terça-feira, 12 de maio de 2015

Complicações amorosas


Acabo de ler uma recente decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça distinguindo a categoria “namoro qualificado” daquela denominada “união estável”. É parte, creio, da profunda transformação que a família, enquanto unidade social, está passando, o que envolve, também, diversas categorias de relacionamento a dois.

Recentemente soube de um par, gay, por sinal, com um relacionamento de tapas e beijos de dez ou doze anos. Um deles adoeceu gravemente -  não era de Aids, diga-se – e mandou o parceiro ir atrás de alguma pensão, herança, qualquer coisa que o deixasse menos inseguro na pobreza deles. O parceiro ouviu do advogado que não haveria nada para ele, a menos que casasse: dadas as características do relacionamento, com cada qual levando a sua vida, eles seria considerados apenas ficantes. Ficantes de dez anos, mas ficantes: os tapas interrompendo os beijos não permitiriam sequer que fossem considerados namorados. E até o casamento poderia ser contestado: a gravidade do estado de saúde do parceiro poderia lançar suspeitas sobre a liberdade de sua vontade.

O ficante antecipa o namorado; pelo menos é isso que eu encontro num “Guia para transformar ficante em namorado”, cheio de dicas: como introduzir o ficante paulatinamente na sua vida, e como se introduzir na vida dele; não se falsificar, porque os homens não gostam de comprar gato por lebre; manter-se calma, controlando a ansiedade – e por aí afora. E antes da ficação tem a curtição – nome novo para o antigo flerte, aquele arrastar de asa para a figura querida, cheio de encontros deliberadamente casuais e de olhares lânguidos.

Ficantes fazem sexo, mas vão e vêm, cada qual seguindo a sua vida. E depois temos os namorados. Na definição do STJ, namorados são os que fazem planos.

Namorados podem ser simples, andar juntos o bastante para fazer a célebre pergunta: no seu apartamento ou no meu? – isso, se tiverem apartamento; caso contrário, rola motel, mesmo. E podem ser qualificados, caso em que podem até viver juntos, morar na mesma casa, dormir na mesma cama. Namorados qualificados, para o STJ, mantém um espaço próprio, independente do parceiro, e pensam no futuro, até o planejam. Mas não efetivam a unidade familiar: não estão juntos para o que der e vier, mas só para o que der; o vier é outra conversa, depende de como venha. Pode acontecer de ficarem nessa durante muito tempo, até a vida toda. Namorados, mesmo qualificados, não têm direitos sobre os bens do parceiro: este é o preço da liberdade individual mantida.

A próxima categoria é a do companheiro ou convivente: duas pessoas moram juntas e compartilham tudo. Não interessa sexo – nem quanto ao gênero de cada uma delas, nem mesmo se o fazem. O sexo, antes condição fundamental para a constituição da família, passou a ser secundário. Interessa é se cuidam um do outro, se têm conta conjunta, se decidem juntos o uso do dinheiro, a gerência da unidade familiar: é a união estável. O convivente (esta palavra horrível substitui a beleza de “amante”, que é como o povo chama quem mora junto sem casar) já é quase casado.  Mas, para se transformar em cônjuge (outra palavra horrível) ou esposo (como chama o povo, com mais beleza e bom senso), é preciso passar o papel, fazer o contrato, dizer sim para o juiz.

E é aqui que a jurupoca pia: depois deste longo percurso entre o trinado do sabiá procurando a companheira e o papel passado diante do juiz, às vezes vem um cansaço danado. O contrato de casamento, que remove a precariedade da relação, muitas vezes acaba gerando um sentimento de propriedade: minha mulher, meu marido. Vai daí que, como o que já se tem raramente parece suficiente, a tentação de pular a cerca vem com a idade e com o tempo de convivência. De vez em quando, o Romeu vira Casanova.

Nossa época transformou o singelo amor entre duas pessoas num labirinto em que nem sempre o apaixonado consegue se localizar. E eu nem falei aqui dos relacionamentos ditos abertos, da troca entre casais e dos triângulos que podem se transformar em quadriláteros ou polígonos amorosos. Ou da má fé, que cria atalhos e transforma o certo no incerto. E nem das sequências temporais desses novos relacionamentos.

Um dia destes assisti a este diálogo:

Ele: Quem é essa pessoa?
A mulher: Ela é filha do meu ex-marido.
Ele: Sua enteada?
A mulher: Bem...
Ele: Ela morava com você?
A mulher: N...não, nunca morou comigo.
Ele: Então não é sua enteada.

Captaram?





sábado, 2 de maio de 2015

Democracia


Desculpe-me o leitor a ausência, mas adoeci. E tudo o que escrevi nas últimas duas semanas refletiu isso – crônicas rabugentas, impublicáveis. Foi gripe, claro: o Ministério da Saúde ainda não conseguiu entender que o Brasil é plural, e manda vacinas para cá sempre depois do surto viral que bota meia Belém mergulhada em tosses e espirros.

Claro também que eu não vou tomar essa vacina, que é da gripe passada. E como eu, muitas pessoas, embora depois as autoridades achem que é mera resistência à vacina...

De certa forma, têm razão: paraenses têm uma longa tradição de resistência civil. A maioria de nós sabe que discutir com os iluminados é dar murro em ponta de faca. Então não se discute – simplesmente, não se faz. O calor úmido também favorece a inércia. E quem quiser tirar a pedra do caminho, que sue.

Mas hoje eu quero escrever sobre algumas novidades que estão chegando por aqui, embora com o atraso de sempre. No primeiro caso, quatro meses de atraso: Tony Blair publicou o seu artigo no NY Times em novembro. Is democracy dead?, pergunta ele titulando algumas laudas instigantes. No artigo, ele alinha constatações que levam a uma tendência mundial por governos autoritários, para arriscar uma explicação: há que ter eficiência, resultados objetivos das políticas instituídas ou as pessoas vão buscar outros meios para consegui-los.

O segundo caso é mais recente. Exasperada, uma deputada do PT acertou na mosca ao caracterizar o apoio a Eduardo Cunha de “bancada BBB”: Bíblia, boi e bala. O ponto comum desse BBB é justamente o autoritarismo, a força. Por Bíblia, aí, entenda-se não O Livro, mas a cartilha que saiu dele para formar um eleitorado de cabresto, cumpridor de ordens, fechado em dogmas e comportamentos padronizados. O boi representa o mundo rural do grande negócio. E a bala, todo mundo sabe o que é que é.

