sexta-feira, 5 de março de 2010

A morte do homem de bem

Domingo, 28 de fevereiro de 2010, nove da manhã, Beto conversava com o sogro na porta da sua casa, no bairro da Cremação, em Belém.

Ele morava numa casa de madeira, construída no quintal do sogro, desse jeito paraense muito comum de resolver a moradia mantendo os familiares por perto. Desde rapaz novo ele montara uma vendinha de açaí. Aos poucos, conseguiu abrir uma pequena estância – nome que damos a um tipo de loja que vende material de construção, incluindo madeira. Fazia fiado para os vizinhos, e atendia a todos sem hora para trabalhar – e isto lhe dava, além do suado dinheirinho, uma popularidade grande. Num bairro marcado pelo tráfico, Beto construía sua prosperidade e sua reputação como homem de bem, e jamais se ouviu dizer que se metera nesta ou naquela falseta. Seu casamento não ia muito bem, e, às vezes, Beto pulava a cerca – mas sua mulher trabalhava com ele, ombro a ombro. Era ela quem tomava conta do dinheiro e da papelada da loja. Ele atendia os clientes e cobrava as contas. Os desacertos conjugais não afetavam o pequeno negócio.

Nesse domingo, um homem foi procurá-lo. Perguntou se ele era o Beto, e pediu que lhe vendesse um ralo de banheiro. Beto lhe disse que não abria aos domingos; estava cansado; o homem insistiu – era um fim de serviço, e precisava do ralo e mais alguma quantidade de areia, pedra e cimento. Beto relutou, mas acabou cedendo: chamou a esposa, e, juntos, foram buscar um carreteiro amigo, morador na mesma rua, para que trouxesse o carrinho de mão e ganhasse também o seu.

Na estância, o homem escolheu o material, e, enquanto Beto e o carreteiro carregavam o carrinho, disse de repente que tinha esquecido o dinheiro em casa, e ia buscar. Beto e o carreteiro trabalhavam quando chegaram dois motoqueiros, ambos de capacete. Um deles perguntou: “Tu é que és o Beto?” Ele respondeu: “Sou, sim”. O homem puxou uma arma: “Te ajoelha”. E, olhando para a mulher e o carreteiro: “Vocês, aí, se virem de costa”. Os dois obedeceram e ele disparou três tiros na cabeça do homem ajoelhado. E foi embora, com o outro motoqueiro.

Simples assim. Eram umas nove e meia da manhã. No centro da cidade. Sem assalto, sem explicação.

O alarme correu a vizinhança, e os tititis falavam de uma dívida de 600 reais, que Beto vinha cobrando, ou de uma mulher casada, com quem Beto aparecera recentemente. Mas ninguém sabe ao certo porque o Beto morreu, mandado matar com certeza, porque nem o assassino, nem o homem que serviu de isca, o conheciam pessoalmente.

Na semana anterior, autoridades policiais haviam dado entrevista nos jornais dizendo que o banho de sangue em que Belém mergulhou nos últimos tempos se deve a acerto de contas entre traficantes. Os números oficiais, inconfiáveis porque maquiados (para se ter uma idéia, no último trabalho apresentado pela Segup, em dezembro de 2009, são excluídos os três últimos meses dos anos de 2008 e 2009) apontam entre 92 e 114 mortos por homicídio na região metropolitana de Belém, por mês. O que resulta em três ou quatro por dia. Desse volume de mortes, o que resulta elucidado é mínimo – não chega à metade.

Beto é um desses números – ele não era missionário, nem turista, nem doutor. Não participava de movimento que hoje cobre resultados da polícia. Era apenas um homem comum, um homem de bem. O que, nesta cidade cada vez mais violenta, parece ser delito suficiente para uma pena de morte.