arroz por pessoa (dieta de fome!) por dia, significa 6 bilhões de toneladas por mês. É tanto, que desconfio que os chineses usam o megaton (ou megatonelada) para projetar sua demanda. O Brasil produz 10 milhões de toneladas por ano.

Mas quanto ao arroz, a China é auto-suficiente. Precisa, entretanto, de carne, frango, ovos, legumes, e tudo o que puder ser comido. Não há espaço, lá, para rebanhos. A pressão é tanta, que existem fazendas do tamanho de um apartamento de luxo – 700 metros quadrados. E não são fazendas de cogumelos...

O degelo político chinês vai pressionar os preços dos alimentos no mundo todo – e os primeiros reflexos disso já se fizeram sentir. A continuar nesse ritmo, rapidamente vamos sentir saudades “dos tempos do churrasco”.

Essa situação é inapelável, vai acontecer e pronto. O que me causa espécie é que nenhuma autoridade se prepara para isso, ou pelo menos avisa o que vai acontecer; todos se apressam em dizer que o aumento é temporário, sazonal. E fica-se plantando cana para fazer álcool, e cantando loas para a cana, quando o mundo está prestes a voltar à época dos primatas, caçando comida dia e noite.

Alguns talvez digam que estou na contramão do processo de desenvolvimento. Mas o futuro, embora a Deus pertença, não mostra outros cenários. Ainda temos os oceanos para explorar, mas o gosto das algas é de lascar!

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O suspeito suspeita

Zé Dirceu suspeita do Supremo Tribunal Federal. Fala em ditadura da mídia. Diz que não encontrou nenhum indício de crime que tenha cometido. Verdade! Ele não tem pecados, porque os mandamentos que cumpre são bem diferentes dos que cumprem os comuns mortais; ele não tem crime, porque lei que Zé Dirceu respeite ainda está por ser feita. Zé acredita piamente que os fins justificam os meios, e que ninguém deve questionar meio nenhum, somente resultados.

Diz o povo que pau que nasce torto morre torto, e quem nasceu tatu, morre cavando. Zé Dirceu nasceu arrogante. Vai morrer assim. Ele, o suspeito, suspeita dos juízes porque o indiciaram, como a qualquer outro. Como é que juízes vão indiciar um sangue-azul da burocracia? Erro crasso, esse... Ainda bem que o cargo de ministro do Supremo é vitalício. Porque não vai demorar muito para ser apresentado um projeto de lei extinguindo a vitaliciedade desses cargos, para tornar seus ocupantes maleáveis.

Dirceu trabalhou duro para ser o herdeiro de Lula. Ainda acredita que possa, talvez porque a força do mensalão vai para além das medidas repressivas. Para isso, precisa silenciar os adversários, os críticos, e, sobretudo, os jornalistas que vêem demais e conta o que conseguem ver. Então ele fala de ditadura de mídia, preparando terreno para censura – será a terceira tentativa, neste governo que se diz essencialmente democrático, mas que é fundamentalmente sindical.

E sindicato funciona baseado na covardia da maioria, no comodismo e na inércia da categoria. Raramente uma assembléia sindical consegue reunir mais que 10% dos integrantes de sua base. Os dirigentes pintam e bordam – a Justiça do Trabalho tem demandas contra os sindicatos aos montes, porque eles logram seus empregados tanto ou mais que os patrões-empresários – e a maioria diz que não se mete, mas não abre mão de ganhos eventualmente alcançados. Auditorias nos sindicatos já revelaram fraudes e desvios de dinheiro em quantidade – para campanhas eleitorais, inclusive, sob a alegação de que é necessário “um representante da classe”. As críticas são respondidas a pedradas, às vezes no sentido literal da expressão.

Esse é o mundo de Zé Dirceu, e, por isso, ele está perplexo: com o mensalão, não fez nada mais do que sempre fez e foi feito na política sindical, de onde se originam todos eles. Manipular, comprar, subornar, agredir e mentir – tudo vale para conseguir os fins, e, embora os fins de um sindicato geralmente sejam conhecidos, quem é que conhece as finalidades do governo Lula?

O suspeito suspeita. Mas suspeitamos nós dessa suspeita, que destila veneno contra a imprensa e contra o Judiciário. O arrogante Zé repete um discurso que se ouviu muito há quarenta anos, nos preparativos do golpe militar de 64: a imprensa se excede, o judiciário não julga corretamente.

Provavelmente ele o repete sem querer. É que os mecanismos autoritários são os mesmos, sempre, quer seja o rumo à esquerda, quer seja o rumo à direita. Nem toda a arrogância do mundo muda isso.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Alguma coisa está errada

Há um infalível indicador inflacionário, conhecido de toda dona de casa: quando fica cada vez mais freqüente ter que desistir de um ou outro produto porque o dinheiro não chegou é porque o custo de vida subiu.

Cartões de crédito costumam mascarar isso, a não ser quando falta o crédito. Mas o controle do cartão de crédito pode possibilitar coisas interessantes – como saber porque a desistência de um ou outro produto fica mais freqüente, ou porque a conta não para de subir.