“É tempo de debater como melhorar a democracia, como modernizá-la”, escreve Blair, para comentar que não basta um governo correto: a decepção das pessoas se funda na falta de mudança em suas vidas. “O simples direito de voto não é suficiente”, acrescenta. “O sistema precisa gerar resultados para o povo”.

Ora, se os brasileiros elegeram uma poderosa bancada BBB, isto parece sinalizar que estão procurando o autoritarismo. É verdade que há sempre uma margem de fraude nas eleições brasileiras, e, também, que a circunstância eleitoral é localizada demais para apontar caminhos seguros. Mesmo assim, há muitos indícios de uma tendência pelo que Blair caracteriza como “a tomada de decisão eficaz por meio da liderança forte”: o descrédito do Congresso, a banalização da violência, o desrespeito continuado a toda e qualquer autoridade, o uso de fardas nos parlamentos, os protestos por qualquer motivo interditando ruas e rodovias, prejudicando milhares de pessoas, a recusa do cumprimento de ordens judiciais...

 E há, sobretudo, a corrupção disseminada e descontrolada. A soltura precoce dos condenados. Fichas sujas em cargos ministeriais.

Estaremos nós procurando um novo salvador da pátria ou simplesmente matando a democracia?


domingo, 5 de abril de 2015

Dona Dilma continua...


Dona Dilma veio ao Pará com cara de quem cumpre um compromisso um tanto quanto enfadonho, mas inadiável. Subiu no palanque e desfiou promessas, como se em campanha ainda estivesse. E, como na campanha, prometeu o que sabe de sobra que não vai cumprir.

Dona Verdade foi escorraçada para baixo do tapete - ou talvez tenha se escondido, envergonhada, quem sabe? Pois dona Dilma disse que vai construir 42 aeroportos no Pará (embora os paraenses estejam cansados de dizer que o que querem, mesmo, é um aeroporto decente em Santarém, outro, se possível, em Marabá, e segurança nos céus em todo o Estado). Entoou loas às hidrelétricas (embora os paraenses estejam cansados de exigir o cumprimento das leis ambientais, pedir pelamordedeus que a União não mate o rio Tapajós com a garimpagem descontrolada e uma dúzia e barragens, leve a energia, mas nos pague as dívidas da lei Kandir). E que vai construir alguns milhares de casas (embora todo mundo saiba que os cortes de verbas não vão permitir isso; é bem verdade que ela não disse quando vai entregar essas casas). E foi por aí.

Na plateia, ansiosos felizardos das casas populares, postos no fundo. A linha de frente era feita de cuteiros, para garantir o entusiasmo encomendado para as câmeras. No palanque, uma linha de impedimento, pendurada em cartões amarelos de suspeitas e incriminações. Dona Dilma estava de vermelho.

Dizem que Dona Dilma não é política. Eu acho que é. Ela liquidou Marina, afastou o Zé Dirceu, acabou com Patrus Ananias, quando foi o caso de substituir Lula. Engole sapos, escorpiões e elefantes. Dona Dilma é uma política que adora o poder, e não está nem aí para razões outras que não sejam exercê-lo. Por ele, ela até faz dieta.

Por isso, Dona Dilma dá ao Pará e à Amazônia a importância justa da medida eleitoral. Ou seja, mínima. Pouco se lhe dá se, ao subir no palanque paraense, o discurso atravesse o samba. Ela olha a Amazônia como um território a explorar, a gordura a queimar, a riqueza a conquistar. Dona Dilma só conhece um pedaço do Brasil, aquele onde cresceu e se criou, o pedaço que fez sua cabeça. O resto é apêndice, regiões problemáticas para as quais alguma caridade consola. Ela não olha para o futuro: depois de amanhã é longe demais para ela.

Dizem que Dona Dilma está encurralada. Ah, não está, mesmo! Quem quiser que se fie nas encenações da dupla Renan/Cunha. Ambos defendem a própria pele: não se arriscarão mais do que lhes recomenda a prudência. Por isso, Dona Dilma continua mentindo: pode ser cínico, mas é mais cômodo e semeia dúvidas. A principal delas é a falsa ideia de “não é política, diz o que lhe mandam dizer”. Dona Dilma sabe explorar muito bem essa imagem de marionete: até agora ainda há quem ache que ela não sabia de nada dos bilionários desvios de dinheiro no seu governo...

Pior para nós, mulheres. De forma subliminar, essa postura da presidente reforça o preconceito de que mulher tem que ser conduzida ou guiada por um homem. No caso dela, Lula. No que eu não acredito: Lula tem carisma, mas usa o cérebro dos outros.


O problema é que mais dia, menos dia, Dona Verdade vai conseguir fugir de sob o tapete onde a esconderam e confrontar Dona Dilma. Só espero que esse momento não represente uma ruptura institucional. Sejam de esquerda, sejam de direita, governos de força são sempre muito, muito ruins.


domingo, 29 de março de 2015

Dia a dia


A síndrome de Heróstrato
O termo foi criado por Albert Borowitz, da Universidade norte-americana de Kent, como subtítulo de seu livro Terrorism for self-glorification. Heróstrato foi o grego que queimou o templo de Diana, em Éfeso, cerca de 2.500 anos atrás, para que o mundo se lembrasse dele pela destruição que provocou.

Parece que esse piloto que derrubou o avião alemão era portador dessa síndrome, que reúne, numa só visão doentia, política e sofrimento pessoal.

Dilma e seus ministros
A presidente colocou um petista clássico no Ministério da Educação, mesmo tendo que engolir críticas duras que ele lhe fizera duas semanas antes. Talvez com isso consiga reaglutinar um setor tradicional do petismo, ultimamente muito combalido. Talvez que sua “pátria educadora” consiga uma nova imagem. Mas vai ser difícil, principalmente porque, para substituir o ministro da comunicação social (escrever a verdade num governo de mentirosos é pecado mortal) um sociólogo pós graduado em engenharia de produção, cuja maior qualificação para o cargo é ter sido tesoureiro da campanha. Janine e Edinho já começam devendo...

Já o ministro do Planejamento, ao discutir reajustes salariais pedidos por funcionários, disse-lhes que “a sociedade clama pela redução da folha de pagamentos”. Seria melhor se dissesse a verdade, que o dinheiro existente tem outras prioridades.

