quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Tudo como antes

Passadas as emoções fortes causadas pela morte em massa; encerradas as demonstrações demagógicas; destituídas algumas autoridades, mais ou menos importantes; tudo volta a ser como antes em Congonhas.

As restrições de segurança caem, uma por uma. Os aeronautas acomodam-se, que têm que ganhar a vida, e só o Lula até hoje conseguiu ganhar a vida fazendo passeata. Os enlutados choram seus mortos, tratam seus traumas, rezam e tentam refazer suas vidas, que também não podem ficar por conta do passado. E Congonhas volta a ser como antes.

Leio um irritado comentário de leitor, criticando as decisões judiciais que frearam um pouco os arriscados vôos de Congonhas. Diz ele que o juiz não sabe. É verdade, o juiz não conhece os detalhes, mas coube-lhe suprir a falta de vergonha do pessoal da ANAC. O pessoal da ANAC deveria saber – e, se sabe, não faz. E, de qualquer maneira, não interessa se este avião pousa assim ou pousa assado. Ou a pista é segura, ou não é, para este ou para qualquer outro avião liberado para ela.

Eu já voei nos céus amazônicos quando segurança de vôo era pura ficção, e ainda faço viagens aéreas sobre pedaços de mato em que a segurança de vôo é apenas uma possibilidade. Mas o risco da aventura é próprio e pessoal; ninguém me vendeu uma passagem garantida.

Congonhas volta a ser um aeroporto inseguro, no meio de uma mega-cidade, com os pousos e decolagens arruinando os ouvidos de milhares de pessoas no entorno, uma pista meia-boca e um faturamento que atropela qualquer interesse público.

É verdade que, durante pelo menos cinco anos, os envolvidos na infra-estrutura aeroportuária e os próprios pilotos tomarão cuidados e cuidados para evitar acidentes ali. Mas é verdade que ninguém pode ficar sempre alerta, e, mais dia, menos dia, alguém vai se acabar naquela pista.

Cinismo napoleônico? O criador da logística entrava nas campanhas calculando previamente as quantidades de mortos de cada batalha. Parece que em Congonhas está-se aplicando o mesmo princípio – quantos mortos para quantos reais?

E que ninguém diga que não há dinheiro para investir: o que não existe é prioridade. Um aeroporto não se constrói em final de mandato, porque não dá tempo. Então, deixa-se para o próximo governo. Ou talvez para a próxima tragédia.

É triste: aprender com os erros faz parte da experiência humana, mas isto não está no dicionário dos nossos governantes. É que eles nunca erram. Nem em Congonhas, nem em coisa alguma do que fazem.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Bem-intencionados


Dante os colocou no inferno, os bem-intencionados desastrados, as pessoas que agem de forma unilateral, intervindo e atrapalhando. Mas tradicionalmente eles são considerados como instrumentos do destino, do acaso, ou da vontade divina, conforme a crença ou falta dela. Mas há também os bem-intencionados que são prudentes e refletidos, mas que, mesmo assim, fazem exatamente o que não se quer que eles façam.

Por força de ofício, andei revirando algumas discussões sobre a segunda guerra mundial, e, particularmente, os ataques e defesas da guerra naval, ou seja – trechos do depoimento do Almirante Döenitz, em Nuremberg, de um lado, trechos de analistas aliados, de outro. Döenitz expõe suas ordens, perfeitamente lógicas dentro do ilógico da guerra, e os aliados expõem suas ordens, também perfeitamente lógicas dentro do ilógico da guerra. Não há, num e noutro lado, nada além de valores positivos dentro do contexto de uma guerra: patriotismo, ataque, defesa, técnica militar, uso dos meios ao alcance, destruição máxima dos inimigos. No entanto, na oposição dos mesmos valores, de um lado para outro, há milhares de mortos.

Por força de ofício, também tenho assistido o ir e vir de governos. Fracos, fortes, medíocres ou competentes, ditaduras ou democracias. Gore Vidal, no seu monumental “Criação” diz que a diversão do povo é escolher dirigentes para depois jogar pedras neles, ou expulsá-los das cidades a pedradas. Dirigentes, geralmente, estão cheios de boas vontades e certos de que interpretam a vontade do povo. Defrontam-se com um fosso entre a vontade do povo e o que é possível fazer; suas ações são geralmente engolidas neste fosso. Suas boas intenções colidem frontalmente com as boas intenções do povo. O resultado são as pedradas ou as ditaduras – sempre dedicadas a uma boa causa. Cheias de boas intenções.

Fazer o que? A crença de cada um rege as suas ações. As crenças, entretanto, são diferentes, e, apesar do diálogo, sempre possível para ajustar os modos de fazer, nem sempre pode-se resolver com palavras o que exige ações. Sobretudo o que precisa ter rapidez para ser resolvido.

Digo isto porque venho acompanhando, como sempre, as ações de governo que têm sido desenvolvidas por Lula e sua equipe. Eu não sei se ele, ou alguém de seu grupo (talvez Dilma Roussef?) leram alguma vez o “Breviário dos Políticos”, do cardeal Mazzarino (que, diga-se de passagem, foi o italiano que levou sofisticação para a França), mas o que têm feito ultimamente segue com a precisão possível da diferença de tempo, as recomendações do cardeal. Por exemplo: como entregar a cabeça de um poderoso aliado sem ir junto. O processo orquestrado por Lula e Dilma, no caso Renan Calheiros, foi um perfeito dever-de-casa do “Breviário”. Mazzarino levantaria uma de suas taças de quartzo transparente para, em silêncio, saudar o aluno.

Que, como o velho cardeal, também está cheio de boas intenções: a principal delas é manter-se no poder, seja essa ou não a intenção da maioria do povo.