Afirma-se que a inflação está baixa, sob controle. As contas do meu supermercado dizem o contrário. Fui tirar a teima nos cupons fiscais – a nota do supermercado – e fiz uma comparação, nada de muito profundo, mas de uma lista de 17 produtos que compro habitualmente. São 17 produtos da mesma marca e comprados no mesmo supermercado, em dezembro do ano passado e neste mês de agosto.

Fiz a comparação considerando apenas o preço unitário – quilo, lata, frasco – sem levar em conta as quantidades. E eis o resultado:

Dos 17 produtos, somente um – o sabão em pó – manteve o mesmo preço. Seis tiveram o preço reduzido: esponja de aço (-5,58%), berinjela (-11,6%), couve-flor (-17%), xarope de guaraná (-22,16%), óleo de soja (-12,7%) e feijão preto (-9,7%). Dez tiveram preços aumentados, e alguns, aumentados de forma astronômica:

- detergente líquido: passou de 0,92 para 0,95 – aumento de 3,26%; é o único aumento abaixo de dois dígitos da lista.
- tomate: subiu de 2,19 para 1,64 – aumento de 20,54%.
- ovos, dúzia: de 2,49 para 3,10, teve um aumento de 24,5%.
- contrafilé: passou de 6,8 para 9,4, ou seja, o preço subiu 38,24%.
- queijo ralado: o preço era de 1,64 o pacotinho, agora é de 2,34 – 42,67% a mais.
- café solúvel: de 1,99 o pacote, para 2,85, com incremento no preço de 43,21%.
- leite condensado: o preço da lata estava em dezembro, 1,57; agora, é de 2,93 – 86,6%.
- leite tipo longa vida: de 1,44 para 2,69 cada litro – aumento de 86,8%.
- cebola: dobrou de preço. O quilo passou de 1,05 para 2,10. 100%de aumento!
E a campeã: batata lavada, com incremento de 152,6% - o preço subiu de 0,95 para 1,45.

O conjunto de 17 produtos apresentou um aumento médio de 16,38% no intervalo de oito meses – o que, convenhamos, é muito mais do que está sendo apresentado nos números oficiais de medição de custo de vida, seja com que sigla for.

Aviso de antemão que isto não é um estudo científico, nem tampouco uma medida econômica: trata-se tão somente de constatar porque o bolso está doendo, se não houve alteração no padrão de consumo. Também explico que os 17 produtos foram aleatórios: eram os que coincidiam nas notas de compras guardadas.

Vários destes produtos, porém, estão nas cestas de compras de todas as pessoas – particularmente aqueles que mais aumentaram, ou seja, o leite, a cebola e a batata. E ninguém me diga que se trata de entressafra – essa desculpa já cansou.

Sugiro às minhas leitoras que façam, também, suas comparações. Porque, pelo jeito, este segundo semestre vai ser de contingenciamentos domésticos...

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O que vale é a lombada

Belém-Salinópolis, rodovia de 260 quilômetros – e 28 lombadas, contadas uma a uma por um amigo insatisfeito.

Ou seja, a cada oito quilômetros, um atestado de incivilidade. Porque não há coisa mais incivil que lombada em meio de estrada. Ela demonstra: que motoristas se excedem e pedestres andam pelo meio da estrada; que ninguém cumpre as leis de trânsito; que a rodovia é perigosa pelo simples fato de existir; que não existe fiscalização, ou, se existe, é insuficiente; e, finalmente, que as pessoas não se respeitam, não estão nem aí para a vida alheia – e, talvez, para a sua própria.

As lombadas da estrada de Salinópolis - como de resto a esmagadora maioria das lombadas construídas no Pará – demonstram mais alguma coisa: a impotência do Estado diante de seus cidadãos. Pois que as lombadas, o Contran, órgão do Ministério da Justiça, publicou a Resolução nº 39, em 21 de maio de 1998 prevendo a existência de apenas dois tipos de lombadas. A tipo 1 com comprimento de 1,50m e altura de até 0,08m (oito centímetros!), que somente pode ser instalada quando houver necessidade de serem desenvolvidas velocidades até um máximo de 20 km/h, onde não circulem linhas regulares de transporte coletivo. E a do tipo 2, com comprimento de 3,70m e altura de até 0,10m (dez centímetros!) quando houver necessidade de serem desenvolvidas velocidades até um máximo de 30km/h. Para rodovias, a Resolução prevê ampla sinalização – incluindo sinalização precária, por faixa - amplos estudos preliminares, amplos avisos.

Mas as lombadas paraenses têm alturas variáveis, de acordo com o construtor, que tanto pode ser um órgão público, como pode ser um morador das vizinhanças. Sinalização (às vezes aparece uma placa, quase em cima da dita cuja) e toda a pintura zebrada que seria necessária, pra que? A estrada de Salinópolis funciona há mais de duas décadas, e jamais foi sinalizada corretamente.