Inflação chegando
Desaparecem as moedas divisionárias. Dia destes um comerciante me deu um desconto de três reais numa compra de vinte, apenas para ficar com troco miúdo. Também descobri que uma rede de supermercados dá 5 pães carecas para quem trocar 50 reais em moedas. O desaparecimento das moedas é o sinal mais claro de sua perda de valor. Outro sinal me vem do correio eletrônico: dos 20 a 30 e-mails promocionais diários, passei a receber quatro ou cinco. O terceiro está no supermercado: a batata ultrapassa os 5 reais por quilo e o pão, 10.

Será que essa política econômica baseada no consumo espera que os preços revertam por simples pressão de mercado?

A dívida da federação
A redução da dívida dos Estados e Municípios com o governo federal é o confronto da vez. É, mano: farinha pouca, meu pirão primeiro.


quinta-feira, 19 de março de 2015

Um olhar à direita


Supreendeu-me ver, entre os muitos e variados vídeos e fotografias das manifestações do dia 15 de março, um estandarte azul. Estandartes são símbolos antigos; quem o usa, é tradicionalista e ultraconservador. Ou seja, é de extrema direita.

Na mesma manifestação, em outro local, foi preso um grupo autodenominado de “carecas do subúrbio”. Neonazistas... negros?! Este episódio me surpreendeu mais ainda. Menos pelo paradoxo (Perdoa-os, pai, eles não sabem o que fazem!), afinal, o nazismo é eugênico, e porque não pode ser negro?, que pelo subúrbio, pela presença em redutos reivindicados pela esquerda.

Ora, a extrema direita parecia ter sumido do cenário político brasileiro. Mesmo assim, eu não deveria estar surpresa, porque nos últimos anos tem havido indícios claros, cada vez mais frequentes, de um ressurgimento: algumas prisões de “carecas”, depois de atos violentos; os atentados contra mendigos, índios, meninos de rua; conteúdos cada vez mais ousados em blogues; disseminação de terrorismo virtual. E, nas últimas eleições, a votação recebida pela assim chamada “bancada da bala” apresentou um poder de fogo razoável. Aliás, segundo os analistas, o resultado da eleição parlamentar apontou um rumo de centro-direita para o país.

Mas uma coisa é a direita moderada, liberal, dos ACM e dos Mainardi, e outra coisa é o fundamentalismo extremista que caracteriza essa direita ultraconservadora. Ela é sempre violenta, intolerante, incapaz de diálogo. Guerra é uma palavra que anda sempre presente em suas conversas. Se pudesse, teria escravos... e às vezes tem, que o diga a Polícia Federal que, volta e meia, liberta pessoas reduzidas a condição semelhante à do escravo.

O fato de sentir-se segura o bastante para mostrar a cara, apresentar de público estandartes e desafios, reivindicar claramente um golpe de estado, demonstra que não está sendo tão repulsiva assim para muita gente. Está conseguindo seduzir.

Qual é a sedução da ultradireita?

A solução pela força. A ordem unida, um-dois, um-dois. A criação de uma zona de conforto, sem inquietações, porque sem críticas. A abdicação das decisões e, portanto, uma falsa ideia de inocência. A supervalorização do “nós” em relação a todos os outros “eles”.

A extrema direita sempre se fortalece quando há fraqueza institucional. Sempre.

Ela recrudesce os discursos quando há instabilidade. Ela oferece o lenitivo da violência: elimine a oposição e a crítica e você terá paz.

Ela se baseia no discurso da superioridade e do egoísmo: não queremos imigrantes por aqui; não queremos concorrência; não queremos contradições. Não balance o barco.

Ela é mortal. Ela mata o que atrapalha e, muitas vezes, quem não pode se defender.

Mas ela não pode ser ignorada. Também não pode ser superdimensionada (ela era minoria, bem minoria, nas manifestações). Tem que ter voz, para que seja forçada a agir às claras. Tem que ser medida e acompanhada.

Para contê-la nos limites que lhe proporciona a democracia é preciso não alimentá-la. E, infelizmente, depois do que aconteceu no dia 15, Brasília está lhe dando filés.

Primeiro, a presidente vai à tevê com uma atitude mais ou menos assim: Eu sou humilde. Estou dizendo que sou humilde. Vai encarar?

Ela relembra sua luta contra a ditadura e presta homenagem aos que morreram. Ela pode chorá-los, mas não os respeita: se respeitasse, não permitiria que ladrões se apropriassem do país reconstruído. Se respeitasse, demitiria os fichas sujas de seu ministério, antes de pedir ao Congresso que vote uma lei para isso; afastaria de seu convívio pessoas suspeitas. Se respeitasse, não permitiria as ameaças sobre a Petrobrás, nem mentiria na campanha. Se respeitasse, não teria um projeto de poder, mas um projeto de Brasil. Porque era este o projeto daqueles que morreram.

Segundo, o Congresso Nacional propõe um remendo político que chama de reforma. E põe mais dinheiro nos partidos, triplica o fundo partidário num ano em que é preciso reduzir, não aumentar, o gasto público. Pôs nos partidos o que foi cortado nos investimentos indispensáveis. Quer fazer uma maquiagem num sistema eleitoral ruim, posto sob suspeita nas últimas três eleições. Quer fazer prédios anexos quando faltam estradas. Nenhuma discussão sobre o fundamental: as prefeituras completamente falidas, situação de que nem São Paulo escapa.

Terceiro, o Supremo Tribunal Federal começa um jogo de cena no petrolão. Acende o forno para a pizza. O país inteiro suspeita de Teori Zavaski, mas não interessa: é esse mesmo que vai por a mão na massa.

O cidadão olha para Brasília e não vê saída alguma; ele baixa os olhos para a rua onde está e enxerga o assaltante parado na esquina, só esperando ele passar. Sua exasperação é exatamente o que a extrema direita quer.

Então não há porque se espantar se negros, beneficiados com a política de cotas (que eu, aliás, apoio integralmente) se apresentam como neonazistas. Eles não são uns coitadinhos. Eles, como qualquer outro cidadão, querem respeito e respostas.

Que ninguém se espante, também, se esta crise se tornar mais aguda, com cada vez mais frequentes apelos a um governo de força. Mas é preciso resistir a essa sedução. É preciso ver os gulags que estão por detrás, os efeitos da censura pelo tempo afora. É preciso ter sempre consciência que, para quem ouviu o canto da sereia vem a morte cruel pelo afogamento.

