sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Clara, a paraense

Clara Martins tinha 19 anos quando ingressou no mundo científico, ao lado de, nada mais, nada menos, Paul Le Cointe. Ela estudava na Escola de Chimica Industrial, fundada em 1910 e fechada em 1931. Sua presença no primeiro e único boletim da Escola de Chimica, publicado em 1929, é como colaboradora de Le Cointe, líder da equipe francesa que tocava a escola, numa contribuição ao estudo químico das plantas amazônicas.

(Eu penso no que Clara deve ter enfrentado para entrar nessa escola, uma adolescente de dezesseis anos... a ciência era, nos anos 20 do século XX, um reduto masculino; creio que o fato de ter uma inteligência extraordinária a ajudou; mesmo assim, numa época em que o destino feminino vinha traçado do berço, estudar química industrial, com cientistas franceses – devia ser demais para a província!)

Dois anos depois daquela estréia, a escola era fechada por Getúlio Vargas.

Mas Clara tinha adquirido uma paixão, definitiva: a Amazônia.

Vinte e cinco anos depois, Clara conseguia sua reabertura. Ela já se chamava Clara Pandolfo, e já obtivera sua primeira parcela significativa de poder: estava na SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a antecessora da SUDAM), e havia otimismo – e dinheiro – em relação às coisas regionais. A Escola, agora, era escrita com “qu” e mantida pela Associação Comercial do Pará e SPVEA. A Escola de Química Industrial continua até hoje, transformada em Faculdade, dentro da Universidade Federal do Pará.

(Penso no que Clara faria hoje, ao ver o “seu” curso de química como um dos quatro piores do Brasil... Ah, não ficaria por isso mesmo!).

Nada mais tivesse feito Clara e isso já seria suficiente para garantir-lhe um espaço considerável na história da ciência paraense. Só que Clara era maior, muito maior: movida pela paixão desenvolvida com Le Cointe, tornou-se uma das maiores autoridades em Amazônia no século XX. Centenas de trabalhos e alguns livros refletem seu pensamento e sua participação.

Sim, porque Clara jamais foi omissa. Solidamente ancorada em ciência e técnica, foi uma militante que compareceu a milhares de eventos, escreveu dezenas de artigos, debateu, reuniu, lutou e interferiu politicamente onde quer que estivesse.

Era de uma lucidez impressionante o que, ao lado de uma inteligência extraordinária, lhe dava um senso crítico capaz de perceber conseqüências de longo e médio prazo com extrema rapidez.

(Eu penso em Clara enfrentando a aceleração tecnológica, que a alcançou depois dos 50 anos. Olhando os computadores e extasiada diante das telas que lhe mostram o que só imaginava através do estudo dos livros. Lutando com a velocidade, tentando compreender, observando a rápida mudança nos costumes, na tecnologia...).

Sua militância, é claro, foi ultrapassada: militâncias são efêmeras e circunstanciais. Seu pensamento, entretanto, fica. E muito do que disse dói, dói fundo numa certa elite e numa certa esquerda. Talvez por isso os comentários sobre sua morte são raros e esparsos; talvez por isso as pessoas esqueçam que Clara foi uma pioneira na ocupação de espaços intelectuais pelas mulheres paraenses; foi uma intransigente defensora da Amazônia; foi uma realizadora; foi uma servidora pública exemplar. Honrou seu mestre, sua família e sua geração.

Mais: gostem ou não, suas palavras ficam. Como estas, que escreveu em 1956, aos 44 anos, num trabalho vencedor de um concurso promovido pelo jornal “Folha do Norte”:

“Uma exploração florestal bem dirigida estará forçosamente jungida à necessidade de desenvolver programas de reflorestamento. A indústria madeireira que não providencie a reposição da cobertura florestal da área desmatada, será obrigada a ir buscar a distâncias cada vez maiores a madeira para seu suprimento, acarretando custos operacionais cada vez mais elevados”.

Simples assim. E ainda crítico, há meio século...

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Sons antigos

O carro-som da paróquia passa convocando para uma manifestação dominical pela paz. O locutor pede que levem bandeiras brancas e faixas.

Clérigos e religiosos têm promovido essas passeatas/procissões por toda a cidade, nos últimos tempos, nesta Belém que a droga está banhando de sangue. Em alguns bairros, como na Terra Firme, crenças diversas se misturam no branco, o espectro de todas as cores: pedem paz, paz, paz.

É uma prática antiga: diante do inimigo poderoso – seja ele a fome, a peste ou a guerra – reza-se coletivamente. Cortejos e procissões ocorrem da picada no mato ao asfalto, passando pelas ruas pavimentadas de todos os tempos.

O som é antigo, pois. Mas hoje, o inimigo não está nas portas da cidade nem do país, não há epidemia mortal nem fome. A paz que se pede é entre nós mesmos.

Seremos nós nossos próprios inimigos? Onde está o brasileiro cordial, que durante tanto tempo foi apresentado ao mundo? Ou esse brasileiro nunca existiu, era uma ilusão dourada que agora se desfez? E por acaso – estamos em guerra?

Não, não estamos em guerra.

No entanto as pessoas sentem necessidade de ir às ruas para rezar em procissões pedindo paz – como se estivéssemos em guerra.

As mortes violentas incham as estatísticas – como se estivéssemos em guerra.

Mas admitir um estado de guerra é reconhecer a existência de duas populações inimigas uma da outra. É reconhecer a existência de uma trincheira, de uma divisão. É dar como verdadeiro que os dois lados estão irreconciliáveis, que não há negociação possível, nem concessões a serem feitas.

Mas não há esses dois lados, nem essa trincheira – pelo menos, não de forma facilmente identificável. A violência permeia todos os espaços, físicos ou sociais: a sala de aula, o clube, a rua, o recesso doméstico, a repartição pública, a loja, o banco, a família, os grupos que tentam se divertir ou trabalhar em qualquer lugar.

O cidadão se vê tão impotente como quando tinha exércitos nas portas da cidade, ou quando a peste varria o interior dessas mesmas cidades: as instituições sociais incumbidas da defesa de todos e cada um estão como que naufragadas.

E eu acabo de ler os “princípios e diretrizes” votados na Conferência Nacional de Segurança Pública. Também são sons antigos.As propostas mais votadas são as reivindicações corporativas: mais salários, mais vantagens, mais privilégios. E o restante pode ser resumido numa única frase, confeitada de lindas palavras: que não se mude nada.

É melhor, mesmo, ir às procissões. Pelo menos estes sons antigos têm a harmonizá-los a majestade dos séculos.