O carro-som da paróquia passa convocando para uma manifestação dominical pela paz. O locutor pede que levem bandeiras brancas e faixas.
Clérigos e religiosos têm promovido essas passeatas/procissões por toda a cidade, nos últimos tempos, nesta Belém que a droga está banhando de sangue. Em alguns bairros, como na Terra Firme, crenças diversas se misturam no branco, o espectro de todas as cores: pedem paz, paz, paz.
É uma prática antiga: diante do inimigo poderoso – seja ele a fome, a peste ou a guerra – reza-se coletivamente. Cortejos e procissões ocorrem da picada no mato ao asfalto, passando pelas ruas pavimentadas de todos os tempos.
O som é antigo, pois. Mas hoje, o inimigo não está nas portas da cidade nem do país, não há epidemia mortal nem fome. A paz que se pede é entre nós mesmos.
Seremos nós nossos próprios inimigos? Onde está o brasileiro cordial, que durante tanto tempo foi apresentado ao mundo? Ou esse brasileiro nunca existiu, era uma ilusão dourada que agora se desfez? E por acaso – estamos em guerra?
Não, não estamos em guerra.
No entanto as pessoas sentem necessidade de ir às ruas para rezar em procissões pedindo paz – como se estivéssemos em guerra.
As mortes violentas incham as estatísticas – como se estivéssemos em guerra.
Mas admitir um estado de guerra é reconhecer a existência de duas populações inimigas uma da outra. É reconhecer a existência de uma trincheira, de uma divisão. É dar como verdadeiro que os dois lados estão irreconciliáveis, que não há negociação possível, nem concessões a serem feitas.
Mas não há esses dois lados, nem essa trincheira – pelo menos, não de forma facilmente identificável. A violência permeia todos os espaços, físicos ou sociais: a sala de aula, o clube, a rua, o recesso doméstico, a repartição pública, a loja, o banco, a família, os grupos que tentam se divertir ou trabalhar em qualquer lugar.
O cidadão se vê tão impotente como quando tinha exércitos nas portas da cidade, ou quando a peste varria o interior dessas mesmas cidades: as instituições sociais incumbidas da defesa de todos e cada um estão como que naufragadas.
E eu acabo de ler os “princípios e diretrizes” votados na Conferência Nacional de Segurança Pública. Também são sons antigos.As propostas mais votadas são as reivindicações corporativas: mais salários, mais vantagens, mais privilégios. E o restante pode ser resumido numa única frase, confeitada de lindas palavras: que não se mude nada.
É melhor, mesmo, ir às procissões. Pelo menos estes sons antigos têm a harmonizá-los a majestade dos séculos.
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Um comentário:
Quando os homens e mulheres perdem a capacidade de se indignar diante das injustiças gritantes que vêm diante de seus olhos; quando estão apartados por um fosso de desigualdade social, que faz com que uns poucos morem em torres e condomínios fechados, enquanto logo adiante está um casebre miserável, onde famílias passam forme; quando homens públicos se locupletam desviando verbas públicas em proveito próprio como acontece em Belém do Pará e em todo Brasil; quando nossos intelectuais se calam enfurnando-se nos nichos acadêmicos; quando deixamos um pequeno grupo de notáveis e privilegiados conduza a nossa vida; quando a opinião pública é violentada pelos donos dos veículos de comunicação, perseguindo e processando aqueles que têm opinião contrária; quando se governa sem transparência e sem prestar contas do que faz ao público; quando se age na surdina com o único fito de conseguir vantagens em benefício próprio e violência torna-se um sintoma crônico, devastador. Aí não adianta as vestes brancas das pessoas pedindo paz - e, as vezes, junto com o pedido de paz pedindo a pena de morte para os bandidos, como se vê frequentemente. Sim, a cidade está em guerra e, claro, que nessa batalha cruel a tendência é criminalizar os pobres, os que não tem acesso à justiça. A violência está no desemprego: o Pará é o Estado da Federação que tem o menor rendimento médio por família ocupada na Amazônia, segundo o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro, com base nas estatísticas do IBGE. A violência está nas condições de saúde da população, uma das piores do Brasil. A violência está num dado econômico dramático , quando os projetos minerais extraem volumosos produtos naturais do Pará, sem que isso signifique transformá-los em fonte de renda e emprego para a região.
Desde algum tempo, Ana, que o mito da sociedade cordial está desmentido. Como pode uma sociedade que se estruturou e teve como espinha dorsal a escravião ter sido sempre cordial, como imaginavam certos estudiosos da cultura brasileira. Os chamados "homens livres", mas que vivem numa "ordem escravocrata", como dizia a historiadora, que criaram essa imagem, logo destroçada quando o Brasil entrou no acelarado período do chamado "capitalismo selvagem".
É salutar a caminhada pela paz, vestir-se de branco e sair às ruas da cidade. Mas não basta. O que Cristo esperava de nós não era uma piedade hipocrita de quem rezava e depois explorava os pobres. Mas um engajamento real, concreto para construir a paz com alicerce consistente, compreendendo o que se passa na sociedade, lutando por mudanças substancias, libertando-se dos grilhões do individualismo, da falta de solidariedade. Se não tiver isso, seremos um povo sendo "esperando do Jesus prometeu", como diz a canção, e, assim, esperando, tambén, Godot, do Samuel Becker.
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