E é preciso cobrar dos três poderes mais vergonha na cara.



domingo, 15 de março de 2015

O Brasil mudou, companheiros!


Metade da população brasileira faz parte da classe média (renda individual mensal de 320 a 1.120 reais). Esta informação é do Data Popular e foi divulgada pela revista “Exame” em meados do ano passado. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE apresenta resultado semelhante: metade das famílias brasileiras tem renda entre 2 e 10 salários mínimos por mês
.
Acostumados à fácil dicotomia ricos x pobres, muitos não conseguem vê-la. Alguns intelectuais chegam a desprezá-la (uma vez, Marilena Chauí desmereceu sua biografia ao chamar essa categoria de medíocre). Essa classe média é tanto urbana como rural. Ela inclui o pequeno empresário agrícola, o caminhoneiro autônomo, a esmagadora maioria de profissionais liberais, o micro e o pequeno empresários, os assalariados com nível médio ou superior e uma quantidade enorme de trabalhadores autônomos.

Ela não gosta de confusão. Trabalha duro, não entende nem gosta de se meter em política e paga tudo de que se serve: hospital, escola, serviços profissionais, empregados, alimentos, lazer, água, energia, estacionamento, casa e todas as compras, além das tarifas de bancos e cartão de crédito. E paga impostos, muitos impostos. Para ela não há isenção de IPTU, nem de imposto de renda, nem facilidades outras. Ela está acostumada a pagar e a cobrar.

E ela é emergente: foi só depois da estabilização da moeda que ela conseguiu se firmar e fazer o que todo cidadão de classe média, no mundo todo, faz: planos de médio e longo prazos, impossíveis quando a inflação anda alta. A partir do real ela se consolidou, cresceu, e agora abrange 54% da população.

Foi essa nova classe média que foi para as ruas, ontem. Os manifestantes se reconheciam, pela primeira vez na história do Brasil, como classe: havia alegria entre eles. Sua reinvindicação central, me parece, foi recuperar a dignidade de ser brasileiro. Por isso, o ponto de união foi o Hino Nacional, o verde-amarelo, a bandeira.  A dignidade é importante para a classe média: seus integrantes se sacrificam para ter uma aparência limpa e bonita, para manter as contas em dia, para não se envolver com polícia, para resgatar as dívidas e para não receber esmolas.

A classe média se sente lesada, assustada e envergonhada. Ela concordou com as políticas sociais, mesmo sabendo que financiava boa parte delas; ela concordou com as políticas de quotas, concordou com as bolsas variadas e diversas. Mas, volto a dizer: ela também está acostumada a cobrar. E, se paga alguma coisa para uma certa finalidade, é para essa finalidade que o dinheiro tem que ir. Então, pagar para que o dinheiro flua para outros destinos não é com ela: a corrupção lhe dói no bolso como se fosse um assalto direto.

Ela também está assustada com a possibilidade de descontrole inflacionário. Ela sabe – todos sabemos – que aumentar insumos, como energia, combustível e salários, forçosamente refletirá nos custos inflacionários. Que o aumento do dólar não significa apenas custos mais altos em viagens, mas, e sobretudo, num país que importa ou paga royalties por quase tudo o que usa para mover suas máquinas, custos de produção mais altos, que refletirão no custo de vida. A classe média é medianamente instruída e informada. Ela sabe o que move a economia.

E se sente envergonhada pela escala de corrupção, institucionalizada (como disse um dos delatores do petróleo), que se instalou no país. Os gritos de “Fora, Dilma”, mais que tudo refletem essa vergonha, e resultam da incapacidade da presidente de deixar de manobrar para acobertar os ladrões.
    
Muitos articulistas têm insistido, na mal alinhavada defesa do governo Dilma, que ela está pagando o preço de um compromisso com os pobres, que é por defender os pobres contra os ricos que está sendo questionada; ou que, como eu li ontem, foi o Brasil bem cuidado que foi para a rua; ou ainda, como disse o infeliz ministro da Justiça, com temor refletido nos olhos, são os que não votaram na presidente que a estão criticando. Fariam melhor se encarassem de frente a verdade: que o Brasil tem uma poderosa classe média que não quer ser mais sangrada para beneficiar ladrões; que essa classe média não é contra políticas sociais, mas é contra a distorção dessas políticas, sua transformação em garrotes eleitoreiros; que não é contra pagar impostos, mas quer esses impostos usados corretamente. E que essa classe média é a metade dos cidadãos do país.

O Brasil mudou, companheiros.

E não será o governo propondo plebiscitos ou hipotéticos pacotes contra a corrupção que vai conseguir sair da armadilha em que se meteu com uma campanha mentirosa e ilusória. Até porque as manifestações da sexta-feira, 13, mostraram claramente a solidão social do PT. Vai ter que engolir a arrogância e negociar uma agenda concreta, clara, que precisa começar com uma reforma tributária que aumente a capacidade de governo dos Estados e Municípios, sem a qual não haverá reforma política que dê certo.


domingo, 8 de março de 2015

Que moral, hem!


O deputado Edmilson Rodrigues vai ser processado por quebra de decoro parlamentar porque ousou, ousou! – chamar de moleque o eminente peemedebista... como é mesmo o nome dele? Esqueci, que delito horrível! – no aceso de uma discussão. Edmilson, um nortista, está sendo acusado de “preconceito contra nordestinos”.

E o eminente peemedebista Renan Calheiros, presidente do Senado, está sendo acusado de corrupção da grossa, mas, para o PMDB, não há, aí, quebra de decoro. Nem sequer desconforto!

“Mexa-se, mexa-se!”, cantou uma vez o menestrel Juca Chaves. “Mas nunca tão depressa! Quem tem pressa come cru!”.

Parece que o PMDB não ouviu essa cantiga, ou se ouviu, esqueceu. Apresentou-se em rede nacional não como governista, não como aliado do governo, como seria o correto, mas como o próprio governo. Alinhou ministros e promessas, arrotou grandezas morais e uma competência feita de escolhas e bem poucas realizações. Precipitou-se, o PMDB: embora tenha abocanhado uma bela fatia da administração federal, ele não manda nela. Suas escolhas estão subordinadas à presidente que, apesar de ter ganho uma eleição de forma mentirosa, e por pequena margem, é legítima.

