sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O preto Obama

O combativo companheiro olha pra mim através de uma barbicha rala e antiga e sentencia:
- Obama é um branco disfarçado de preto.
Contemplo o homem à minha frente. Ele é mestiço, como todos nós. Nele, a precedência física é índia: olhos, malares e a barbicha rala. Penso de repente que com outro tom de pele e ele poderia ser mongol ou eslavo. Deixo a sentença – ele não pronunciou uma frase, mas uma sentença – se decompor no meu cérebro. Pergunto-lhe:
- O que é ser preto?
Do discurso confuso que se seguiu apreendi que é necessário aos pretos usar cabelos rastafari ou assemelhado, camisetas berrantes e palavras agressivas – do ponto de vista do combativo da barbicha. Luther King não serve, tem que ser Malcolm X. Daí perguntei se ele conhecia José do Patrocínio. Conhecia, assim, de ouvir falar – ou seja, não conhecia.
Pensei, mais tarde, o quanto de sutil e venenoso pode ser o preconceito. Obama – poderoso, inteligente, culto - não pode ser preto, tem que ser branco. Obama não pode ter ascendência sobre os louríssimos descendentes de irlandeses ou saxões – ah, ele está lá para prestar-lhes serviço. Obama não pode ter um compromisso com seu povo e sua pátria – o preto Obama deve ser um branco tingido.
O Quênia festejou em torno de fogueiras – sim, nós podemos! mesmo sabendo que Obama será um presidente norte-americano por excelência, que fará o necessário pelo seu povo e pelo seu país, mesmo que tenha que pisotear metade do mundo. Ele é um gigante, este homem: ao lado dele, Lula, Cháves e Morales são caricaturas.
Provavelmente seu primeiro trabalho como presidente será o de faxineiro. Há uma enorme quantidade de lixo da guerra fria espalhada pelo planeta. Ao mandar fechar a base de Guantánamo, Obama acendeu a primeira sinaleira de uma longuíssima estrada diplomática. O entulho das guerras do século XX, que atravanca o mundo todo, e cuja existência é extremamente dispendiosa, precisa ter seu rumo e destino. Há que explodir as minas terrestres, desmontar ou desarmar gigantescos navios e submarinos, desmobilizar milhões de soldados em todos os continentes e das mais variadas etnias, recolher e transformar a tecnologia desenvolvida para a guerra... Grande parte desse entulho é norte-americano; e é um entulho valioso, que poderá alicerçar, tranquilamente, a nova escola pública de qualidade buscada por eles.
Deixem-me imaginar José do Patrocínio festejando a eleição de Obama. Porque ele festejaria, sem dúvida, com uma queima de fogos de artifício de deixar o Rio de Janeiro embasbacado; e, depois, tentaria uma audiência para levar ao presidente americano um grande plano de fraternidade Brasil – Estados Unidos. Mirabolante, como todos os planos dele – mas com tanto otimismo e tanta fé na criatura humana que seria impossível ignorá-lo.
José do Patrocínio veria em Obama uma perspectiva, uma possibilidade, onde o combativo companheiro da barbicha rala só vê um branco tingido. José do Patrocínio, negro, filho de escravos, dobrou o Rio de Janeiro à sua vontade e inaugurou, no Brasil, tanto o automóvel como o primeiro acidente de automóvel. O preto Zé do Pato jamais se reduziu à própria pele. Como o é Obama, era grande demais para isso.