A lombada acaba sendo a brutalidade contra a brutalidade. O raciocínio é simples: se o motorista tem o direito de ir e vir na estrada em velocidade excessiva, eu, pedestre, tenho o direito de atravessá-la – ou caminhar por ela, tanto faz – quando bem entender e como quiser. Ele descumpre a lei, e eu também. Não há mediação governamental entre um interesse e outro, entre o interesse do motorista e do pedestre. Então, como diziam os antigos, em terra de sapo, de cócoras com ele: tudo se resolve a força. Põe uma lombada, e pronto. E se vierem tirar, queimem-se pneus. A demagogia fará o resto.

Queixam-se os motoristas, os transportadores de carga, as associações empresariais que usam rodovias. Mas nenhum deles toma providência para manter os carros nos limites de velocidade, e manter o respeito necessário aos demais usuários. Queixam-se os pedestres, os ciclistas, os motociclistas. Mas eu duvido que se encontre um ciclista que conheça as normas de trânsito para circular em bicicleta. Quanto aos motociclistas, sabem, mas fingem que não sabem. E os pedestres, então...

Os braços do Contran e Detrans estão ocupados demais arrecadando multas. Não dá para mediar os conflitos que o trânsito provoca – lombadas, inclusive.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Baita (e cara) confusão

O governo federal deve lançar, nesta semana, um novo plano de segurança pública, que adotou o sorridente nome de Pronasci, e foi apresentado (se o governo disser que foi discutido, estará enganando mais uma vez) para a sociedade civil e políticos em várias reuniões realizadas em Brasília.

É uma tremenda confusão. O governo resolve pegar o dinheiro da segurança e aplicar no social. Uma nova leva de bolsas e medidas assistenciais substitui o que deveria ser um tratamento específico para o combate ao crime. E a primeira pergunta é: o que estão fazendo os outros Ministérios, a quem cabe tocar as políticas sociais? Porque o Ministério da Justiça deverá tratar de medidas de urbanização, como propõe o plano?

Para se justificar, cria-se até uma nova palavra: descoesão social. Essa palavra é nova e o Ministério não explica seu conceito: entenda como quiser. Fala de “territórios de descoesão social”. A frase soa com um bonito efeito, mas não significa nada, até porque, neste mundo globalizado, o território já ficou para trás há muito tempo. Não é possível tratar de regiões metropolitanas de forma isolada, a menos que se queira fazer como Stálin: criar passaportes para que vigiar a mobilidade das pessoas de um lugar para outro dentro do mesmo país.

Também não é possível tratar a Zona Norte do Rio de Janeiro sem considerar a Zona Sul, a favela sem considerar Ipanema. Não é possível tratar da segurança paulistana sem considerar os aeroportos de Guarulhos e Congonhas. O que quero dizer é: existem escalas de tratamento para a segurança pública, que exigem graus diferentes de intervenção e força; e a linearidade com que está traçado o programa deixa os criminosos profissionais - que são, de fato, os responsáveis pela insegurança pública – absolutamente em paz.

O Ministério se volta para os jovens em situação de risco, mas quem são eles? São os jovens baixa-renda, que procuram e não acham emprego? A grande maioria desses jovens é honesta, sua nos cursos noturnos e nos bicos diurnos até encontrar um emprego regular. Para essa maioria honesta, o que se oferece? Nada. Ab-so-lu-ta-men-te nada.

O foco é distorcido: é necessário cometer uma infração para que o Estado dê atenção ao jovem. Pior: a estrutura escolar é capenga, mas existe, e é nela que se concentra a esmagadora maioria dos jovens. A saída da escola e entrada no mercado de trabalho são portas distintas, com uma terra-de-ninguém minada entre elas. Cadê proposta para lançar uma ponte nesse território, e tornar mais fáceis as coisas para os jovens? Não existe. Quem é decente que sofra.

Em contrapartida, o programa oferece a formulação de uma estrutura burocrática de dar inveja a qualquer tecnocrata. Conselho, Comitê Gestor, Coordenação de Articulação Institucional, cinco gerências, e onze gabinetes de gestão regionais nas Regiões Metropolitanas. Um Ministério dentro de outro Ministério. No mínimo, 50 cargos comissionados para serem distribuídos.

E oferece, também, promessas: que a Polícia Federal vai cuidar dos milhares de quilômetros de fronteiras, que vão construir casas penais em profusão, que vão colocar saúde da família para todo mundo... e que vão criar uma nova polícia. Acredite se quiser!

terça-feira, 7 de agosto de 2007

De volta ao ar

Congonhas está reaberto, e se anunciam alguns milhões de reais para arrumar alguns aeroportos. O resto que espere o próximo acidente.

Os usuários também que esperem que alguém se interesse por eles, para melhorar os serviços aéreos. Os empresários de turismo que se refaçam do golpe como puderem, porque a imagem de insegurança transmitida para o exterior não será esquecida com a mesma velocidade com que o governo está se esquecendo de trezentos mortos.