Já tivemos presidentes do PMDB. Dois presidentes-viúvos, que assumiram porque a cabeça do casal foi decapitada. Quer ter, agora, um terceiro presidente-viúvo, porque só assim, meio que na sombra, é que chega lá. Mas de José Sarney lembramos a inflação estratosférica que nos conduziu para o Collor, com Itamar na vice. Collor decapitado, passamos para outro governo do PMDB. Itamar não acreditava no plano real (pelo menos é o que consta do livro da Míriam Leitão, que Itamar nunca contestou), permitiu seu lançamento porque não tinha alternativa. Depois se opôs radicalmente ao seu sucessor, Fernando Henrique, o ministro do real.

Em todos estes anos de democracia plena, vários partidos apresentaram projetos consistentes: PSDB, PT, PPS, PCdoB, Dem, PDT. São projetos divergentes entre si, baseados em ideologias diversas, até contrárias, e utopias diferentes. Mas são partidos que têm perfil, sabe-se o que esperar deles. Quanto ao PMDB, como o partido deixou claro no programa em que se apresentou como governo, faz escolhas: ora, quem escolhe, escolhe o já feito, não cria nem constrói nada de novo. Limita-se ao que está ao alcance da mão. Ideias, propostas, e, como vemos agora, dutos de dinheiro clandestino.

Pensando bem, talvez isso seja uma ideologia, a ideologia do líquido que toma forma do recipiente que o contém. Se for assim, é uma ideologia que se evapora quando sob o aquecimento das tensões. E, mesmo contando com a força do vapor, basta instalar uma válvula, de preço, aliás, bem variável, para ser controlada.

E talvez explique porque não se exija decoro de um senador publicamente acusado de praticar diversos crimes contra o erário público (e mais um, contra a inteligência e a boa-fé dos brasileiros), mas se queira enquadrar o deputado do pequeno PSOL porque talvez tenha se excedido no discurso. Digo – talvez – porque é bem possível que o deputado Edmilson Rodrigues tenha simplesmente falado a verdade. E o deputado X (não há jeito de eu me lembrar do nome dele!) seja mesmo um moleque.

É, talvez o padrão ético do PMDB explique essa contradição. E, sinceramente, não sei se um presidente do PMDB será melhor que uma presidente do PT.

A lista de Janot e a decisão de divulgá-la, tomada por Teori Zavaski (quem quiser que acredite que o Planalto não agiu nessas decisões) demonstram que Dilma está longe de entregar os pontos. Se ela conseguir afastar Renan ou Cunha da presidência de uma das casas do Congresso, enfraquecerá o PMDB o suficiente para retomar a governabilidade ameaçada. Mesmo com as manifestações de rua e a incômoda verborragia do ex-presidente Lula (que até agora não se conformou de ser apenas um ex). Mesmo com o terrorismo virtual instalado pela extrema direita e por um sem número de cidadãos assustados ou que se divertem espalhando medo (só para dar uma ideia do que está acontecendo nas redes sociais, dia destes recebi dois áudios ressuscitados de 1963!). Mesmo com uma recessão em andamento.

Só que ela tem que ser rápida: falta uma semana para o 15 de março e existe, graças a Lula, risco real de confrontação nas ruas.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

A flor da Guiné


Desde o dia em que saiu o resultado do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro que ando matutando sobre a Guiné Equatorial. Que bela flor viu lá o colibri carioca?

Tão bela e tão perfumada que eclipsou qualquer preocupação, todos os desgastes e todas as dificuldades para representar na avenida um país com 400.000 habitantes (dado oficial da Embaixada da Guiné no Brasil, mas há quem diga que são mais, e outros, que são menos), duramente marcado pela colonização, estigmatizado pelas violações constantes de direitos humanos, com 77% da população abaixo da linha da pobreza e descoberto por um navegador português chamado Fernando Pó.

É, Fernando Pó.

Bem, a Petrobrás está lá. Ela adquiriu, em janeiro de 2006, 50% de participação num contrato de partilha de produção de petróleo (bloco L, na bacia do rio Muni) operado pela Chevron, que perfurou dois poços que deram em nada e, no ano seguinte, abandonou o bloco e o país. A Petrobrás continua tentando, talvez acreditando que “é preciso mais que cinco poços secos para condenar uma bacia.” Em 2009 o NY Times dizia que poucos países simbolizam tão bem a corrupção e o nepotismo do óleo como a Guiné Equatorial e que as petroleiras que trabalham ali estavam preocupadas com a imagem do país.

Bingo? Não sei, ouso pensar, mas não ouso opinar sobre isso.

Mas esse contrato que a Petrobrás assinou parece um pouco com a história de Pasadena, não? O ano é o mesmo e a Petrobrás comprou mico nos dois casos: na Guiné, comprou em janeiro uma participação de exploração de um bloco que ia ser perfurado no mesmo ano; no ano seguinte, fica com um poço seco... Toyin Akinosho, analista do Africa Oil+Gas Report, jornal mensal dedicado à indústria do petróleo, comenta que a decisão de ficar, tomada pela Petrobrás, talvez se deva ao fato de que os dirigentes de estatais não têm a mesma responsabilidade que têm os das empresas privadas perante os acionistas...

E de repente a Beija Flor repete Fernando Pó e descobre a Guiné Equatorial. E ganha o campeonato. E com certeza será convidada a se apresentar lá: bateria, mulatas, dirigentes da escola e da Liga das Escolas de Samba. E voltará dizendo que o povo da Guiné se entusiasmou tanto que todos pensam numa continuação por lá.

E Neguinho da Beija Flor dá entrevista dizendo que é a contravenção que financia o carnaval carioca.

E o governo da Guiné diz que foram as empresas, no papel de animadores culturais, que financiaram a escola. Empresas ansiosas para melhorar a imagem do país. Mas empresas que podem reunir alguns milhões de reais numa vaquinha assim, informal, para financiar uma agremiação cultural cuja importância se restringe ao Brasil, e uma vez por ano? E a responsabilidade com os acionistas? Bem, se o acionista principal for uma viúva rica, é só seduzir a viúva, não?

Ainda tentando descobrir a flor que encantou o colibri carioca, leio, por meio do Trip Advisor, relato de viagens feitas a esse país. Num deles, o viajante escreve: “Museus? Bem, a Air France tem voos diários” para acrescentar que só a natureza, que ele qualifica de magnífica, é que oferece o que ver.

