Clara Martins tinha 19 anos quando ingressou no mundo científico, ao lado de, nada mais, nada menos, Paul Le Cointe. Ela estudava na Escola de Chimica Industrial, fundada em 1910 e fechada em 1931. Sua presença no primeiro e único boletim da Escola de Chimica, publicado em 1929, é como colaboradora de Le Cointe, líder da equipe francesa que tocava a escola, numa contribuição ao estudo químico das plantas amazônicas.
(Eu penso no que Clara deve ter enfrentado para entrar nessa escola, uma adolescente de dezesseis anos... a ciência era, nos anos 20 do século XX, um reduto masculino; creio que o fato de ter uma inteligência extraordinária a ajudou; mesmo assim, numa época em que o destino feminino vinha traçado do berço, estudar química industrial, com cientistas franceses – devia ser demais para a província!)
Dois anos depois daquela estréia, a escola era fechada por Getúlio Vargas.
Mas Clara tinha adquirido uma paixão, definitiva: a Amazônia.
Vinte e cinco anos depois, Clara conseguia sua reabertura. Ela já se chamava Clara Pandolfo, e já obtivera sua primeira parcela significativa de poder: estava na SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a antecessora da SUDAM), e havia otimismo – e dinheiro – em relação às coisas regionais. A Escola, agora, era escrita com “qu” e mantida pela Associação Comercial do Pará e SPVEA. A Escola de Química Industrial continua até hoje, transformada em Faculdade, dentro da Universidade Federal do Pará.
(Penso no que Clara faria hoje, ao ver o “seu” curso de química como um dos quatro piores do Brasil... Ah, não ficaria por isso mesmo!).
Nada mais tivesse feito Clara e isso já seria suficiente para garantir-lhe um espaço considerável na história da ciência paraense. Só que Clara era maior, muito maior: movida pela paixão desenvolvida com Le Cointe, tornou-se uma das maiores autoridades em Amazônia no século XX. Centenas de trabalhos e alguns livros refletem seu pensamento e sua participação.
Sim, porque Clara jamais foi omissa. Solidamente ancorada em ciência e técnica, foi uma militante que compareceu a milhares de eventos, escreveu dezenas de artigos, debateu, reuniu, lutou e interferiu politicamente onde quer que estivesse.
Era de uma lucidez impressionante o que, ao lado de uma inteligência extraordinária, lhe dava um senso crítico capaz de perceber conseqüências de longo e médio prazo com extrema rapidez.
(Eu penso em Clara enfrentando a aceleração tecnológica, que a alcançou depois dos 50 anos. Olhando os computadores e extasiada diante das telas que lhe mostram o que só imaginava através do estudo dos livros. Lutando com a velocidade, tentando compreender, observando a rápida mudança nos costumes, na tecnologia...).
Sua militância, é claro, foi ultrapassada: militâncias são efêmeras e circunstanciais. Seu pensamento, entretanto, fica. E muito do que disse dói, dói fundo numa certa elite e numa certa esquerda. Talvez por isso os comentários sobre sua morte são raros e esparsos; talvez por isso as pessoas esqueçam que Clara foi uma pioneira na ocupação de espaços intelectuais pelas mulheres paraenses; foi uma intransigente defensora da Amazônia; foi uma realizadora; foi uma servidora pública exemplar. Honrou seu mestre, sua família e sua geração.
Mais: gostem ou não, suas palavras ficam. Como estas, que escreveu em 1956, aos 44 anos, num trabalho vencedor de um concurso promovido pelo jornal “Folha do Norte”:
“Uma exploração florestal bem dirigida estará forçosamente jungida à necessidade de desenvolver programas de reflorestamento. A indústria madeireira que não providencie a reposição da cobertura florestal da área desmatada, será obrigada a ir buscar a distâncias cada vez maiores a madeira para seu suprimento, acarretando custos operacionais cada vez mais elevados”.
Simples assim. E ainda crítico, há meio século...
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11 comentários:
Ana.
Seu post vale como homenagem e reconhecimento.
Concordo que estamos todos em débito com Clara Pandolfo.
Não sei se é uma impugnação ou apenas uma outra forma de pensar sobre um mesmo fato histórico.
Mas imagino que em 1910, no finalzinho da época áurea da borracha, Belém era bem diferente e em certos aspectos até melhor do que a atual. Sempre fico com a impressão que o ambiente intelectual dessa época era bem mais avançado do que o restante do Brasil, descontado talvez o Rio de Janeiro.
Flávio Nassar sempre relembra que Pereira Passos disse para Antônio Lemos que ele queria fazer no Rio o que Lemos fizera em Belém, uma reforma urbana que ecoava a do Barão de Haussmann em Paris. Belém era tão vanguarda quanto Rio e Buenos Aires (Alvear fez a reforma urbana dela mais ou menos na mesma época).
Mas não nos salva a nostalgia e muito menos a esperança.
E o presente simplesmente nos derrota, se não conseguirmos alterá-lo, como de fato não conseguimos.
Ai de ti, Belém!
verdade. mas não esqueças que os anos 20 do século XX são também os de Severa Romana, e a leitura do processo da santinha nos revela muito sobre o que se pensava das mulheres e o que era então o povo de Belém.
obrigada, Alencar.
Prezada Ana Diniz,
Que bela homenagem vc fez a minha avó. Muito obrigado em nome da nossa família. Assim como vc, também sou jornalista e estou escrevendo um livro sobre a vida dessa mulher surpreendente e que não deve cair no esquecimento. Parabéns
Ana,
Seu post é uma bela homenagem a memória de Clara Pandolfo. Para todos que admiram a história dessa mulher à frente do seu tempo e todo o seu legado acadêmico, fica o gosto amargo do descaso público com a Faculdade de Química Industrial do Pará, que teve amplamente divulgada a sua péssima avaliação pelo MEC.
Ana,
Seu post é uma bela homenagem a memória de Clara Pandolfo. Para todos que admiram a história dessa mulher à frente do seu tempo e todo o seu legado acadêmico, fica o gosto amargo do descaso público com a Faculdade de Química Industrial do Pará, que teve amplamente divulgada a sua péssima avaliação pelo MEC.
Ticiana, Murilo,
obrigada por ler e comentar.
Caríssima Jornalista
Filho de Clara Pandolfo, médico e escritor fiquei satisfeito ao ler seu texto sobre essa criatura extraordinária a quem nossa região muito deve (passou a vida a estudar, divulgar e defender a Amazônia), conquanto poucos lhe ressaltem o esforço e o trabalho como fez a ilustre jornalista. Obrigado, em nome da família, pela consideração e ppelas notas.
Sérgio Martins Pandolfo
Obrigada, Sérgio, pelas palavras amáveis.
Ana
É tão raro, hoje em dia, alguém prestar uma homenagem pública, com tanto senso de justiça e humanismo como o que você imprimiu em seu texto, a uma pessoa com a trajetória de Clara Pandolfo, que fiquei verdadeiramente comovida com o post. Valeu!
Ana,
Bela lembrança!Ouvi falar de Clara pela primeira vez por minha mãe que a admirava muito e costuma citá-la como mulher pioneira.Pena!A escola de química tem tudo para ser a melhor. O que houve com a parte de química natural que era tão boa.Clara realmente tinha o sonho, a vontade o pouco lhe era dado e o muito ela o construia.
lindalva
E, vejam - tanta gente admirava Clara em silêncio...
obrigada, Ana
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