Lula, por sua vez, volta ao refrão dizendo que não sabia que a crise era grave. Ele diz não saber nada, mesmo, sempre. Coitado...

Pesquisa aponta que a popularidade de Lula caiu só um pouquinho, visto que os pobres não andam de avião. Não sei bem o que tem a ver uma coisa com a outra, de vez que as condições rodoviárias no país são bem piores que as dos caminhos aéreos, e tanto umas como as outras vêm de longe, de governos anteriores, piorando neste. Talvez que os pobres já estejam acostumados – ou talvez tenham mais bom-senso que os jornalistas que juntam acidentes com popularidade presidencial.

Mais que milhões de reais para ajustar aeroportos, é preciso um pouco mais de governo no setor aéreo. Mais firmeza com as empresas, talvez parcerias com a área privada para melhorar as coisas. Uma olhada mais séria na aviação de terceiro nível (a dos aviões de até doze lugares, por exemplo) e um pouco mais de cobranças – o que não quer dizer multas – para, por exemplo, o cumprimento dos contratos por parte das empresas.

Aliás, falta governo não só para o setor aéreo. Todo o transporte de passageiros, em todo o país, precisa de governo em diferentes níveis e instâncias, para um mínimo de organização e eficiência. Principalmente o tráfego interestadual – é impressionante a insegurança e o grau de risco que passam os passageiros em estradas e barcos.

Mas é esperar demais desse governo alguma coisa nesse sentido. A única solução que este governo tem é conceder bolsas – a última bolsa inventada é para policiais e agentes prisionais. É a grande solução da segurança pública...

No ar, é esperar para ver: mudou o rosto das pessoas, mas o coração é o mesmo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

A caixa preta

O investigador, experiente de outros episódios, tem dúvidas: tanto o piloto como o computador podem ter errado. É cedo para saber.

A posição do brigadeiro contrasta com a pressa com que o governo quer se livrar de suas próprias culpas, atirando para todos os lados. É o computador, é o piloto, daqui a pouco será o destino ou a fatalidade. Mas os dois acidentes e sua caravana de mortos e feridos levantam obviedades de que o governo não se livrará. Não tão cedo.

Pilotos não são super-homens: têm o direito de errar, como qualquer pessoa. Um planejamento que não considere a possibilidade de erro – humano ou de computadores – não merece o nome. A operação repousará sobre um fio de navalha. Dará errado, num momento ou em outro.

Congonhas, e vários outros aeroportos brasileiros não têm margem para erros. Ou seja: o risco de pouso e decolagem é alto demais, não importa a qualidade do asfalto ou o gruver que estiver ou não nela.

Torres de controle sobrecarregadas, ou com equipamento e/ou pessoal insuficientes, também são bombas latentes. Esta questão não está resolvida, aliás está longe de ser. Os Cindacta param de vez em quando – as pessoas não sabem, porque militares têm mania de sigilo, de inquéritos secretos e aparentar uma eficiência ímpar – quando ela é, no máximo, igual à de qualquer grande empresa que se dê ao nome.

Companhias aéreas fazendo o que querem e o que bem entendem, o tempo todo, com ou sem acidente, isto é responsabilidade direta do governo. De Norte a Sul do Brasil as pessoas se queixam: ora compraram uma passagem para um vôo que já estava lotado, ora foram deixados horas a fio no aeroporto, ora perdem conexões porque o avião atrasou sem ninguém sequer explicar o que aconteceu, ora levam um banho de refrigerante e nem toalha há para secar a roupa, ora a maleta sumiu – enfim, um descaso e um desrespeito só inferior ao praticado pelas companhias telefônicas.

E é pura perversidade mandar reclamar no Procon ou na Justiça: no primeiro caso, as empresas não dão bola. No segundo, o processo “sumário” leva dois anos, com sorte, para ser resolvido. Haja dinheiro e paciência!

Um exemplo claro do desgoverno aéreo é o programa Smiles, da Varig. A empresa reduziu suas operações, mas jamais se deu ao trabalho de explicar aos milhares de associados do programa o que aconteceu com a milhagem acumulada. Nem o governo a obrigou e, pior – sequer verificou se a companhia tem condições de cumprir as milhagens gratuitas já em poder dos clientes.

Da mesma maneira como não se preocupa em saber se as demais empresas, com programas semelhantes, podem ou não cumprir o compromisso com as milhagens gratuitas. Enquanto isso, culpa-se o piloto – é mais fácil, ele está morto.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

O ouro será olímpico?

As 54 medalhas obtidas no pan-americano parecem ter desencantado o esporte brasileiro, acenando com perspectivas novas. Mas há alguns pontos a ponderar, antes que se criem expectativas exageradas para as Olimpíadas.

O primeiro ponto é o fato de que, sendo os jogos no Brasil, é mais barato para os atletas brasileiros participarem. Por exemplo: dificilmente Marreco conseguiria ir para outro país, às suas próprias custas. Ele não tem patrocinador, nem qualquer entidade esportiva admitiria custear o deslocamento do atleta e mais aluguel de lancha, piloto e combustível para treinamentos e provas. Um ouro a menos.