Eu imagino o Pó navegando para descobrir a ilha de Bioko. Visualizando alegorias e fantasias, com árvores de renda franzida e mulheres seminuas. Fissurado depois da longa viagem por novos cheiros, que o façam esquecer o que vem do interior das caravelas. Atraído pelo brilho da riqueza negra.

O que o Brasil está fazendo com os africanos? Meu Deus!


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Brasil profundo


O Congresso é a cara do Brasil. É ele que espelha, física e moralmente, o Brasil profundo, do litoral, do sertão e das cidades. Especialistas políticos caracterizaram o Congresso que iniciou suas sessões ontem como de centro-direita, com o avanço de das bancadas religiosas e da chamada bancada da bala.

E esse Brasil mostrou a sua cara, ontem, ao eleger Eduardo Cunha.

Infelizmente, não é a cara que eu gostaria de ver.

A cara que vejo hoje é enrugada por práticas corruptas, hidratada pelos panos quentes postos sobre os escândalos, maquiada pelo marketing irresponsável, enfeitada com ouro de tolo e com o olhar esquivo dos trapaceiros.

Ontem, o Brasil estendeu um tapete para tentar esconder o lixo.

Mas o Congresso se esqueceu que o lixo fede. A podridão se impõe para muito além do ponto onde ocorre. E quando o lixo é muito, e é antigo, faz escorrer chorume. O chorume contamina tudo o que toca, terra e água. E também tapetes.

Na semana passada um título de jornal ilustrou essa contaminação: dizia que o desvio na Petrobrás sustentaria o programa bolsa-família por uma década. A leitura subliminar dessa manchete é a seguinte: esse dinheiro que está no bolso deles devia estar no meu. O chorume toca, aqui, o inconsciente coletivo.

Cunha não fará oposição – aliás, ele declarou isso sem subterfúgios – e sim, lado a lado com Renan Calheiros e Michel Temer, a acomodação dos fichas sujas, sejam eles de que partido forem. Esse foi o pano de fundo que garantiu sua eleição. O site “Congresso em Foco” informa que essa é a bancada mais numerosa do Congresso. Em 2012, era composta por 191 deputados ou senadores. Nas últimas eleições saíram 34 deputados e entraram 40 com processos, em sua maioria por corrupção. Esse contingente de deputados representa 18% da Câmara. Entre eles está o próprio Eduardo Cunha. E entre eles não estão (ainda) os envolvidos nos desmandos da Petrobrás.

No entanto, precisamos ter esperança. Num artigo publicado neste domingo passado, Fernando Henrique coloca as suas no Judiciário. Em outro artigo, despedindo-se da política partidária, José Sarney apela para a pressão suprapartidária, a fim de evitar males maiores para o Maranhão. Lula, em vídeo circulante na internet, grita pela mobilização do PT. Os três ex-presidentes, de posições tão diferentes entre si, manifestam simultaneamente extrema preocupação com o momento nacional.

Mas, para os parlamentares eleitores de Eduardo Cunha, que reivindicam aumento das mordomias e das respectivas remunerações, a preocupação parece ser somente a que mobiliza hoje o Brasil profundo: que fantasias usarão daqui a duas semanas, no Carnaval.

Porque as fantasias de palhaço já têm donos: somos nós.


domingo, 25 de janeiro de 2015

O mundo dos ciborgues


Eric Schimidt, diretor executivo do Google, previu na semana passada que a internet, na forma como a conhecemos hoje, vai dar lugar a redes interativas tão integradas aos objetos de uso comum que as pessoas vão deixar de percebê-la. Ou seja: você manda, a geladeira obedece. Pode ser a cadeira, também, ou sua própria roupa. Você poderá ter o mundo na palma da mão, literalmente: projeções holográficas disponibilizam em seu corpo o planeta, ou as pessoas do planeta.

Mas você não poderá agarrar o tempo que flui pelos vãos dos dedos e responder assim à pergunta do poeta Cassiano Ricardo. E este é o dilema, o problema, o xis da questão: integrado num sistema superveloz, é impossível refletir. O Homo Zapiens não pensa, apenas reage.

Esse termo, Homo Zapiens, foi universalizado, a partir de 1999, por meio de um romance do escritor russo Victor Pelevin (que talvez o tenha criado), como informa a Wikipedia. De lá para cá, vários estudos acadêmicos foram publicados em torno dessa nova condição humana, que consiste na hiperinformação e na supervelocidade.

Se não há tempo para pensar ou refletir antes da resposta, se ela deve ser dada em segundos – como fazem os atletas ou os comandos militares de elite – ela será, necessariamente, um reflexo. Ela estará integrada ao corpo da pessoa, resultado de treinamentos exaustivos, no caso dos atletas e dos comandos, mas, no caso das redes informatizadas, decorrente do próprio uso continuado.

Tenho claro que a maioria das pessoas não gosta de pensar, de tomar decisões por seu arbítrio, prefere um manual – seja para comer, seja para rezar, seja para estar em sociedade, seja para prestar exames de vestibular (a quantidade de zeros na redação é um indicador claro disso). Não será problema reduzir-se a um ciborgue, que são aqueles seres da mitologia moderna, metade pessoa, metade máquina. Mas esta condição tem seu preço.

A primeira conta é a total impossibilidade do isolamento. A segunda é o risco de todo manual: o erro que, no caso, conduzirá a desastres. A terceira é o aumento brutal dos controles sobre as pessoas: se você é parte de um sistema, está integrado nele, você não pode escapar de suas regras, por mais contestador que seja. E a quarta é a antevisão de Huxley: a inteligência, indispensável para o desenvolvimento humano, em ilhas, desdobrando os controles, corrigindo o manual, para que todos sejam drogados felizes.

Estamos muito longe disso? Talvez, mas há muito tempo já as pessoas se vestem da mesma maneira, mergulhadas num anonimato angustiante, e, progressivamente, penduram-se cada vez mais nas redes. Cada vez menos fazem coisas com as próprias mãos ou pensam pelas próprias cabeças. Um dia destes atendi o telefone e era uma ligação de telemarketing. Diferente do usual, uma voz eletrônica me disse: Esta/ ligação/ é para / o senhor / Marcos. / Se você/ é a pessoa indicada / tecle 1. /Se você / conhece a pessoa indicada/ tecle 2... e assim por diante. Desliguei o telefone, naturalmente, com uma sensação de raiva e choque. Raiva pelo menosprezo demonstrado pelo uso da voz eletrônica; choque porque não imaginava que, nesta remota província do império brasileiro já se pudesse ser objeto de uma intervenção dessas. Depois pensei que o mundo globalizado não aceita mais a condição de “remota província”, porque a geografia virtual é diferente da física. E que estamos nos tornando ciborgues e nem percebemos isso.


domingo, 18 de janeiro de 2015

O atentado e os corvos


Cria corvos e eles te arrancarão os olhos 
(provérbio espanhol)

Há um punhado de obras de arte que detesto. Nem por isso lhes nego a condição de arte ou a liberdade de seus autores em produzi-las. Nego-me eu a ler, ver, assistir, comentar. Há milhares de pessoas que, como eu, também não gostam e há milhares que pensam de forma diferente. Mas liberdade é isso: poder escolher.

Raramente aprecio uma sátira. Para mim, ela está perto demais da grosseria. Também, pela mesma razão, não gosto do “Zorra Total”. Então, desligo a tevê, fecho a revista, desconecto o assunto. O humor nu – nos sentidos literal e figurado – não é a praia para onde eu vou.

A sátira frequentemente transborda do terreno do humor para entrar no da ofensa pura e simples. Esse limite é cinzento: o que eu considero limite não é o mesmo que o outro considera. O deboche muitas vezes beira a crueldade. Discutir a intenção do autor é bobagem: o dano causado geralmente é irremediável para o atingido.

Mesmo assim, ser ofendido não gera um direito de vida ou morte sobre o ofensor. Não depois que se estabeleceram princípios mundiais de convivência e direitos humanos.

E aqui chegamos ao cerne da questão: o que fazer quando um grupo humano decide não aceitar esses princípios e, pior, tenta estabelecer o seu ponto de vista sobre todos os demais?

Em termos de arte, chamamos isso de censura. Em termos políticos, de extremismo. Em termos sociais, de radicalismo. Sabemos como combater a censura, o extremismo, o radicalismo: pactuamos os limites na forma de leis que todos devem respeitar. E discutimos esses limites o tempo todo, para alterá-los por meio de novos pactos. Usamos para isso ferramentas legais: o processo contra o autor de algo que nos ofende gera decisões que muitas vezes fixam novos limites para o que se pode tolerar.

Mas, em termos religiosos, não há pactos: há dogmas. Dogmas não se discutem: acredita-se neles ou não. Em clima de liberdade, um dogma não deve se sobrepor a outro, e se um cidadão decide acreditar neste, e não naquele, ou simplesmente não acreditar em nenhum, o religioso pode tentar convertê-lo e, se não o conseguir, rezar pela sua alma. Não pode coagi-lo e, muito menos, matá-lo. E esse é o problema do fundamentalismo religioso, que matou Jesus Cristo porque negou a divindade de César, que dizimara, antes de Cristo, os zoroastristas e, depois dele, continua matando até hoje. O fundamentalismo é mortal. E é tentador: o nome de Deus é um formidável instrumento de poder. Alguns milhões de mártires, de todas as religiões, atestam até onde pode ir um crente desafiado.

Hoje, um grupo humano está retomando o fundamentalismo extremo.

O atentado de Paris é café pequeno perto do que esse grupo está fazendo na Nigéria, na Somália, no Iraque e na Síria, nestes dois últimos países sob a fachada de Estado Islâmico. O massacre sobre muçulmanos xiitas, assírios, cristãos armênios e yazidis (estes estão sendo exterminados) já conta milhares e milhares de mortos. Centenas de milhares de mulheres de todas as idades estão sendo transformadas em servas ou, pior, coisas: não dispõem nem de seu corpo, nem de seu espírito.

E nós? Nós, olhamos horrorizados, assinamos petições, passamos a conta para as potências senhoras da guerra e nos sentimos a salvo. Mas – estamos realmente a salvo?

Dos jihadistas, provavelmente sim. Mas estamos nos esquecendo de olhar em torno e ver aqueles que, de paletó e gravata, constroem os ninhos dos corvos que nos arrancarão os olhos. Porque o fundamentalismo não nasce da noite para o dia, nem de uma iluminação profética. Ele se alimenta da intolerância cotidiana, do dia a dia da ofensa, da falta de limites, fermenta no ódio e na ambição. E toma forma nas pessoas que usam o nome de Deus para canalizar a intolerância contra os demais, demonizando os adversários – e o demônio deve ser combatido, não é mesmo? E seus servos eliminados ou reduzidos à sujeição total.

Tem-se falado em segunda guerra fria e coisa e tal. Mas a História não anda em círculos, ela traça espirais ascendentes ou descendentes, cujas curvas são semelhantes entre si, mas nunca iguais. O drama do século XX foi o antagonismo entre diferentes ideologias; o do século XXI será o religioso, se permitirmos que os corvos se criem.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Comunicação rápida, mas...


Como muita gente interessada, venho acompanhando de perto o desenvolvimento do zap, e, a partir dele, das chamadas redes sociais, geralmente saudadas como um grande instrumento renovador da comunicação. Para mim, no entanto, é só um novo tipo de comunicação, com suas vantagens e desvantagens. Está criando uma nova linguagem, quase criptográfica, em que os símbolos e abreviaturas substituem boa parte das palavras. Não conseguiu ainda vencer a divergência dos alfabetos, mas está caminhando para isso. É muito rápida, mas...

... as pessoas em breve descobrirão o que todo profissional de letras sabe: quem escreve como fala está sujeito a um bom número de incompreensões. Isto porque a palavra oral é acompanhada de vários outros sinais corporais que reforçam e explicam os conteúdos. Uma sobrancelha levantada que acompanhe uma frase dá o tom da ironia, da mesma forma que um sorriso abranda um dito mordaz. No visor eletrônico a intenção se perde: então é preciso mais cuidado com o que se escreve do que com o que se diz.

... não há diálogo entre mensagens. Cada uma é unilateral: você diz o que quer e lê se quiser. Ou interpreta como quiser o que recebe: toda leitura é assim. Uma boa intenção mal redigida ou inoportuna pode ser tomada como um insulto grave. E o insulto escrito sempre fica. É diferente da oralidade, em que a pessoa pode se explicar ao perceber a reação do outro: na mensagem, o outro está distante demais para explicações.