O dinheiro também fez diferença na natação, no judô e na ginástica: as três modalidades contam com financiamentos constantes de empresas, desde a criação do sistema de incentivos, ainda no governo Fernando Henrique. São vinte anos de maturação – e, no caso do judô, as coisas só começaram a andar depois que Aurélio Miguel ganhou a luta fora do tatami, contra os Mamede, que dominaram e estagnaram o judô durante décadas no Brasil.

Por outro lado, os bons resultados da publicidade aplicada ao esporte permitiram ainda que as emissoras de rádio e tevê, até vinte anos atrás totalmente viciadas em futebol, abrissem espaço para os outros esportes. Elas abrem os espaços movida a anúncios pagos. Galvão Bueno sabe disso, e foi por isso que fez aquela palhaçada de “implorar para que alguém faça alguma coisa pelo futebol feminino”. A tevê não dará espaço para o futebol feminino a menos que alguém cubra a mídia. Além disso, as estruturas de rede nacional nas televisões, com seus leoninos contratos em as afiliadas, impedem as iniciativas locais (o afiliado deve indenizar a emissora-líder pelo uso de tempo fora da programação nacionalmente pré-formatada). Quem se atreve?

Assim, o que começa agora a ser estruturado vai precisar de tempo para ver resultados acontecerem. Mas vão acontecer resultados bons: os parques aquáticos são cada vez mais numerosos em todo o país, os complexos de atletismo, também. O país está menos pobre, o que permite à classe média reservar recursos para pagar aulas, que é o que mantém funcionando a estrutura esportiva amadora, de onde saem os profissionais. O caro tênis já existe em todo o país, e toda uma geração caminha, corre e malha, valorizando com isso o esforço atlético.

Faltariam entretanto algumas medidas para acelerar o processo. A primeira delas refere-se ao uso dos recursos das Loterias, e implica em que o Ministério da Educação se mexa, para refazer e reestruturar toda a área de educação física escolar, acabando com as aulas ridículas e odiadas pelos estudantes e promovendo o esporte nas escolas – de preferência em associação com os clubes e as organizações comunitárias, de forma a otimizar a aplicação de recursos. Eu até hoje não entendo porque pequenos estádios (ou campos) de futebol do interior ficam vazios enquanto os alunos da rede escolar fazem uma pseudo-educação física em sala de aula...

Essas medidas são de governo e não envolvem gastos novos – antes, envolvem o bom uso de um dinheiro que hoje é extremamente mal aplicado.

Outra medida é a adequação escolar ao jovem talento esportivo. Hoje, um atleta de treze ou catorze anos tem que optar entre estudar e treinar. E um de dezesseis ou dezessete, entre treinar e trabalhar. Não precisa ser assim, e nem deve. Neste governo de tantas bolsas demagógicas, a bolsa esportiva foi ignorada totalmente. E a adequação do ensino a um adolescente diferenciado pela própria natureza, nem sequer cogitada.

Finalmente, um último ponto a ponderar: Fidel Castro está no ocaso, arrastando Cuba junto consigo. O Brasil preencheu o vácuo cubano em âmbito latino-americano, mas dificilmente fará o mesmo em âmbito olímpico. Basta conferir as diferenças de marcas nos vários esportes...

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Questão de gênero

A palavra esporte é do gênero masculino. Talvez seja por isso que apresentadores de tevê e locutores de rádio lidem tão mal com o esporte feminino.

Porque ninguém chama o time de vôlei ou de futebol masculinos de “meninos do Brasil”, mas as dedicadas atletas são chamadas de “meninas”?

Alguém me diz que é uma expressão carinhosa. Mas trai um machismo danado, justo por pretender ser carinhoso. É como se dissessem: deixem elas brincarem, que o assunto sério está deste lado daqui...

Galvão Bueno foi além. Quando Marta transformou em gol um pênalti, disse que ela “cobrou como gente grande”. Peste! Parece que ele não entende que, quanto menos força se tem, mas inteligente e técnico se tem que ser...

Ele – e creio que milhares e milhares de pessoas – não conseguem entender que os gêneros são apenas diferentes, não são superiores um ao outro. As diferenças fisiológicas não impedem uma leoa de caçar, assim como não impedem as leonas de dominar o hóquei sobre grama. Dizem-me que os marcadores de alcance e distância respeitam os gêneros, mas a maioria das campeãs mundiais de hoje corre, salta e arremessa mais longe que a grande maioria dos atletas homens. Uma mulher poderá correr, saltar ou arremessar mais longe que um homem preparado nas mesmas condições? Os técnicos em esporte dizem que não, porque há uma diferença de força que não vai ser superada. Mas essa diferença de força já está sendo superada na relação entre as melhores e aqueles homens que são só bons atletas. E quem vai duvidar da feminilidade da escultural Maggi?

Há porém uma coisa que me incomoda: os homens vêm se refugiando na força, à medida em que as mulheres avançam nos esportes. O vôlei masculino é só pancada; o futebol masculino é só trombada. Chamam isso de futebol-força em oposição ao futebol-arte. Este – leio no blog do Juca Kfouri – fica para as mulheres... É triste que os homens abram mão da arte.

Graças a Deus que Juarez, aquele armário que ganhou a medalha de ouro do caratê, não disfarçou o choro no pódio. As lágrimas masculinas - de Juarez, de Caio, de Oyama – são muito benvindas. Mostram a superação de um dos aspectos do machismo, a figura do homem durão, mas é só um aspecto. A postura de Galvão Bueno mostra que será necessário muito mais para ultrapassar essa fase.

E já que estou falando de gênero: notaram que os gays estão mais assumidos neste Pan? Nunca eles se revelaram tão abertamente. Sinal que a sociedade já não os recusa como antes. E que muito em breve talvez tenhamos o pan-gay. Quais serão as medidas de alcance e distância para eles?

terça-feira, 24 de julho de 2007

A verdade à tona

Ouço o presidente da República dizer que “a verdade virá à tona”, após a investigação que está sendo feita sobre o acidente da TAM. E vejo o pai do co-piloto morto, pedindo que a morte de tantos não seja inútil, mas que sirva para evitar outras mortes.

Este pai sabe: só o conhecimento resgata a dor, dá-lhe um sentido. Porque permite que o insuportável se torne um degrau a mais na evolução humana, e, por isso, consola.

E tem razão em outra coisa que disse: não há apenas um culpado, mas várias responsabilidades, porque de muitas coisas depende uma viagem aérea. De muitas mãos, de muitos cérebros e de muitas máquinas. Uma verdade simples e óbvia, não?

Como essa, algumas outras verdades estão à tona, ou melhor, flutuando no ar. Pelo jeito, Lula, que costuma não saber o que fazem seus auxiliares mais próximos, agora também não vê o que acontece diante do seu nariz. Ele não vê, por exemplo, que o finca-pé com os controladores de vôo não leva a lugar nenhum, e poderia recorrer a toda a sua experiência sindical para ver isso. Os controladores têm algumas razões e alguns excessos; é preciso separar o joio do trigo e, de uma vez por todas, ter reservas em elementos estratégicos – inclusive controladores de vôo.

Ele não vê que, menos que saber quem teve ou não culpa nos acidentes aéreos, o que se quer é respeito no tráfego aéreo. Entre outras coisas, não existe razão alguma para que metade do país tenha que ir a São Paulo pegar um avião para o exterior, ou que todo turista que use a aviação comercial seja obrigado a entrar por São Paulo ou pelo Rio. Não é necessário nenhum investimento novo para resolver isso. Basta ter capacidade de negociação e autoridade com as companhias aéreas. E também, ver o problema onde ele está.

Há cinco anos se discute o portão aéreo Norte – o hub amazônico, a ser definido entre Belém e Manaus. As exposições saem de uma gaveta para outra. O portão Nordeste, em Natal, está totalmente esvaziado: as companhias aéreas não dão a mínima para a desconcentração de vôos, e quem vem da Europa e quer ir para Salvador ou Fortaleza, tem que ir mesmo por São Paulo ou Rio.

Lula também não vê que a ponte aérea Rio/São Paulo, a ser operada entre Congonhas e Santos Dumont, foi dimensionada para aviões com menos de duzentos lugares. A permissão de uso dos grandes aviões não é de seu governo. Mas a bagunça originada pela liberação geral de uso desses dois aeroportos, é. Congonhas é usado como se Guarulhos fosse. O resultado está aí.

Não é preciso esperar que a verdade venha à tona, porque ela está dissecada há muito tempo, em relatórios e advertências, algumas vindas do exterior. Mas, para Lula, será a Polícia Federal quem vai descobrir as verdades. Aliás, eu e a maioria dos brasileiros não sabíamos que a Polícia Federal entende de política aeroportuária, de aviões e de acidentes aéreos...

Na segunda-feira passada, aviões que saíra de Nova Iorque para o Brasil, voltaram para os Estados Unidos, porque o controle aéreo saiu do ar. E Lula continua cego: o governo diz que foi um sargento que errou, só isso!

segunda-feira, 23 de julho de 2007

O velho leão

De uma coisa ninguém pode reclamar de Antonio Carlos Magalhães: dificilmente algum governante terá lutado tanto pelo seu Estado como ele. Ele soube, como poucos, aproveitar as oportunidades e usar todo o enorme poder que conquistou e cultivou para desenvolver a Bahia.

Mas as últimas eleições encerraram o ciclo político das Diretas, Já!, que se iniciou com a distensão de Geisel, teve seu clímax com Fernando Henrique e o real, e terminou com o afastamento de quase todas as lideranças que participaram do processo constituinte.