... o poder gerado pela velocidade e aglutinação das conexões é ilusório: parece grande, mas é pequeno. Dizer, mandar mensagens, é fácil: difícil é convencer. O convencimento só ocorre pelo diálogo, impossível no zap. Ao reunir pessoas na rua para uma manifestação, a pessoa que organizou vai descobrir que elas vão lá por motivos próprios, muitas vezes bem diferentes na ideia original, apenas para, digamos assim, aproveitar a oportunidade da multidão. Isto porque o zap é apenas uma conexão rápida de indivíduos, não é um partido nem um movimento político.

... a informação é sempre superficial, limitada pelo próprio meio usado. A mensagem só permite poucas palavras: então nada complexo pode ser tratado nela. Não há discurso, há frases curtas, exclamações e só.

... o zap nas redes sociais funciona em ondas ou em marés: uma informação circula em alta velocidade e se quebra na praia. O efeito desta onda é passageiro e, ao terminar, deixa uma impressão – não uma mudança. Marés sucessivas podem alterar alguma coisa no litoral depois de algum tempo. Mas não mudam o litoral todo, senão depois de séculos agindo da mesma maneira.

... o zap se presta maravilhosamente para a intriga e para o boato. Intriga e boato têm uma característica: são mais fáceis de fazer do que de desfazer. No zap isto é mais difícil porque a impressão deixada pela onda não é fácil de ser identificada.

... a intimidade na rede é falsa e, consequentemente, a possível confiança entre integrantes também é. Isto porque a intimidade pressupõe troca de contatos sensoriais: visão, audição, cheiro e, às vezes, tato e gosto. Sem isso não se conhece de fato uma pessoa: pode-se conhecer apenas o que ela diz. Muita gente está descobrindo isto da pior forma.

... a comunicação é fragmentada, porque o meio usado também é. Assim, a rede é ótima para fixar posições, dar rápidas informações ou respostas. É péssima para explicar essas mesmas posições. Em última análise, a rede é limitada ao sim/não. O que é apenas o primeiro estágio da comunicação, porque não há discurso nem raciocínio cabíveis nela. Quem ousar fazer isso estará perdendo tempo e ganhando fama de chato.



domingo, 4 de janeiro de 2015

O pacto necessário


Os governos e a Justiça estarão cumprindo os papéis que se espera deles: se punirem exemplarmente os corruptos e os corruptores. (Discurso de posse da presidente Dilma Roussef, 2015).

Temperamental e desbocado como era, D. Pedro I por certo daria um soco na mesa, acompanhado de meia dúzia de palavrões, ao ouvir esta frase, mais de 180 anos depois de ter falado do trono, para a Assembleia Geral Legislativa, abrindo a sessão de 1827:

O governo necessita que esta Assembleia o autorize, da forma como achar conveniente, para que possa estorvar a marcha dos dilapidadores da Fazenda Pública, aos que não desempenharem bem os seus empregos e aqueles que quiserem perturbar a ordem estabelecida por todos nós jurada; já demitindo-os, já dando-lhes castigos correcionais. (Falla do Throno, abertura de 1827 – Biblioteca do Senado. Atualizei a ortografia).

Nesse discurso, um dos mais longos que fez, D. Pedro I ressaltou à Assembleia a urgência da matéria: “um sistema de finanças bem organizado deverá ser o vosso particular cuidado nesta sessão, pois o atual, como vereis do relatório do ministro da Fazenda, não só é mau, mas é péssimo, e dá lugar a toda qualidade de dilapidações. Um sistema de finanças, torno a dizer, que ponha cobro, não digo a todos, mas à maior parte dos extravios, que existem, e que as leis dão lugar a que existam e por isso o governo, por mais que trabalhe, não pode evitar.

Bem, ele não conseguiu, assim, de primeira. Convocou mais duas sessões legislativas ordinárias e duas extraordinárias, repisando a urgência e a necessidade de arrumar as finanças públicas; não conseguiu nada. Finalmente, em 1830, deu o soco na mesa: convocou uma sessão extraordinária com pauta específica para discussão e foi assim que o Brasil teve sua primeira lei do orçamento.

Mas foi somente com D. Pedro II, em 1847, que o imperador pôde anunciar orgulhosamente que as receitas e as despesas estavam equilibradas, graças a “judiciosas medidas”, e que brevemente começaria a reduzir a dívida interna. As judiciosas medidas começavam pela vida austera do imperador que disse uma vez: Também entendo que despesa inútil é furto a Nação”.

Quase dois séculos se passaram desde Pedro I e novamente o chefe de Estado coloca no futuro a punição dos corruptos e corruptores. A burocracia multiplicou-se, as leis, também. A monarquia constitucional deu lugar à República, que alternou períodos ditatoriais e eleitorais – e a corrupção continua lá, plantada, florescente, imbatível, no dizer da presidente, envolvendotodas as esferas de governo e todos os núcleos de poder, tanto no ambiente público como no ambiente privado.

Como em todos os ambientes sociais existem núcleos de poder – poder familiar, poder comunitário – de matizes e gradações diversas, vejo no discurso da presidente uma generalidade inaceitável: somos cleptocratas, somos corruptos, todos!

Eu não aceito essa generalidade porque não é isso o que eu vejo todos os dias. Eu vejo todos os dias uma multidão que tenta viver honestamente, que trabalha duro e que paga suas contas. E que é furtado na prestação de serviços de telefonia, eletricidade, transporte público; nos juros excessivos, tarifas bancárias não explicadas, produtos enganosos; tem seu tempo furtado nas imensas filas de cadastramento (a última do ano foi na Caixa, para inscrição em programa oficial) ou nas filas de espera para qualquer serviço público. Eu vejo uma multidão que tenta manter seu nome limpo de dívidas e que está exasperada porque finalmente consegue ver para que bolsos está fluindo toda essa ladroagem.

Não, presidente, não é de pacto que precisamos, é de rompimento: do rompimento de seu governo com a corrupção que grassa à sua sombra. Não tente justificar isso jogando a responsabilidade para a sociedade, para o povo, para nós. Comece a senhora a luta: deixe de lotear ministérios alegando uma falsa governabilidade. Só isso já bastaria para que a senhora pudesse anunciar, como D. Pedro II o fez aos vinte anos de idade, o equilíbrio das receitas e despesas. Só isso já faria o país acreditar que sim, é possível ultrapassar de vez a cultura dos extravios que vem de tão longe.


É a senhora quem precisa fazer um pacto com a res publica. Rompa com a corrupção, presidente, e descobrirá que os brasileiros preferem ser honestos.