Por isso é que a morte de ACM anuncia também o ocaso de Lula e da esquerda clássica brasileira. O velho leão morto sinaliza o fim das garras e dentes de seus adversários. A esquerda está numa encruzilhada: ou segue a velha estrada liberal, com pinceladas rosadas aqui e ali, ou entra na trilha da contestação radical. A pequena burguesia, tradicional fornecedora de militantes, prefere hoje competir no mercado a enfrentar desafios políticos. E a multidão dos mais pobres quer é dinheiro, mesmo. Ou, no mínimo, acesso a bens e serviços gratuitos. Foi para isso que elegeu, em todo o país, políticos populistas. Os campeões de votos foram os que baseiam sua atuação em donativos de diversos matizes, bolsas inclusive – e é por isso que vários parlamentares com uma folha corrida de suspeitas foram eleitos.

Esse fim de ciclo responde por boa parte da inquietação brasileira – transições são sempre angustiantes – e também pelo processo de aburguesamento do PT, hoje com a militância esfacelada, e a cada dia mais distante dos marcadores políticos que o fizeram crescer. Ao término do governo Lula o PT será apenas mais um partido político. E se não tomar cuidado, quatro anos depois desse término, no poder ou na oposição, será uma tenda monstruosa, como é hoje o PMDB, cuja proposta política é apenas uma: ser governo, a qualquer preço.

O velho leão não ia por aí: ele tinha proposta, sabia o que queria, tinha marcadores ideológicos tão claros de direita que passou a ser um símbolo dela. Símbolo assumido, diga-se de passagem. Hoje o chamam de conservador. Ele se auto-denominava liberal, defendia abertamente o capitalismo e, com todas as forças de sua alma, a Bahia. Não hesitava em usar a força, o que lhe garantiu o apelido de “Toninho Malvadeza”. E jamais cedeu a alianças de ocasião: ele simplesmente não comia no mesmo prato político da esquerda.

A direita nunca tem encruzilhadas, mas terá que achar um líder novo, ou, no mínimo, alguém que a simbolize. Esta pessoa terá que ter outro perfil: a truculência é coisa do passado, e a força é um recurso quase proibido. E terá como missão principal orientar os representantes da direita no próximo processo eleitoral.

A herança de ACM não está só na Bahia.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

A crise aérea

É mesmo uma crise? Ou é apenas a revelação de uma situação que vem amadurecendo há cinco anos, mercê das opções populistas de governo?

Doze horas depois do acidente um jornalista afirmava que se priorizara a reforma da estação dos passageiros em detrimento da revisão da pista de Congonhas. Afirmou-se muita coisa, nessas horas dramáticas em que o Brasil viu de perto um avião dentro de um prédio. A TAM afirmava continuamente preceitos legais para disfarçar o que é comum nas empresas aéreas: elas jamais sabem direito quem embarcou e quem ficou – o que, aliás, é um pedacinho apenas do tratamento-padrão dado aos passageiros.

Pergunte a algum passageiro idoso se alguma vez, só uma vez, alguém da tripulação pegou a valise de mão para acomodar nos depósitos superiores aos bancos. Pergunte aos médicos que viajam habitualmente se alguma vez alguém passou mal e havia, a bordo, medicamento disponível. Pergunte a qualquer passageiro se alguma vez ouviu um pedido de desculpas a bordo de um avião.

São coisas comuns: o desrespeito aos lugares marcados antecipadamente – você pede corredor e, quando vê, está no sanduíche, sem nenhuma explicação; saber que o vôo foi cancelado apenas quando chega no aeroporto; passar horas de espera sem nenhuma informação de quanto aquela espera vai durar – e, muito menos, ser atendido com água ou lanche.

Não é de hoje: lembro que há muitos anos (o presidente da República era Sarney) fiquei retida no aeroporto de Brasília por mais de quatro horas. Sem explicações e com muita raiva, fui ao DAC reclamar, e, comigo, metade dos passageiros criou coragem. Preenchi um formulário. A resposta veio: seis meses depois, o DAC me informava que “estavam sendo tomadas providências” sobre a reclamação. Guardo esse ofício até hoje, para não me esquecer nunca mais que reclamar de empresa aérea para órgão oficial é o mesmo que nada. E não dá nem para desabafar, porque o formulário não deixa...

Um dia desses, em pleno apagão aéreo, um comandante engraçadinho disse, no vôo em que eu viajava: “Ironicamente, este vôo está no horário.” Nós, os passageiros otários, deveríamos ter talvez passado algumas horas de espera, para satisfazê-lo.

A decadência do tráfego aéreo nacional mantém-se com os equívocos da Presidência da República (melhor distribuir bolsas e garantir votos que dotar de segurança os vôos); com a irresponsabilidade sindical dos controladores de vôo (eu quero o meu, e o resto que se dane); com a inércia de quem deve fiscalizar tudo isso (o todo-poderoso Ministério Público não move uma palha, e o Executivo é conivente); com a voracidade das companhias aéreas, pressionando os custos ao ponto de ruptura dos serviços (check-ins em horários limitados, contenção de pessoal, programas limitados de treinamento e atualização, bagunça nas reservas); com a parcialidade dos políticos (desde que eles sejam bem tratados, não se queixam, eles que viajam sem parar – às vezes até tiram gente do avião); e com a passividade dos viajantes.

Cem mortos, duzentos mortos de uma vez? Parece ser pouco para os interessados, a julgar pela ausência de providências objetivas. O presidente cria um gabinete de crise, espelhando bem seu ponto de vista: trata-se de um tropeço político, e assim será tratado. Depois, Deus dará.

sábado, 14 de julho de 2007

Todo político é corrupto?

Certa vez um psiquiatra me fez uma pergunta análoga: é possível exercer o poder e manter-se íntegro?

Eu lhe respondi que sim, e isto não é tão raro quanto se pensa. Poderia citar Pedro II, nosso imperador de muitos defeitos, mas cuja honradez jamais foi colocada em dúvida – e ele exercia poderes autocráticos. Poderia citar dois ditadores, com poderes semelhantes: Getúlio Vargas e Ernesto Geisel. Jamais tiveram a sua honra questionada – o seu pelourinho foi outro.

No nosso Congresso tão achincalhado, hoje há vultos como Eduardo Suplicy, Jefferson Peres, Denise Frossard, Pedro Simon e Álvaro Valle – cada qual de um partido diferente, e selecionei de propósito assim – de quem ninguém discute a seriedade. Sobre eles não pesa nem a sombra de uma suspeita.

A questão – disse eu ao psiquiatra – é que nós todos, humanamente, muito humanamente, nos deliciamos com um escândalo qualquer. E por isso é o escandaloso que ocupa a mídia. Mas, se Maluf se elegeu em São Paulo, Suplicy também veio de lá. Ou seja: há quem vote em Maluf e quem vote em Suplicy. Há quem vote nos dois. E este último é senador, enquanto o outro é apenas deputado. O eleitorado sabe o que quer...

Além disso, o exercício da política é intrigante. Em todos os sentidos: não só intriga as pessoas, como vive de intrigas. Em política, boato pode gerar fatos, e há os especialistas em boatos. Como Iago: uma suspeita aqui, outra ali, uma história mal contada em cima de um gesto mal interpretado – e as conclusões começam a aparecer. O intrigante fica na dele. Mas o fato está criado.

Mais ainda: política é como pista de patinação, skate, surfe. É uma arte de acrobacias vivenciais. Um político me disse uma vez, exasperado com um eleitor: “Você fez dez coisas pelo sujeito, deixa de fazer uma, pronto, lá vai ele para outro gabinete.” Queixa comum, essa. O que ocorre de fato é que o eleitor interpreta o não-feito, por quem sempre fez, como perda de poder. O político já não pode mais representá-lo...

Em que consiste um bom político? De que qualidades será ele feito? Essa pergunta raramente é feita; embora a maioria das pessoas julgue de pronto “os políticos”, e geralmente julgue mal, não se preocupa em definir o que é qualidade em política.

Como o político pratica acrobacias, ele tem que ser ágil. No caso, a agilidade tem que ser mental, por raciocínio ou intuição. Não existe atividade mais competitiva que a política - nem a esportiva é tão radical assim, competindo todos os dias, de manhã à noite - e por isso ele tem que tentar estar sempre um pouco à frente dos adversários. E os adversários podem ser os membros de outro partido, ou podem ser os próprios correligionários (como por exemplo, numa eleição), dependendo da ocasião. Como ele depende do voto, ele deve manter-se dentro da expectativa do eleitorado, o que significa que seus gestos e atos devem pautar-se pela opinião e demandas alheias. E, finalmente, ele precisa alcançar um número suficiente de eleitores, ou manter-se ao alcance deles, para poder atendê-los, o que significa estabelecer meios de comunicação contínua.

Esses são os parâmetros, as condições básicas, ou melhor, as condições limitantes.

São condições duras. Para enfrentá-las, o bom político deve ser um articulador – uma pessoa capaz de convencer os outros, inclusive seus pares, para seguir num determinado rumo; um bom ouvinte, para ser capaz de entender o que lhe diz a população e principalmente seus eleitores; ter criatividade suficiente para ultrapassar os impasses, ou para apresentar propostas novas; tomar cuidado com sua imagem, de forma a apresentar-se sempre pelo melhor ângulo; e, finalmente, arrumar seu plano de despesas a partir do seu eleitorado.

Tudo isto, no chão marítimo de uma sociedade em permanente transformação, na corda bamba das flutuações da opinião pública, e nas curvas radicais dos fatos sociais. E como a sociedade é plural, há lugar para tudo num Congresso Nacional: a virtude e o pecado estarão lá representados na mesma proporção que existem na sociedade. Combatendo entre si do mesmo jeito como acontece em toda parte. E incapazes de vencer, uma ou outra, porque, sempre, na nossa humaníssima insatisfação permanente, quando se consegue uma coisa já se quer outra, e, na política, o que se alcança vira passado, porque há sempre um novo problema para resolver...